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Fotografia: André Ferreiro
Publicado a: 06/04/2022

A importância da intenção.

Alice Neto de Sousa: “Quando ouço música aquilo que procuro no fundo é sentir, mas muitas vezes é um encontro com o sentimento”

Fotografia: André Ferreiro
Publicado a: 06/04/2022

[Preâmbulo: será difícil fugir à crónica e focar-me na entrevista, ou não tivesse sido esta a mais atribulada de que me lembro. Primeiro a minha agenda não encaixava com a da solicitada poeta, e que bom que assim é. Depois aconteceu-nos passar de um buraquinho de 30 minutos no calendário para uma conversa de hora e meia que se perdeu na pressa de outros compromissos que se seguiam atrasados e no meu, por vezes louco, telemóvel. Perdeu-se toda a gravação da conversa. Amavelmente, a Alice recebeu por WhatsApp as questões que tinham orientado de forma errante a nossa cavaqueira anterior e respondeu uma a uma por mensagem de voz. Não podia deixar de fazer esta nota para, previamente, explicar o porquê da entrevista ser como a podem ler de seguida.]

Separemos as rimas das batidas para dar palco a Alice Neto de Sousa, a poeta do poema “Poeta” que já correu o mundo lusófono através da Internet. Escreveu-o para a Powerlist 100 da Bantumen a ouvir a música “Esquinas” do Dino D’Santiago (com Slow J). Não para a repetir, “mas mais numa perspectiva de apanhar um pouco a vibe, a mensagem do que quero transmitir”, explica. E de facto não é dançar que nos apetece quando a ouvimos dizer o poema no programa Bem-Vindos da RTP África. A cadência, as repetições e a performance, essas sim transportam-nos para o universo desta publicação e Alice até diz que gosta muito de repetir rap “porque ajuda a treinar a dicção e o ritmo”.

Nunca participou na Liga Knock Out, mas adora “o sangue” desta e dos angolanos Reis do Rompimento. Ainda não foi desafiada por alguém do hip hop a aceitar a colocação de um beat por baixo de um dos seus poemas, mas vai dizendo “mandem mensagem” porque “seria um casamento interessante”. E ainda não competiu num poetry slam, mas foi nesse contexto que, através de um workshop com a poeta Li Alves em 2021, teve contacto com esta nova forma de comunicar poesia. “Quando entro em contacto com a poetry slam, que é poesia sobretudo para ser dita, eu descubro a vida e o corpo que as palavras podem ter”, conta. Porém, há mais parecenças com o rap na arte da Alice: “a parte rítmica, a parte da mensagem, do sentimento e de algo que é real, que é teu, que trazes”.

Não é por acaso – agora fugindo à entrevista em si – que ao longo dos anos temos visto rappers a dizer poesia. Kanye West, entre outros, na Def Poetry Jam – programa exibido pela HBO entre 2002 e 2007 com apresentação de Mos Def. No final de 2019 NERVE inaugurou o espaço PURGA e o H2Tuga em 2015 celebrou o Dia Mundial da Poesia com Versos Avulso.

Voltemos à Alice que nos deixou uma playlist de músicas que costuma ouvir enquanto escreve. Façam play durante a leitura da entrevista que se segue e arranjem espaço para a poesia. “Soltem os vossos poemas”, incita esta poeta.



Li que escreveste o poema “Poeta” a ouvir a “Esquinas” do Dino com Slow J em loop. Escreves sempre a ouvir música?

Eu acho que a parte interessante de ouvir música é que leva-nos a uma outra dimensão, pelo menos para mim. Eu sou aquela pessoa que quase não consegue dar um passo à rua sem colocar os fones para ouvir música, como se várias partes da minha vida precisassem de uma banda sonora. Então, quando eu estou a escrever, da mesma forma em que tento criar esses ambientes no dia-a-dia, tento entrar num espaço. O que não significa que vou estar a ouvir essa música durante a escrita do poema — pode ser antes, pode ser durante –, mas a ideia é criar um espaço comum à ideia que quero passar. Por um lado, eu estava a ouvir essa música do Dino, que é uma música até de certa forma mais agitada, e o poema “Poeta” até acaba por ser um bocado mais melancólico. Ou seja, eu não vou ouvir muito no sentido de repetir o que está a dar, mas mais numa perspectiva de apanhar um pouco a vibe, a mensagem do que quero transmitir.

Eu tento evitar esses extremos, os sempres e os nuncas, mas a ideia é que a música faz parte do meu processo de escrita. Eu consigo escrever sem música, naturalmente, mas associo também muito a escrita à música. 

Que música?

Imagina, a música do Dino, eu acho que era mais difícil escrever sobre essa música. Sobre no sentido de “por cima”, por ser agitada. Eu normalmente preciso de músicas mais brandas, mais calmas, que me permitam estar num certo espaço, mas ainda assim dentro do meu espaço, coexistir ao mesmo tempo. Por curiosidade, quando estava a escrever o poema “Capital” e entre outros poemas que escrevi às prostitutas do Martim Moniz, a música que estava a ouvir era a “When the Party ‘s Over” da Billie Eilish. Eu ouvi aquilo em loop. Ouvir em loop é a minha vida [risos], ouço as músicas até gastar. Não estou mesmo a brincar. É como quando repetes tantas vezes uma palavra que ela perde sentido. No meu caso ouço as músicas para ganhar cada vez mais sentido.

E o que retiras dessas músicas? Ou o que procuras nelas?

Retiro a energia, principalmente, e as mensagens. Eu sempre achei estranho as pessoas que põem música para fazer ambiente em pano de fundo. Para mim, a música não pode ser apenas um pano de fundo, a música tem de ter uma intenção. E essa intenção vai variar, às vezes a intenção pode ser mesmo a de relaxar, mas estou sempre a prestar muita atenção às músicas, àquilo que ouço e que retiro. Às vezes retiro algo que nem estava a tentar retirar. A música tem esta capacidade também de influenciar o nosso estado de espírito. Às vezes estamos mal e queremos ouvir uma música mais triste para nos validar. Ou o contrário. Quando ouço música aquilo que procuro no fundo é sentir, mas muitas vezes é um encontro com o sentimento.

O que é num rap parecido com um poema?

[risos] Não sei bem, não sou do rap. Pensando nos poemas para serem ditos, aquilo que gosto no rap é que dá-nos o treino para dizer bem um poema. Eu gosto muito de dizer rap nos meus tempos livres, de repetir, porque ajuda a treinar a dicção e o ritmo. Encontro muito esta semelhança entre o rap e a poesia dita, neste caso, porque são palavras que estão a ser ditas e se calhar no tipo de poesia que agora estou a escrever e pensando que estou a dedicar-me mais a questões sociais, a dar voz e corpo a certos temas sociais, encontro também aí essa semelhança no rap. Tens uma mensagem. Eu sinto que tocam-se muito estas duas formas de arte que acabam por ser a mesma de certo modo. A parte rítmica, a parte da mensagem, do sentimento e de algo que é real, que é teu, que trazes.

A tua poesia funcionava bem com beat, como sei que já te disseram. É algo que já pensaste fazer? 

A primeira vez que disse o poema “Poeta” foi na Power List 100 da Bantumen com o objectivo de distinguir as cem personalidades negras mais influentes da lusofonia. E quando eu saí de lá veio um rapaz ter comigo, que eu não conhecia, e que me disse “não és rapper, és poeta, mas consigo imaginar o teu poema com um beat por baixo”. Esse foi o primeiro e depois várias pessoas me disseram o mesmo e também que parece em algumas partes do poema que estou a dizer um rap. Quando tem os “ismos”, se calhar pelo ritmo acelerado pode parecer um pouco um rap. Se já pensei pôr um beat por baixo de um poema meu? Não sei fazer isso, mas já tenho alguns convites associados ao poema “Poeta”. Espero que aconteçam, no sentido em que o poema pode assim ganhar uma nova vida, pode amadurecer e ter outros caminhos através de outros projectos, se calhar não sobre a minha voz, mas seria interessante perceber na voz de outros artistas. Sei que quando falamos de beat estamos mais a falar de rap, mas já tive algumas propostas interessantes, musicais, para dizer o poema. Mais fado ou mais soul. Não sei se vai acontecer, mas é algo que se acontecer me deixará muito contente.

Quem do rap já te desafiou a fazê-lo?

Ninguém [risos]! Mandem mensagem, espalhem. Os convites que tenho não são do rap, mas seria um casamento interessante.

Para o Rimas e Batidas é particularmente interessante a forma como te vimos retirar o poema do papel na RTP África. Em determinados círculos acredito que os poetas digam os seus poemas, mas para o público mainstream não é tão habitual. Escrever poesia foi sempre, para ti, acompanhado deste exercício de performance?

Eu tinha o meu estilo e continuarei também a escrever poemas se calhar mais para o papel no sentido em que são poemas não tanto para serem ditos, mas para serem lidos e relidos porque também acho que é interessante esse lado da poesia em que às tantas estamos ali a mascarar e a deixar certas nuances que não são percepcionadas logo no início e que é preciso reler. Porém, esta ideia de tirar do papel veio muito do poetry slam. Quando entro em contacto com o poetry slam, que é poesia sobretudo para ser dita, eu descubro a vida e o corpo que as palavras podem ter. Eu em Março de 2021 fiz um workshop muito bom com a Li Alves. Fui à procura deste workshop porque já estava a pensar nisso, a pensar que existe muito esta questão da publicação, de ter-se algo publicado, mas “as bibliotecas estão a arder” — retirando aqui uma citação do poema “Arte Poética” do José Luís Peixoto — “de versos contados” e ninguém está a ler esses versos, isso já sou eu a dizer. E às tantas aquilo que me tem dado mais gozo e mais satisfação é perceber-me e libertar-me desta ideia de que para ser poeta se tem de ter algo publicado. Não, a poesia ganha voz também através da palavra para ser dita e, claro, quando sobes a um palco. Só por curiosidade, o primeiro palco a que subi assim mesmo à séria e para dizer poesia foi em 2021. As pessoas pensam que eu sou mais craque, mas não, eu sou muito verde nestas andanças. Simplesmente tenho abraçado todas as oportunidades de subir ao palco e aproveitar o momento. Quando falamos da palavra “performance” – que é algo que me têm dito, “gostei da tua performance” — é porque realmente há todo um momento. Por exemplo, o poema “Poeta” muitas pessoas o ouviram de uma forma virtual à distância e que tem o seu quê de sensibilidade. Para mim, a performance também tem associado um espectador e um público e eu sinto que o poema “Poeta” quando foi dito pela primeira vez na Powerlist da Bantumen criou ali um momento. Mais do que um papel escrito e publicado, aquele momento que se cria quando as palavras ganham vida, ganham corpo, chegam às outras pessoas, é impagável. Então, eu até penso neste exercício de performance como a forma mais crua da poesia. Pensando no poema “Poeta”, as pessoas às tantas perguntavam-me se era um poema, se era storytelling, se era uma canção uma vez que eu depois misturo ali aquilo que é o poema e aquilo que é a forma de vos dizer o poema. Aí os caminhos são infinitos.

A resposta curta é: não, não foi sempre acompanhado deste exercício de performance no sentido em que até escrevia muito mais para mim do que para as outras pessoas, mas a partir do momento em que descubro este outro lado da poesia, para a dizer para o outro, encontro muito a explorar na palavra para ser dita.



Li sobre o poema “Capital”, que só sabes do teu olhar sobre as prostitutas do Martim Moniz. Isso é algo que te orienta sempre: escrever apenas sobre aquilo que sabes e sentes sem a pretensão de saber tudo e sentir tudo? (Também dos rappers esperamos que rimem sobre a sua realidade).

Aquilo que eu diria e respondendo à primeira parte ligada às prostitutas do metro do Martim Moniz, o cuidado é mesmo esse, é dizer que eu não estou a escrever sobre as prostitutas do metro do Martim Moniz. Eu não as conheço. Eu estou a escrever sobre o meu olhar sobre as prostitutas do metro do Martim Moniz. Que pode ou não corresponder à realidade. Então, como poetas, naturalmente nós somos o nosso ponto de partida, por isso aquilo que nós vamos escrever vai estar enviesado com aquilo que são as nossas vivências. Provavelmente eu também peguei e reparei nas prostitutas do metro do Martim Moniz e comecei a escrever sobre isso porque algo na minha realidade despertou a que isso acontecesse. Provavelmente foi a questão de ter tirado uma licenciatura e um mestrado que está ligado ao corpo e haver para mim esta inquietação de imaginar o corpo como este lugar em que eu habito, mas outra pessoa também habita. O corpo como se também fosse um ofício. Então, a partir do momento em que eu estou a fazer isso não estou bem a falar das prostitutas do metro, estou a falar da minha própria forma de percepcionar o corpo. Porque, aqui seguindo as tuas didascálias de que também estamos à espera que os rappers escrevam sobre a sua realidade, eu não quero ser uma wannabe na poesia. Eu tenho que escrever aquilo que eu sei ou então colocar-me. Também posso querer de repente ser uma pedra e imaginar-me a ser uma pedra, mas tenho que sentir essa realidade, tenho que ter a capacidade de me colocar naquela pele sempre com a humildade de perceber que é a tua perceção sobre aquela realidade. Aliás, a realidade é um conjunto de várias percepções e a sensibilidade poética ou a sensibilidade no seu geral vai ter a ver contigo. Então volto a isso. Quem é que são os rappers que admiramos mais? São aqueles que nos dizem a realidade nua e crua. Às vezes também temos a parte dos paninhos quentes, as metáforas, mas na poesia em que agora estou a investir mais é difícil saíres de ti e escreveres algo que seja realmente teu. Podes fazê-lo e é um exercício, mas a partir do momento em que estás a fazê-lo já estás de alguma forma a transformar-te. Isto para dizer que temos que ser leais à nossa escrita e às pessoas. Da mesma forma que dizem que os rappers cantam aquilo que é a sua realidade, eu também escrevo aquilo que é a minha realidade. E quando não escrevo a minha realidade, escrevo a minha percepção sobre a realidade. Por mim eu sabia de tudo e sentia tudo, falava de todos os temas sociais [risos], mas sempre com esta ressalva de que será sempre o meu ponto de vista, o meu ponto poético de partida.

Acreditas que essa é a forma certa de fazer intervenção?

Eu sinto que a forma certa de fazer poesia para chegar ao outro é sermos reais e o mais leais possível.

Dizes também que não queres que o tema “racismo” te defina e que tens vários gritos. Quais são eles?

Eu tenho-me debatido com isto. Naturalmente, as pessoas conhecem-me como a poeta que escreveu o poema ligado ao lápis cor de pele e daí é que vem todo o mediatismo e os olhos sobre mim. Como diria o Tupac, “All eyez on me” [risos]. Mas eu tenho muitas e múltiplas facetas. Essa é a que me colocou o olhar do público e eu acho que até há uma reflexão interessante que podemos fazer, que é: esta é uma das minhas inquietações [mas] porque é que esta inquietação falou mais alto?

Tenho mais gritos, sim. E várias inquietações que quero trazer ao de cima. Comecei com este grito do “Poeta” que tinha para soltar e ainda bem que soou e que as pessoas ouviram, mas eu tenho mais e é por aí que me vou seguir, por estes gritos se calhar mais sociais. Não querendo fazer teasers de temas que depois podem nem sair, é só olharmos à volta e pensarmos naquilo que estamos a tentar não ver com tanta força. É isso que vou tentar trazer ao de cima, naturalmente do meu ponto de vista.

O teu objectivo é ser conhecida como poeta? Ou pelo que dizes na tua poesia? Ou uma não vive sem a outra?

Eu nem sei. Eu entretanto revelei-me e divulguei-me como poeta assim abertamente e com esta exposição toda agora. E eu até tenho três Ps: sou pessoa, sou poeta e sou psicomotricista. Eu acho que nunca tive como objectivo ser conhecida como poeta. Eu nasci poeta e isso para mim é algo que tem sido cada vez mais evidente. Ser poeta vai muito para além de apenas publicar, de dizer poesia. Tem a ver com a tua percepção e a tua forma de sentir o mundo. Falo por mim porque às vezes penso muito nisso. O primeiro poeta provavelmente não escreveu nada, digo eu. Mas acho que a poesia tem esta parte, eu pelo menos tenho este desprendimento tal de que eu sou poeta, mesmo quando eu pensava que não era — porque depois eu acho que isto é algo que está latente em nós e volta e meia pode activar ou não activar consoante as fases em que estás da tua própria vida, também não precisamos todos de ser poetas para escrever poemas de amor porque a poesia encontra-nos, nós não fazemos disso um objetivo. Nós estamos numa maquinaria tal, às vezes, naquilo que é o nosso dia-a-dia e naquilo que são os nossos objectivos, que terminamos todos os graus de escolaridade e de repente temos de existir. Existindo eu sem estes balizamentos, quem é que é a Alice no meio disto tudo? E aí é que paro e digo: eu sempre fui poeta. 

Ser conhecida como poeta? Para ser sincera não estava à espera, de longe podia esperar que tivesse tido este alcance como poeta ainda por cima. Acho que isso também tem a sua beleza. Eu acho que para algumas pessoas eu serei a poeta que escreveu o poema do lápis cor de pele. O poema “Poeta” é muito maior do que eu e às tantas aquilo que eu sinto é que para aquelas pessoas o impacto é tão grande que se calhar nem vão saber o meu nome, também é essa a beleza. O poema criou um espaço de reflexão. As pessoas não se estavam a questionar quem era a Alice, o poeta vem muito depois porque primeiro o que chega é a mensagem. Para mim é uma força muito grande perceber que a mensagem e o poema são maiores do que eu. Eu sou a poeta, eu dou voz a estes temas, mas eu não sou o foco. E o exercício tem sido esse, o de pôr o foco na poesia, no poema.

Quero continuar a dizer poesia, a ser poesia e a espalhar poesia. É muito por aí.

Estás envolvida nos espectáculos do movimento poetry slam? Podes falar-nos um pouco sobre isso?

Eu acho que a parte positiva que sinto é que estou a dar ainda mais visibilidade ao slam e isso é importante para mim, por isso é que falo tanto do poetry slam que teve um impacto na minha forma de dizer poesia.

Comecei com esta ligação em 2021, com um workshop com a Li Alves. Depois a partir daí tudo se abriu. Aliás, para ir mais longe, a primeira vez que ouvi falar de poetry slam foi no Clube dos Poetas Vivos, que é um clube de poesia, em que a Teresa Coutinho teve como convidada a Raquel Lima. A Raquel Lima foi a primeira pessoa a quem ouvi falar de poetry slam. Nunca tinha ouvido falar e fui pesquisar. A partir daí os voos da poesia e a forma de ver poesia e sentir poesia foram inúmeros. Eu já tinha pensado na spoken word poetry, de que existem movimentos bastante sonantes fora de Portugal e acho que seria interessante trazermos também este movimento para a língua portuguesa e para poesia para ser dita aqui também, acho que seria interessante.

Eu nunca competi num poetry slam com pontuação. Eu adoro a Liga KnockOut e gosto muito dos Reis do Rompimento e tudo mais, do sangue. Mas é mesmo para aplaudir porque quando sou eu quem está no palco a parte de alguém avaliar o que tu estás a dizer acho que é um pouco mais difícil. Mas também este espírito competitivo dá um certo quê de desafio para ti próprio no poetry slam, por saberes que a partir do momento em que vais subir àquele palco tens de ter algo muito relevante para dizer. Tu sabes que as pessoas vão estar a ouvir-te e a avaliar-te, tu queres pôr o público a vibrar, queres ter uma punchline. E a parte do poetry slam de que eu gosto é que aproxima-nos do público, fazes aquilo pelo público, pelo momento, pela sensação. Ir para um poetry slam é sentir isso na pele, as pessoas vão falar sobre aquilo que é a actualidade e vais identificar-te. Acho que isso é a parte interessante também desta nova face da poesia.

Acompanho o máximo que consigo. Para quem tem interesse, recomendaria assim desde logo pesquisarem pelo Portugal Slam, esse é o site que diria chave e aí podem encontrar os movimentos de slam que existem. Eu recomendo Todo Mundo Slam, o Slam das Minas Coimbra, e a partir daí é divertirem-se, procurarem espectáculos. Eu no início conhecia muito pouca gente ligada à poesia e não esperem por ir com alguém. Vão e vão perceber que é uma família. Apareçam, se têm algo para dizer peguem no mic e digam. Temos de estar permeáveis à poesia e a esta possibilidade de contagiarmos as pessoas. O pior que pode acontecer é terem um poema engasgado na garganta. Soltem os vossos poemas.

Sentes que falta cultura de poesia em Portugal? E porquê? Estará relacionado com a forma como a poesia é leccionada nas escolas?

Eu agora tenho detectado — e alguém mais entendido nestes assuntos pode fazer uma pesquisa mais elaborada — que nós temos vários momentos em que a poesia nos pode fazer mais sentido. Em idades mais precoces ou em idades mais distantes. Numa altura em que fiz umas entrevistas a pessoas com mais de 65 anos, o que achei muito interessante foi encontrar muitos poetas. Não se assumiam como poetas, acho eu, mas pessoas que naquela fase da sua vida escreviam poemas, tinham poemas publicados, quase como uma herança, alguns deles para passar às outras pessoas. Eu não sei se é uma falta de cultura da poesia, acho que é consequência daquilo que é o nosso dia a dia, da correria. A poesia está lá, está é inerte e precisamos de algo que nos acenda. Normalmente esse algo é pausar, é parar, é termos um momento da nossa vida em que estamos menos atordoados com o que está à nossa volta. Por acaso esse momento para mim aconteceu agora, no sentido em que fechei o meu ciclo de estudos e tive outra independência emocional para me deixar conectar com a poesia. Porque a poesia requer tempo, a poesia não é uma série em que pegas na Netflix ou noutro canal qualquer e vês. A poesia requer mesmo que estejas presente e, pensando naquilo que podemos cultivar mais, eu diria que nos faz falta cultivar mais estes tempos de contemplação, de sentir, de emoção, de estarmos ligados ao nosso mundo interior e ao exterior também. Às tantas nós estamos ligados é às redes sociais, não é? [risos] O que faz falta é mesmo estarmos presentes.

Pensando nos programas lectivos, eu adorava as aulas de português, mas isso sou eu que já estava inclinada para a escrita e para as letras. Divertia-me imenso a fazer composições, despachava os testes para chegar à parte da composição. Mas eu compreendo que para alguns colegas aquilo era um sacrifício. Há autores que nunca chegamos a conhecer e que só na vida adulta é que vimos a conhecer, mas não podemos culpar a escola. Eu só mais tarde é que comecei a gostar do [Fernando] Pessoa porque nós demos aquilo a uma exaustão tal [risos]. Nós na escola a lógica é muito de teste, nota, teste, nota, e não se dá o tempo necessário para as pessoas realmente aprenderem e assimilarem o que está a acontecer. Claro que se tu olhares para um livro como algo de onde vai sair uma nota, esquece, a relação e a dinâmica que estás a criar com o livro é completamente diferente. A Florbela Espanca encontrei-a por acaso e a partir daí a minha relação com ela também foi diferente. Há pessoas que podem numa aula também criar essa ligação, mas falas aqui nestes pólos e creio que vem daí, vem de como esse contacto com a poesia é introduzido. Acho que o cuidado que se deve ter é dar espaço para a poesia respirar, não ser só um exercício de dissecar um poema, de tirar tudo do poema a nível de interpretação ao ponto em que se tira o coração do poema. Acho que é importante darmos espaço aos alunos de se envolverem com o que estão a fazer mais do que encararem aquele momento como um momento meramente avaliativo ou até excessivamente interpretativo. Até porque na poesia não há certo e errado, acho que os poemas dão azo a várias interpretações. Uma vez escrevi um poema que era o “Sentada num banco de arco-íris” e mais tarde alguém me disse “o teu poema fala sobre espera” e eu disse “é? não tinha pensado nisso”. Se o próprio poeta às vezes quando está a escrever não faz ideia de onde saiu aquilo e encontra várias interpretações, é importante deixar esse espaço largo à poesia. Percebo que os professores queiram dar nota, mas isso não pode tirar todo o romance ao poema. A poesia está em todo o lado, não esperem aprender poesia apenas na escola, eu acho que o exercício real é trazer a poesia para o dia-a-dia, para aquilo que é a nossa própria vida. Há uma frase que se ouve muito que diz algo como “não deixar que a escola interfira com a nossa aprendizagem” e no fundo é perceber-se isso, que a poesia não existe só na escola e naquela aula de Português que tiveste. A poesia continua a existir a partir daí e se não encontraste aquilo que procuravas na aula, procura fora da aula.


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