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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 05/09/2023

Jazz com influências desse grande caldeirão que é a lusofonia.

Aline Frazão: “Eu parto da escrita das palavras, e são as palavras que me dão pistas para uma melodia”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 05/09/2023

Aline Frazão é uma artista no sentido pleno do que isso significa. É uma mulher música (propositadamente, no género feminino), nos diferentes âmbitos que isso envolve: cantora, compositora, guitarrista. Trabalha em teatro, praticou dança e escreve. A sua música é livre e resulta da mistura das várias influências ao longo da sua vida. No dia 9 de setembro estará no Manta’23, em Guimarães, ciclo que este ano se dedica à música lusófona perfumada com referências africanas no Centro Cultural Vila Flor.



“Nem te ocorra mudar / O que em ti é inquieto” [excerto da música “Luísa”, do álbum Uma Música Angolana]. Se considerarmos este excerto de uma música tua e analisarmos o teu percurso artístico, verificamos que os teus discos têm, cada um, um espaço muito próprio e distinto. Consideras-te uma artista ousada, talvez com uma certa inquietação, como diria o José Mário Branco?

Inquieta sim, sem dúvida. Eu acho que é essa inquietação que me move a escrever canções, de disco para disco. Uma certa vontade de encontrar novas linguagens dentro da música, na escrita das letras, das canções. Encontrar alento, encontrar respostas, encontrar um certo sentimento de pertença. Ao longo destes quase 12 anos de carreira, destes 5 álbuns, o meu trabalho tem tido um percurso que se move por essa inquietação. A parte da ousadia… não sei, ousadia é difícil, é difícil ser ousado… é um termo mais subjetivo. Acho que o meu trabalho não é assim tão ousado, diria que é mais repousado. É um trabalho muito autoral, com uma certa coerência interna, talvez pela escrita e pela voz, enquanto produtora. Muitos dos meus trabalhos são produzidos a nível musical por mim: arranjos que são feitos por mim e circulam à volta da minha voz como cantora, num sentido mais poético, musical. Isso faz com que o trabalho seja coeso entre si nos vários discos. Simultaneamente, eu não me acomodo. Há sempre essa tal inquietação, ao mesmo tempo que tenho sempre a sensação de que há novos caminhos por explorar na combinação de elementos que talvez possam ser os mesmo de sempre em cima da mesa: a poesia, os vários ritmos de Angola, que é o meu país, do Brasil ou de Cabo Verde. Só por aí, há muitas variáveis. São elementos que me influenciam muito, além da linguagem do jazz, em que há sempre mil combinações possíveis e é quase infinita. É essa a perceção do meu lado, do lado de quem produz. Também me parece ser a do lado de quem escuta. Tu achas que o meu trabalho é ousado?

Eu acho que é, se olhamos da perspetiva de que pensa o lugar em que a sociedade insiste em colocar uma mulher artista, angolana. Isto numa ótica mais política e tendo em conta a tua consciência feminista.

Nesse sentido concordo contigo, totalmente. É o desplante e a ousadia de fazer coisas que não nos são atribuídas. Isso é uma luta diária, ano após ano, disco após disco, sair dessas caixinhas para onde somos empurradas.

Como se deu a tua aproximação à música?

Desde criança que sempre tive personalidade artística e vontade de estar em palco. Eu sou de Luanda, onde nasci e cresci. Em Luanda não havia nenhum conservatório de música. Durante toda a minha infância tive aulas de dança, que era o que havia, até sair de Luanda. Até aos 18 anos fiz dança clássica, modern jazz, e fiz vários espetáculos. A música surgiu muito cedo, mas de uma forma menos estruturada, ainda na escola. Fazia alguns espetáculos no âmbito escolar e a partir dos 9, 10 anos, comecei a cantar em público. Já na adolescência tinha vários amigos a aprender a tocar guitarra e eu tinha uma em casa que era do meu pai. Comecei a aprender a tocar e foi nessa altura que compus as primeiras canções. Como disse, era num ambiente mais escolar, mas era uma coisa que fazia parte da minha vida. Eu tinha uma agenda muito preenchida desde a escola até aos espetáculos de dança, coisas de teatro e de música. Quando vim para Portugal fazer a universidade, estudei Ciências da Comunicação, não estava a pensar dedicar-me à música, até porque me parecia, isso sim, ousado. Pegando na tua primeira pergunta, parecia demasiada ousadia querer dedicar-me à música. Eu tinha de ter uma profissão, esse tipo de pensamentos que toda a gente tem. Pensava ser jornalista. Durante a licenciatura voltei a fazer participações. Fiz algumas colaborações com pessoal do hip hop consciente, colaborei com um rapper angolano chamado Bob Da Rage Sense. Foi uma altura muito fixe, fazia backing vocals, conheci um pouco do circuito underground do hip hop, que é um género de que sempre gostei muito, pela parte política e lírica, sempre me inspirou. Depois fiz Erasmus em Barcelona e, nessa altura, houve várias coisas que mudaram na minha cabeça, devia ter para aí 20 anos… comecei a pensar em abordar a minha vida de outra forma. Fiz um concerto lá, voz e violão, e a partir dai as coisas começaram a acelerar e comecei a fazer vários concertos em clubes. Depois tive um trabalho em Madrid e mudei-me para lá um tempo, onde comecei a tocar música lusófona e as minhas canções em vários clubes pequenos. Tinha também algumas colaborações com alguns músicos de lá: a coisa andava bem, as pessoas tinham algum entusiasmo em me ouvir cantar. Mas tudo ganhou forma quando fui convidada pela cantora galega Uxia, para participar no festival Cantos na Maré, edição de 2010. É um festival grande e a participação motivou-me a gravar um primeiro disco, que saiu em 2011, Clave Bantu. Um álbum coerente com a minha carreira, numa vertente de artista independente, o que é um desafio, mas também uma escolha, sempre fiz isso com muito compromisso. A partir dai comecei a trabalhar em música profissionalmente e já lá vão cinco álbuns. 

E tu iniciaste a guitarra a tocar de ouvido ou tiveste aulas de teoria musical?

Eu sou uma artista autodidata. Aprendi a tocar guitarra já no tempo da internet. Havia alguns sites de cifras de música brasileira, cifras.com ou cifraclub — outros guitarristas que acompanhem esta entrevista podem também conhecer. Eu pegava o violão do meu pai e via nos sites o desenho dos acordes. Assim, fui adquirindo uma espécie de vocabulário harmónico, principalmente com a música brasileira mais próxima à bossa nova, que eu gostava muito. Isso foi-me dando um repertório de acordes que eu depois fui utilizando, adaptando os ritmos mais africanos na mão direita e usando a harmonia na mão esquerda, mais jazzística. Isso deu uma combinação muito livre e um pouco única na forma de tocar e de compor, talvez por eu não ter passado por nenhuma escola. Todas as minhas músicas giram à volta dessa primeira composição, que é ao violão, já com algum ritmo e com uma sequência harmónica própria. E depois, com a minha voz e com as minhas letras. Sou uma artista que vem dessa combinação de voz e violão, tudo parte dai. Costumo dizer que eu aprendi en la calle, de um lugar de exploração do instrumento, das possibilidades, sem uma orientação ou uma certa contenção que a educação musical formal exige. O que também é um caminho muito rico, mas que eu não tive acesso. Foi entre amigos que aprendi a tocar.

Essa liberdade é muito interessante, e quem faz um percurso como o teu, é magnífico.

É fixe dizeres isso, obrigada. Eu acho que isso é uma das coisas que caracteriza a música africana. Porque o âmbito da aprendizagem dos instrumentos no contexto africano, principalmente nas músicas populares, é na família, nos encontros, nos convívios. No Brasil também é muito assim, principalmente na música popular. Mesmo no próprio hip hop, as pessoas aprendem a produzir de uma forma muito intuitiva. Dai eu estar muito próxima do jazz, que atualmente é uma música que tende a ser mais de academia, mas também tem realmente essa característica um pouco mais permeável e livre, que me atrai. 

E a forma como crias… imaginas primeiro a música na totalidade na tua cabeça, falando mais da parte musical, ou vais experimentando melodias com a guitarra?

Isso foi mudando ao longo dos anos. No início era um processo muito mais intuitivo. Com o passar dos anos e com o acumular de experiência, começou a criar-se uma espécie de método, de ritual, rotina de composição. No meu caso, é complicado não falar da escrita porque, efetivamente, eu parto da escrita das palavras, e são as palavras que me dão pistas para uma melodia, pelo próprio som delas, pelo seu contexto. Pode ser uma canção mais solar ou uma canção mais noturna, mais melancólica, ou com um caráter mais político. A partir dai, eu penso o ritmo e não, necessariamente, a harmonia. Com o ritmo já construo uma certa melodia ou intenção poética relacionada com a própria musicalidade do poema. Nesse processo, a canção surge, normalmente, muito rápido. Eu não fico muito tempo a trabalhar nas canções. Mas o que eu preciso é de um estado de espírito repousado, um pouco mais calmo. Tanto que eu só componho quando estou somente a compor, ou seja, quando paro todas as outras coisas. Eu não tenho muitas ideias, não componho muitas canções. Tenho colegas que compõem muitas canções. Eu posso passar um ano inteiro sem compor uma canção, mas eu sei que para compor uma canção eu preciso ter o meu violão, ter papel e caneta e um momento de pausa prolongado para pôr para fora ou para curar essa inquietude que falávamos no início. É um processo muito bonito, mas muito pouco racional. Ao contrário de todas as outras coisas na minha vida, que eu tendo a querer controlar ou a ter uma abordagem mais racional, com a composição e com a interpretação em palco as coisas são mais fluidas, também caóticas e livres.

Nota-se nos teus discos que há essa influência do jazz, com momentos de improviso, com a presença de instrumentos de sopro, cordas. Como fazes os arranjos dos discos?

Em geral, tenho muitas ideias de arranjos para todos os instrumentos e tendo a comandar esse processo, mas trabalho com outros músicos. Eu costumo dizer que ninguém entende melhor o teu instrumento do que tu. Faço direção musical e, por exemplo, quando faço canções para discos com um objetivo específico para enquadrar um álbum, venho com uma ideia de uma musicalidade, de qual é o som do disco, que instrumentos usar, quais são os ritmos, qual a história desse disco. Eu tenho um papel muito ativo nessa parte. Trabalhamos juntos na sala de ensaio. Também há muitos arranjos que são feitos pelos músicos, como em qualquer outro projeto, mas eu sempre tenho uma mão arranjista nas minhas canções. 

Constróis ao vivo, não pensas/crias primeiro com o papel, vais construindo à medida que experimentas tocar ou cantar e ao vivo com os outros músicos. É um processo interessante…

Às vezes eu penso que as minhas melodias, as minhas canções, têm uma veia de improviso, de solo. Improvisar “aquele” verso em cima “deste” acorde e depois fixar isso e sair de lá uma canção. Mas sim, eu não teria essa capacidade de pensar num acorde, de quais são as notas que lá cabem. Eu não penso dessa forma, eu canto, vejo se soa bonito ou não, e se fica bonito, fica.



Quais são as tuas referências musicais?

Alguns artistas são a minha escola, não tendo uma formação académica na música. Por exemplo, o Paulo Flores, porque eu faço algo que em muitos discos ele já tinha feito, que tem a ver com essa mistura de influências do Brasil e de Cabo Verde: pegar a música tradicional, alguns ritmos como o semba e trazer novas roupagens, um pouco mais modernas. O André Mingas, dentro da música angolana. O Waldemar Bastos e o Bonga, obviamente. A Rosita Palma e a Belita Palma, a Lourdes Van-Dúnem , os N’gola Ritmos… Muita influência da MPB, até difícil de superar… desde Tom Jobim ao Chico Buarque, na forma de escrever, o Djavan, com o qual me identifico muito por causa do seu lado mais livre. Senti-me muito transformada quando ouvi a Ella Fitzgerald pela primeira vez: pensar na voz como instrumento fora do formato canção, ai comecei a usar a voz como ferramenta de construção de arranjos e encarar a voz como um instrumento que dialoga com outros instrumento de igual para igual. Elis Regina, na garra de cantar, na forma de cantar as palavras, a Cesária Évora, a Mayra Andrade, a Lura, a Sara Tavares, como a primeira mulher que eu vi com um violão. O pessoal do hip hp, o MCK. Outra influência é a literatura angolana, a poesia angolana. Musiquei vários poemas angolanos e há qualquer coisa ali na forma como a literatura angolana surge, as temáticas que aborda, a questão de uma identificação identitária sobre o que é ser angolano em que eu me guio muito. Eu vim para cá e trouxe uma antologia de poesia angolana que está na minha cabeceira, que sempre foi uma espécie de bíblia. A partir de um certo momento também me comecei a inspirar muito no cinema. A literatura, o cinema, as viagens, são ferramentas para compor, para criar e que eu considero que são muito importantes. 

Achas que um artista deve ter um papel interventivo, no plano político e social?

Eu acho que há certos corpos no mundo que só pelo mero facto de existirem e resistirem dentro da música já estão a fazer um trabalho político de fundo. Artistas negros, artistas trans, artistas LGBT, mulheres, são grupos que só por resistirem na música ou nas artes, por conseguirem construir uma carreira e expressar a sua voz e serem ouvidas, ouvidos, ouvides, já é um trabalho político de base, e isto é importante. Eu só posso falar por mim, é difícil para as pessoas posicionarem-se politicamente. Às vezes as vidas são precárias, são muitas batalhas, compreendo que o contexto é um bocado alienante e individualizante. Ou seja, pensar no coletivo, pensar fora dos nossos próprios problemas é desafiante. Eu acho que é melhor. Não é só os artistas terem uma intervenção política, é também importante os jornalistas, os médicos, etc., a sociedade como um todo se comprometer em se preocupar com o que é comum. É claro que os artistas, por terem maior visibilidade, têm um impacto maior. Se um artista se compromete com valores que são prejudiciais à sociedade, ou por serem preconceituosos ou por incentivarem a desigualdade, isso é muito negativo. Quando os artistas se comprometem com uma agenda negativa, isso tem um impacto muito grande, da mesma forma que quando um artista se compromete com uma intervenção política. E depois depende dos contextos. No caso de Angola, eu penso que sim, que é importante, porque é um contexto muito desigual e seria bom as pessoas comprometerem-se com algo comum, com o debate público. Seria muito importante preocuparem-se com isso, além das agendas mediáticas, um pouco mais previsíveis, superficiais às vezes. 

Nota-se claramente que nos teus discos há esse lado mais consciente. Gostava de te ouvir falar um pouco sobre o teu último disco, Uma Música Angolana. Não sei se concordas comigo, mas talvez seja o mais amadurecido. O que te inspirou, o que tentas transmitir?

Eu acho que o disco Uma Música Angolana parte de uma ânsia em me reconectar com uma comunidade, com uma sonoridade de banda, com o público, num contexto pós-pandémico. Mas não só: surge também num contexto de um álbum a seguir a um outro a solo, que foi o Dentro da Chuva, e com uma vontade de celebrar. E eu na altura nem sabia exatamente o que queria celebrar. Talvez celebrar estarmos vivos, termos sobrevivido àquilo tudo, uma vontade de superar uma certa melancolia, não me conformar com o fatalismo, com o destino do meu país. Talvez tenha vindo de um impulso assim. Eu morava em Luanda na altura, por isso tem refletido esse encantamento que eu tenho com ritmos de matriz africana, com alguns ritmos que tinha explorado no Brasil. Fala-se de música brasileira dentro da minha música, a cada disco isso vai-se renovando. Neste disco fui buscar o maracatu, por exemplo. Estava a trabalhar com músicos de excelência, tentei construir e apurar uma linguagem que fusionasse um pouco esses ritmos africanos aos brasileiros, aos afro-cubanos, com espaço para improvisação, mas também para arranjos de sopros a dialogar com a melodia da voz. Eu acho que é um disco com essas características. É bem possível que seja verdade que é o disco onde melhor consigo combinar os ingredientes que fui experimentando nos outros discos, agora de forma mais coesa. Ao 5º álbum começas a encontrar-te dentro de uma busca que estavas a fazer.

És uma mulher feminista, com um papel ativo, pelo que conhecemos do teu percurso. Como é que vês o lugar das mulheres na música, nomeadamente o das mulheres angolanas?

É difícil falar sobre isso. Com o passar dos anos essa resposta tem-se tornado cada vez mais pesada para mim, porque é difícil ver as coisas a mudar e uma pessoa sente-se a repetir sempre as mesmas obviedades, digamos assim. E às vezes parece que, pela própria dinâmica do machismo, do sexismo, as nossas contestações não são ouvidas e há muito trabalho a fazer para equilibrar de facto a questão de género na música. Essa é a vivencia de todas as mulheres músicas com quem eu falo, é logo dos primeiros assuntos abordados — a dificuldade em conciliar a vida familiar com a carreira, por exemplo. À medida em que as pessoas vão formando família, isso começa a ser muito desafiante, que é algo que para os homens músicos não se coloca da mesma maneira. Pelo menos, não na maior parte das vezes, na sua multiplicidade de funções dentro da música. Há um brutal desequilíbrio numérico de representatividade de mulheres a compor, a escrever canções, a arranjar, a produzir, a gravar discos, a misturar discos, mulheres instrumentistas. As bandas são quase sempre formadas maioritariamente por homens. Há aqui um desequilíbrio numérico evidente, mesmo que às vezes nas escolas não seja assim — nas escolas até pode haver uma maior parte de alunas mulheres. Depois, como isso se reflete no mercado de trabalho, na profissionalização, é importante analisar porque é que há essa discrepância. Eu acho que é pelo facto de ser um ambiente muito pouco convidativo para as mulheres, muito pouco recetivo, com muito pouco reconhecimento, com diferença de pagamento real entre homens e mulheres, e ser um meio muito masculinizado e muito sexista. Realmente, não sei se ainda existe a ideia de que as mulheres não são capazes de realizar determinadas tarefas, que devia estar completamente ultrapassada. Eu própria sou muitas vezes questionada sobre quem faz os arranjos ou quem teve aquelas ideias, e muitas vezes sou confrontada com a surpresa do outro lado, de se pensar que fui eu que produzi o álbum, que tive a ideia daquele arranjo bonito. Quando és mulher música, além do trabalho como música, tens um segundo trabalho que é ser mulher na música. Quando não estás constantemente a defender o teu valor, estás a apagar fogos dos problemas extra que tens na tua vida por seres mulher na música, que a maior parte dos homens não tem. Seja pela parte da maternidade, seja por causa das pressões estéticas, de como te vais apresentar, de como vais aparecer, com que cara, com que maquilhagem, com que fotógrafo vais fazer as fotos, o tempo que passas no camarim… a maior parte dos homens não perde tempo como as mulheres a preparar-se para os espetáculos. Há uma bagagem que, pelo facto de seres mulher, ou não seres um homem cis, mói, que desgasta, que custa dinheiro e que afeta a tua autoconfiança, justamente por falta de reconhecimento do teu trabalho. E ao mesmo tempo que tens de lidar com essas coisas, tens de superá-las junto de uma comunidade de outras mulheres ou de pessoas não binárias que possam também pôr questões dessa natureza e tens de superar, porque não adianta de nada te renderes, não adianta de nada só te queixares. É preciso olhar para a frente e tentar apoiar as pessoas que estão na mesma situação que tu, nem que seja validando os problemas que as pessoas têm — que não podem ir ao ensaio porque têm de ir buscar a criança, por exemplo. Muitos homens começam a ter esse tipo de responsabilidade, felizmente as coisas estão a mudar, é importante dizer essa frase. Mas ao mesmo tempo, não me parece que estejam a mudar na velocidade desejada. Eu gostava muito que as novas gerações de mulheres músicas tivessem uma situação mais igualitária na música, onde as bandas tenham mais paridade, onde haja mais mulheres a produzir, a compor, a escrever canções, a ganhar direitos de autor. Isso na verdade vale para todos os lugares do planeta. Há alguns sítios onde existe mais paridade mas, no geral, é um problema de todos os lugares. A representatividade de mulheres em festivais, que é um tema que tem sido muito contestado. Eu sou da opinião que o Estado deve intervir nesses contextos de desigualdade, e devia haver mais programas e apoios específicos para as mulheres músicas, para pessoas não binárias, para pessoas racializadas. Enfim, tudo aquilo que não é o grupo maioritário, mais privilegiado nas sociedades. Ao mesmo tempo em que eu digo tudo isso, levanto o dedo em riste, mas acho que não nos restam mais alternativas do que seguir em frente, continuarmos a fazer o nosso trabalho e tentarmos que não contamine a nossa criatividade. Protegermo-nos financeiramente, tentar ter carreiras mais sustentáveis ao longo do tempo, protegermo-nos das pressões estéticas, de idade, corporais, todas as coisas que atingem as mulheres em todas as profissões. Para certos grupos, só o facto de resistir na música, já é um ato revolucionário. Trata-se disso ao final do dia: de resistir, não desistir, empurrar as coisas para a mudança, consciencializar os nosso pares, às vezes à custa de algumas discussões. Eu acho que as coisas podem efetivamente melhorar. É importante é que se tenha noção e que sejam visibilizadas as dificuldades das mulheres, porque às vezes fica-se num discurso muito abstrato e não se entende muito bem em que é que a música é machista. 

Achas importante a existência de coletivos de mulheres músicas?

Já existem alguns. Existem esforços de mulheres músicas em Portugal para articular essas demandas e para introduzir algumas mudanças nesse sistema. Acho que há muita gente preocupada com isso, cada vez mais. Há alguns projetos artísticos, que não são necessariamente coletivos políticos, como um projeto de que fiz parte, organizado pela Marta Hugon, o projeto Calíope, de mulheres compositoras. Um projeto com imenso valor e que, mesmo assim, é difícil empurrar para a frente. Existe o coletivo shesaid.so, um coletivo internacional, mas que tem uma certa força em Portugal — eu faço parte de algumas das comunicações. Eu penso que sim, a melhor forma das coisas mudarem é com as pessoas a envolverem-se em projetos coletivos, não sermos só vozes isoladas a falar sobre esse assunto

Para terminar, fala-me dos teus projetos atuais e futuros.

Desde a pandemia, comecei a diversificar um pouco mais as minhas atividades artísticas. Tenho estado a colaborar desde 2021 com uma companhia de teatro italiana, liderada por Pippo Delbono, com um espetáculo chamado Amore, que é uma coprodução internacional que tem girado a Europa toda. Participo a interpretar e a cantar. É uma das experiências mais ricas da minha vida, fazer temporadas em várias cidades europeia. É um projeto fascinante, tem ocupado muito a minha agenda. Além de trabalhos a solo e com banda, também colaboro com uma pianista de jazz chamada Julia Hülsmann – participo como cantora em duas bandas que ela tem e agora vamos gravar o álbum do octeto, um projeto de jazz maioritariamente formado por mulheres. Além disso, tenho dedicado algum tempo à escrita. Já é muita coisa!


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