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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 16/02/2022

Um agente da aglutinação.

Alexander Flood: “The Space Between é o que fica entre dois pontos — sejam eles pessoas, lugares, culturas, sons, géneros”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 16/02/2022

Em 2020, o seu HEARTBEAT era o reflexo de alguém acabado de sair da faculdade, ainda à procura de um lugar (artisticamente e pessoalmente falando), mas sempre com o baterismo em primeiro lugar. Em 2022, The Space Betweenao qual dedicámos algumas Notas Azuis — é o mais importante: aquilo que retirou dos primeiros passos e a visão concreta que tem não só como baterista mas também como produtor e compositor. Neste momento, o australiano Alexander Flood é isso tudo, mas mais objectivo, chamando até um nome de peso como o americano Christian Scott aTunde Adjuah, seu mentor, para contribuir para uma faixa.

Para sabermos um pouco mais sobre a obra e a vida deste nativo de Adelaide, fomos encontrá-lo no espaço entre o possível e o digital: uma videochamada. Ficamos agora à espera de vê-lo em breve nos palcos nacionais…



Estava a ler sobre ti e percebi, através de uma outra entrevista que deste, que o teu interesse na música não foi propriamente desencadeado por influência do seio familiar. Foi mais como uma descoberta social, certo?

É isso. Foi mais como uma descoberta social. Existia música em casa. Os meus pais estavam mais dentro da cena da música disco e ouviam muito Bee Gees, Earth, Wind & Fire, entre outros do mesmo género. Mas a audição era muito passiva e estava sempre em segundo plano. Lembro-me de ouvir isso no carro e em casa. Depois, como tu disseste, entra a parte social. Eu estava na escola — tinha uns sete ou oito anos — e um dos meus melhores amigos estava a aprender bateria. Durante o período escolar, lembro-me dele ter de sair a meio de algumas aulas para ir ter as aulas de bateria. Lembro-me de me querer juntar a ele. Eu também queria poder sair a meio das aulas com ele [risos]. Foi mais ou menos assim que eu comecei. Passei a ter aulas de bateria e a ser autorizado a sair a meio das aulas [risos].

Falas em ouvir disco sound por causados teus pais mas tu não cresceste nos anos 70, obviamente. E eu presumo que Adelaide tenha o seu próprio ambiente sonoro, bem distinto da Manhattan dos anos 70. Como é a cena musical por aí?

Adelaide tem uma cena musical muito interessante. É uma cidade relativamente pequena, quando comparada com algumas das cidades da Europa e da América. Creio que temos 1,8 milhões de habitantes. É muito mais pequena do que Londres, Los Angeles ou Berlim, por exemplo. O círculo é pequeno mas existe muita diversidade e um bom número de artistas incríveis. É tudo a uma escala mais reduzida. Por vezes isso é muito bom, porque acabas por conhecer toda a gente muito rapidamente, até porque há menos pessoas para conhecer [risos]. Tu acabas por desenvolver uma relação de trabalho muito próxima com diferentes artistas. Por outro lado, o facto de sermos poucos limita-nos de alguma forma. Existe um tecto em determinados aspectos, que limita aquilo que é possível de ser feito aqui. Ainda assim, é uma óptima cena musical.

Agora soaste a alguém que já equacionou mudar-se para outro lado.

Isso está definitivamente na minha cabeça [risos]. É uma das cartas que tenho para lançar no futuro, garantidamente.

Isso pode resultar em mudares-te para uma outra cidade dentro da Austrália ou o plano é ainda mais ambicioso? Já ponderaste ir para outro continente?

Eu gostava de viver na Europa por uns tempos. Talvez no Reino Unido, para testar como correm as coisas lá. Já estive várias vezes na Europa no passado, apenas para visitar, e adorei tudo. Poder ser parte da cena musical de lá seria muito bom para mim.

Quando começaste tinhas noção da existência de algum baterista em específico? Conhecias, por exemplo, os bateristas que tocavam na música que ouvias?

No início eu não tinha mesmo noção de quem eram os músicos que eu já tinha escutado até ali. Eu estava a aprender o instrumento de forma mais estruturada, mais técnica, e não tão musical. Na verdade, eu nem ouvia assim tanta música nessa altura. Era ir às aulas, fazer alguns exercícios, aprender alguns estilos e padrões diferentes. Diria que é um tipo de educação musical mais formal. Só, talvez, um par de anos após ter começado a aprender é que um dos meus professores me deu uma pen USB com uns 100 temas lá dentro, diria eu. Esse professor era baterista de jazz, por isso muita da música nessa drive estava relacionada com o jazz de alguma forma. Havia a Dave Weckl Band, Michel Camilo, Tower of Power, John McLaughlin, cenas do Santana… Era uma bela mistura musical e essa foi a primeira vez em que eu me sentei realmente a escutar e a digerir a música e também a tocar por cima. Naquela idade, eu dava o meu melhor para conseguir acompanhar essas músicas dessa gente toda [risos]. Mas foi isso que me abriu os olhos, tanto para esse universo específico dentro da música como também para aquela coisa de ir verificar quem são os artistas e conhecê-los para além daquilo que se escutava nas músicas. Eu queria saber quem eram os bateristas, quais eram as suas histórias e as suas influências. Era esse o caminho que eu fazia.

E em relação à tua experiência na universidade? Eu sei que estudaste jazz, mas o que é que isso significa ao certo dentro dos moldes académicos australianos? Seguias com atenção os mestres americanos ou existia outro método?

O curso de jazz que eu tirei era muito focado no swing e no bebop. No meu caso, focava-se nos diferentes estilos de tocar bateria dentro dos moldes do som dessa era. Olhávamos para muitos dos bateristas dessa altura. Mas existia sempre a liberdade de te poderes focar no que quer que fosse que quisesses fazer. Para mim, essa foi a altura em que eu comecei a olhar para os discos e artistas de jazz contemporâneo. A certo ponto, comecei a desenvolver o meu próprio som e não tanto a tomar atenção ao que se tinha feito há 50 ou mais anos — o que acabaria por fazer na mesma, apenas deixei de estar exclusivamente focado nisso. Procurei olhar mais para a frente e para o som que eu queria criar, a forma como eu queria soar e aquilo que eu queria contar através da bateria. O meu tempo estava muito dividido e isso era uma coisa boa. Tinha várias coisas pelas quais a minha atenção se dividia e não estava apenas concentrado numa só cena durante o tempo todo.

Consegues situar-me em que altura é que frequentaste a universidade?

Eu comecei em 2015 e licenciei-me em 2017.

E começaste a trabalhar no HEARTBEAT em 2018.

Foi isso. Essa foi a minha primeira experiência enquanto compositor com a intenção de juntar uma colecção de faixas e lançá-las em disco. A intenção era clara: arranjar umas quantas faixas, metê-las na rua para ver o que acontece. Obviamente, à medida que o projecto se desenvolveu, o disco foi ganhado mais substância e conseguimos ligar-nos a uma editora. Por isso, o álbum não seguiu a direcção exacta que eu tinha em mente, o que foi muito bom. Sinto-me muito sortudo pela forma como as coisas aconteceram.

Achei imensa piada ao facto de nesse álbum não te teres ficado pelo kit de bateria convencional — programaste 808s, tocaste tablas, djembê, etc. O teu campo de visão já era bastante amplo nessa altura.

Eu sempre tive interesse pela música no seu geral. Fora daquilo que é a música do Ocidente, sempre gostei de conhecer os instrumentos e os ritmos utilizados pelas diferentes culturas à volta do mundo. Acho que esse meu interesse na música étnica vem desde cedo, quando os meus pais me levavam de férias para fora do país. Graças a isso, tive a oportunidade de conhecer lugares espantosos por todo o mundo — Ásia, Médio Oriente, Europa, América… Desde muito novo que tenho a oportunidade de ver perspectivas diferentes e aprender sobre todos estes lugares, pessoas e culturas diferentes. Isso tornou-se num dos meus grandes interesses. Quando entrei no secundário, comecei também a aprender percussão afinada, como a marimba ou o vibrafone, que são instrumentos já populares no Ocidente. A partir daí, comecei a mergulhar mais nos tambores — congas, bongos e coisas assim. Foi assim que esse meu gosto particular se desenvolveu.



O que dirias que mudou depois do HEARTBEAT sair? Falo, claro, na tua carreira e do teu lugar na música.

Diria que a melhor cena que aconteceu foi que eu pude encontrar a minha própria voz enquanto artista, mais do que como baterista, até porque nessa altura eu já tinha bastante confiança na forma como tocava bateria, mesmo sabendo que vou estar sempre a mudar e a evoluir. Digamos que eu estava confiante com a posição que ocupava enquanto baterista naquele momento. Mas, depois do álbum sair, percebi também quais os contornos daquilo que eu sou enquanto produtor e compositor e como é que quero que eles evoluam no futuro ou qual a direcção que quero que eles tomem. Antes deste álbum eu não tinha qualquer ideia de qual seria o meu caminho artístico. Isso ajudou-me a ter as bases para eu conseguir as direcções que estou a seguir neste momento. Foi uma prova que dei a mim mesmo, de que eu posso fazer música, editar música e crescer imenso durante todo esse processo. É algo ao qual eu quero dar uma continuidade, obviamente, e é algo que eu quero ser capaz de fazer durante o máximo de tempo que conseguir.

Agora tens um novo trabalho, The Space Between, no qual contas com a participação de muitos convidados. Tu foste-te lembrando dessas pessoas à medida que ias compondo os temas ou partiste para o álbum já com todos esses nomes em mente?

Foi um misto de ambos. Algumas das faixas que já tinha em demo, eu escutava-as e imaginava “quem é que eu consigo escutar mais aqui?” ou “quem é que encaixa aqui?” Isso acontece no “All For The Pocket”, que tem o Nelson Dialect. Eu andava a ouvir a discografia dele, na altura, e estava mesmo, mesmo a gostar. E ele é da minha cidade. Na altura estava a viver em Nova Iorque mas ele é de Adelaide. Senti que me poderia relacionar com ele mesmo estando distantes naquele momento. Nós conectámo-nos e eu perguntei-lhe se gostaria de fazer parte do The Space Between. Nessa altura era para ser na “Pathways”, que tem o Christian Scott aTunde Adjuah. Esse tema foi composto com o Christian em mente. Já sabia que este tema era para ele mal escrevi a primeira nota. E é interessante existir esses dois processos diferentes: o saberes logo à partida quem vai entrar naquela faixa e o criares a faixa e só depois descobrires quem vai caber. É um contraste muito interessante.

Mas eu imagino que desde o quereres ter o Christian Scott no disco até o teres definitivamente vai um grande passo [risos]. Como é que essa ligação se deu? Chegaste até ele através das redes sociais ou algo do género?

Eu e ele já nos cruzámos por diversas vezes ao longo dos anos. A primeira vez diria que foi em 2017. Basicamente, nós já nos conhecemos dos festivais de jazz, já assistimos a espectáculos e já convivemos no backstage. Temos vindo a desenvolver uma certa amizade e ele foi muito simpático em ter-me recebido a bordo da Stretch Music. Não só me facilitou em todo o processo de lançar a música como também me deu uma plataforma para a trabalhar. Ele tornou-se num mentor para mim e tem-me ajudado a navegar este lado da indústria. Eu sei que ainda sou muito novo e que não existe nenhum guia infalível de como se edita música ou de como se lida com o lado da imprensa e da comunicação. Há uma data de elementos sobre os quais ninguém te fala e ter essa espécie de guia ou mentor tem sido fulcral no meu crescimento e tem tornado todo esse processo muito mais suave e agradável. Tem sido um enorme prazer trabalhar com ele. E a colaboração vem dessa amizade. Era algo que ambos queríamos fazer para comemorar essa relação que temos vindo a desenvolver ao longo destes anos. A própria faixa é sobre isso mesmo, já que documenta o cruzamento dos nossos caminhos.

Alguns dos outros músicos já tinham feito parrte do HEARTBEAT. É tudo malta de Adelaide, como tu?

Sim. Muitos desses músicos são de Adelaide e são os meus amigos mais próximos. São pessoas com as quais eu toco há imensos anos e com as quais mantenho relações de grande amizade. É muito bom poder tê-los como parte nuclear deste projecto. Este álbum assenta naquilo que nós tocámos juntos. Há partes que foram construídas em torno disso. Por isso, este disco tem a sua fundação num circulo de amigos muito próximos. Isso é muito especial.

Este disco recusa-se a ficar fechado num só sítio e parece uma viagem pelo tempo, pelo espaço e até por diferentes culturas e práticas. Foi algo intencional?

Foi muito intencional. Ao mesmo tempo, eu quis que ele fosse natural e orgânico, claro. Quis reunir todas estas influências que me inspiram. Todos estes sons e ritmos de todos os diferentes pontos do globo. Quis encontrar um lugar comum onde todas elas pudessem caber e pudessem comunicar e suportarem-se umas às outras. Neste projecto não existem divisões. Não existe nenhum género. Não há limites que se possam colocar. Isso foi muito intencional: o encontrar o balanço certo entre os diferentes elementos e sons ao longo do disco e tê-lo sempre a evoluir, ao mesmo tempo que mantém uma certa linha que lhe dá a sensação de continuidade. Acho que o álbum anda todo à volta disso. O próprio título, The Space Between, refere-se ao espaço que existe entre o que limita os diferentes géneros. The Space Between é o que fica entre dois pontos — sejam eles pessoas, lugares, culturas, sons, géneros. O álbum é sobre juntar todas essas coisas e deixá-las ser aquilo que elas são.

Durante muitos anos os bateristas foram vistos como os tipos que ficam lá atrás a marcar o tempo e foi especialmente graças ao jazz que emergiu um novo tipo de baterista. Ultimamente temos estado a assistir ao aparecimento de uma nova vaga de mbateristas como tu, o Kassa Overall, o Makaya McCraven, o Jamire Williams, o Moses Boyd, o Yussef Dayes, o DJ Harrison… Dá a sensação que todos vocês andavam a escutar hip hop e música electrónica no caminho para a escola. Como é que explicarias que surge esta nova abordagem entre os bateristas?

Isso é muito interessante de se pensar. Eu ouço de tudo. Já que falas no caminho para a escola, no meu caso a viagem durava uma hora para cada lado, durante os três anos de faculdade. Eu escolhia sempre um disco para escutar durante essa hora, do início ao fim, se possível. Sempre tive infinitas influências à minha volta graças àquilo que eu andava a ouvir. Mas eu não sei dar-te uma resposta em concreto quanto ao que tu perguntaste. Esses nomes que listaste são todos de diferentes lugares e isso faz como que tenham também diferentes influências. Acho todos somos diferentes e que cada um tem o seu próprio trajecto. Posso dar-te este meu exemplo: eu sou baterista e não sou propriamente bom na componente harmónica e a minha falta de noções dentro dessa área trabalha a meu favor na maior parte das vezes. Às vezes não me favorece e pode até parecer uma desvantagem. Mas dá-me acesso a parâmetros diferentes. Eu acabo por ter menos informação sobre a qual me posso apoiar quando tenho de pensar em teoria musical e harmonias. A minha limitação é também o que me ajuda a soar diferente, porque eu vou estar a pensar de forma diferente. Eu não penso como um pianista ou como alguém que domina por completo a teoria da música. Eu faço aquilo que me soar bem a mim.

Além destes dois álbuns, lançaste também loops de bateria através do Bandcamp. Por lá tens batidas de cadências diferentes — do mais lento downtempo aos breaks do drum & bass. Já te aconteceu reconheceres-te no trabalho de outras pessoas por teres sido samplado?

Há pessoas que já me enviaram coisas que fizeram com esses loops. Ainda não me aconteceu o estar a ouvir e reconhecer sem que mo tenha sido enviado. É fixe. Até porque esses loops fazem-me imaginar aquilo que eu mesmo faria se os fosse utilizar. E estar a ouvir aquilo que são as perspectivas de outras pessoas em relação a esse mesmo break de bateria — os diferentes caminhos que os seus cérebros percorreram para chegar a um resultado diferente do meu — é algo que me satisfaz bastante. Todos ouvimos de forma diferente e todos conseguimos ter ideias diferentes mesmo quando nos é dado o mesmo ponto de partida. A partir daí, as possibilidades são infinitas.

Presumo que haja uma digressão nos teus planos para apresentar este álbum. Já reuniste a banda com a qual vais tocar? Podes falar-me sobre isso?

Nada está confirmado e por isso não posso anunciar nada. Posso dizer-te que estamos a trabalhar em algumas datas para a Europa.

Isso seria óptimo. Não posso deixar de te pedir a tua opinião sobre todos estes focos criativos que têm surgido — do Reino Unido à América — e do qual tu próprio fazes parte. Sinto que estão todos neste momento a dobrar aquilo que são os limites do jazz ao misturá-lo com novas culturas e estilos. Eu diria até que se trata de uma mudança de paradigma. Sentes-te parte de algo maior?

Isso é interessante. Sem dúvida de que me sinto parte dessa comunidade e sinto que existe uma vontade que é partilhada por todos estes artistas, que é o de levar esta música para a frente — mantê-la em movimento e em mutação. No meu caso, o estar envolvido com a cidade de Adelaide, todas as influências de Adelaide vão convergir na minha música. O que eu faço é partilhar isso com uma audiência maior. Isso é muito fixe e é especial. E diria que estou a tentar ajudar a mostrar Adelaide ao mundo [risos].

Já aqui falámos de alguns instrumentos tradicionais com os quais trabalhas, como as congas ou os bongos. Electronicamente falando, quais são as ferramentas que utilizas?

Muitas das coisas que uso são softwares, VSTs e samples. Já fiz alguma programação numa Roland Boutique TR-08. Passei algum tempo a brincar com isso. Passava-a por pedais de efeitos e divertia-me imenso. Tenho um SPD-S para disparar samples e loops ao vivo. É algo que eu quero explorar ainda mais, até porque é uma forma de tocar bateria ao vivo ainda não muito comum nos dias que correm, diria eu. Já acontece em alguns projectos de diferentes géneros mas sinto que ainda existe espaço para se explorar mais a componente electrónica no âmbito de um espectáculo ao vivo.


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