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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 29/04/2019

Pepas é o mais recente disco do grupo, sucedendo à estreia homónima e a Impuros Fanáticos.

Alex Figueira (Fumaça Preta): “Esta banda é praticamente um milagre”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 29/04/2019

Alex Figueira é um tipo puro, daqueles que se entusiasma com os discos que vai descobrindo em Cabo Verde ou no Benim, no Brasil ou em Angola e que canaliza esse entusiasmo para a música que cria, juntamente com os seus companheiros em Fumaça Preta — Stuart Carter (guitarra, oscilador, orgão) e James Porch (baixo) –, encarando o estúdio como um autêntico laboratório onde é possível combinar ingredientes (ideias e ritmos, palavras e mensagens, melodias e tonalidades, instrumentos e efeitos) para se obter resultados finais intelectualmente estimulantes, ritmicamente irresistíveis e psicadelicamente fascinantes.

Pepas, o terceiro álbum do grupo que sucede à estreia homónima de 2014 e a Impuros Fanáticos, que já conta três anos, vai mais fundo nesse mergulho entre a sede de descoberta musical que traduz e a necessidade de usar a música como espaço de pensamento sobre o mundo, com a atormentada Venezuela onde Figueira tem raízes a inspirar todo o ácido que escorre das palavras deste álbum.

Em conversa com o Rimas e Batidas, o músico, produtor, digger e coleccionador fala de hip hop e de punk, fala da desilusão com sistemas políticos e dos erros de uma indústria que teima em não aprender com o passado.



Ao terceiro álbum, os Fumaça Preta soam mais exploratórios do que nunca. Como é que posicionas este novo trabalho no conjunto da vossa discografia e o que é que o distingue dos registos anteriores?

Pra mim é sem dúvida o mais arrojado até à data. Gostamos sempre de permanecer fora da zona de conforto e de explorar as nossas próprias limitações. Neste registo aparecem algumas propostas que não tinham aparecido nos anteriores, mas das quais sempre gostamos, como por exemplo o punk mais pré-HC à la Dead Kennedys ou o hip hop, que me parece ser um dos elementos preponderantes neste álbum. Sempre fomos todos muito fãs da era dourada do hip hop. Isso ia acabar por aparecer mais tarde ou mais cedo e calhou ser neste. Penso que o cariz das letras acabou por puxar significantemente pra esse lado.

A palavra “psicadelismo” tem sido usada de forma muito leviana pela imprensa nos últimos anos. O que entendes por música psicadélica e, claro, vês os Fumaça Preta como um projecto com uma dimensão psicadélica?

Sem dúvida. Acho que é um termo que aplica a tudo o que fazemos porque o nosso objectivo é sempre esticar os limites, questionar todos os preconceitos (especialmente os nossos), deformá-los e criar alguma coisa que nos emocione como amantes da boa música que somos antes de qualquer outra coisa. Para mim, o psicadelismo é precisamente isso, uma forma desafiante de trabalhar, procurando sempre novos territórios. Determinados efeitos ou características sonoras específicas parecem-me pouco relevantes neste contexto.

Houve uma opção clara pelo castelhano em Pepas, algo que o distingue dos registos anteriores. Qual a razão?

A situação política e social na Venezuela (onde me criei e onde ainda tenho muita família) tem-me perturbado profundamente nos últimos anos. Já no segundo álbum se fez notar, mas neste foi simplesmente demasiado. Emoções muito fortes que precisava de drenar de alguma maneira e que acabaram por influenciar todo o processo criativo quando chegou a altura de escrever as letras.

Numa Europa envolta em múltiplas crises e polémicas, com a questão da emigração — legal ou ilegal — no centro de um amplo debate, como é que te sentes enquanto cidadão com raízes na Venezuela e em Portugal?

Não consigo ter um olhar muito objectivo sobre esta questão. Sou neto e filho de emigrantes. Tenho família não apenas na Venezuela ou em Portugal mas em muitos outros países: Alemanha, Suíça, África do Sul, Austrália, etc. A emigração é na nossa família uma condição constante e omnipresente. Não é bom nem mau. Nunca houve tempo nem distanciamento suficiente para debates, mas sem dúvida que vejo com grande preocupação o aproveitamento político do fenómeno por parte de personagens duvidosos (por não lhes chamar outra coisa) que exploram medos e preocupações legítimas de cidadãos comuns, para fins pessoais e pouco transparentes. Gostaria que prevalecesse o senso comum pois não é preciso ser doutorado em Antropologia para entender que o mundo como o conhecemos é feito da troca constante entre culturas e pontos-de-vista diferentes. Que as ideias e as pessoas sempre andaram de um lado para o outro por esse mundo fora e que essa circulação é absolutamente inevitável pois é inerente à nossa própria condição humana.

Há um sentimento de alguma revolta ou desilusão que parece marcar Pepas. Queres elaborar um pouco sobre a dimensão poética do disco?

Sempre fui muito sensível às questões sociais. Num contexto como o da Venezuela dos anos 80 e 90 onde cresci, com desigualdades sociais chocantes com as que era preciso lidar a partir do momento em que se punha um pé na rua, interessei-me desde muito novo pela origem dessas desigualdades e nunca parei de procurar respostas. No meio desse processo descobri o ska, o reggae e o punk, que respondiam a muitas das minhas perguntas nas suas letras. Na minha adolescência assumi como verdades vários dos clichés repetidos nestes estilos e entrei na idade adulta preservando várias dessas ideias e desmontando outras. Posso dizer que era uma pessoa de esquerda saudavelmente céptica e sem filiação partidária. O que tem ocorrido na Venezuela, com o acompanhamento incessante da minha parte, acabou por derrubar rapidamente muitos dos mitos que eu ainda preservava. A resposta à questão venezuelana por parte da grande maioria da esquerda internacional, na qual eu acreditava como sendo a alternativa a uma visão política demasiado mesquinha e pessoal à escala global, foi uma profunda desilusão para mim e revelou claramente incongruências e lacunas demasiado óbvias. Ao longo destes 20 anos, percebi, entre outras coisas, que as ideologias — sejam do teor que forem — são incompatíveis com o pensamento verdadeiramente crítico, do qual sempre fui apologista. Ver pessoas que eu considerava inteligentes e empáticas a defender a matança de manifestantes por parte de militares, o suposto legado de ditadores perpetrados no poder durante décadas entre muitas outras aberrações do género que nunca fizeram o mínimo sentido pra mim, despertou a mesma fúria que eu sentia anos atrás quando frequentava os concertos de punk da defunta casa ocupada da Praça de Espanha em Lisboa. Uma vez afiliados ao punk e à liberdade e exaltação do pensamento autónomo que ele implica (pelo menos pra mim sempre foi assim), ele nunca nos abandona. O punk é a escola onde alguns aprendem a repetir slogans panfletários caducados até à exaustão mas outros aprendemos a pensar verdadeiramente pela nossa própria cabeça, sem medo das consequências que isso implica.

Houve alguma razão para a troca de editora?

A Soundway não teve interesse. Contactei todos os selos que eu achava faziam sentido. Recebi da maioria uma resposta do género, “o disco é fabuloso, mas não estamos interessados”, que já tinha acontecido quando lançamos o primeiro. A Stolen Body foi a única que teve a coragem.

É fácil para uma banda com as características de Fumaça Preta existir neste complexo ecossistema de editoras, festivais, imprensa, mantendo uma atitude independente e livre?

Para mim, Fumaça Preta é praticamente um milagre. Começou como uma brincadeira de estúdio de quatro nerds irremediáveis, sem qualquer pretensão além de fazer duas músicas “queimadas”, o suficiente pra nos surpreender a nós próprios depois de as ter prensado num 45. Tudo o que aconteceu depois daí eu vejo-o como um acréscimo. Nós nem sequer éramos suposto ser uma banda como tal. Claro que pra te responder directamente à pergunta devo admitir que não é nada fácil. Factores que deviam ser vantagens, como o facto de não sermos uma banda de nenhum estilo específico acabam por implicar dificuldades. Acabamos muitas vezes por ser “demasiado rock” pra o cenário “world” e vice-versa. O tal ecossistema tenta de certa forma passar a ideia de que é muito arrojado e puxado pra a frente inventando termos a torto e a direito — na maioria das vezes pra vender emendas de coisas que já andamos a comprar há décadas — mas na realidade reina um conservadorismo e uma comodidade por parte de quem toma as decisões que realmente determinam o curso da coisa que eu acho de uma incompatibilidade tremenda com o momento histórico em que nos encontramos. Não é de admirar que os últimos fenómenos verdadeiramente revolucionários no campo da música com repercussão global tenham acontecido há mais de 20 anos.

Fala-nos das coordenadas musicais que inspiraram Pepas: o álbum soa como uma mistura de músicas muito diferentes, do punk à música oriental, da cumbia à electrónica… Há uma enorme quantidade de influências ali. Teria grande dificuldade em enumerá-las todas, confesso.

Cada um de nós 3 tem preferências musicais bem marcadas e distanciadas do outro. O James, por exemplo, gosta de certas coisas que eu acho absolutamente intragáveis e com certeza ele deve achar o mesmo de várias das minhas preferências. O bom é que há também um enorme espaço de compatibilidade onde todos nos encontramos e isso vai do garage mais podre dos 60 até o hip hop clássico dos 90 ou o Acid House, com tudo o que fica ali no meio. Cada um traz a sua própria bagagem e depois de muita luta criativa no processo de composição, as coisas acabam por tomar uma forma própria que por vezes fica perto da origem dos ingredientes mas por outras acaba por ganhar contornos que eu próprio não saberia muito bem como descrever.

O teu lado de coleccionador de discos influencia a música que fazes? Sentes vontade de explorar uma nova sonoridade quando descobres algum registo do passado que te entusiasme?

Sem a menor dúvida. Toda a música que eu faço, com Fumaça e todos os outros projectos onde estou envolvido, parte da minha obsessão com o vinil. Quando decidi construir um estúdio e aprender a gravar e mixar foi porque queria fazer discos como os que me enchiam (e enchem) de prazer. Tenho sempre vontade de experimentar coisas novas e isso vai aliado às descobertas pessoais que faço no infindável processo de coleccionismo. É uma caminhada onde nunca se chega a lado nenhum porque o que é suposto é nunca pararmos. É um vício que também é um privilégio. Espero nunca me curar.

Que música, que era, que geografia têm inspirado as tuas aquisições de discos em tempos mais recentes?

A minha grande obsessão, desde há vários anos continua a ser o hemisfério sul do globo: África e América Latina. Quanto mais aprofundo as buscas mais confirmo o muito que ainda me falta por descobrir. Tenho especial fascínio pela música de Angola, Cabo Verde e Brasil, três países com uma riqueza musical impressionante e pela música venezuelana, que continuo a descobrir e não me deixa de surpreender, mas nos últimos tempos tenho estado particularmente focado na música do Benim dos anos 70, não apenas por ser incrível e muito vasta, mas por causa de uma improvável conexão com dealers locais que não param de encontrar discos. Foi lá que nasceu o voodoo (um fenómeno que me atrai obsessivamente) e não é por acaso. Isso ouve-se nas gravações.

Acabou de acontecer a mega feira de Utrecht e fala-se mais do que nunca de vinil: o próprio Bandcamp criou agora um serviço de prensagem. Esta bolha vai rebentar algum dia? Que pensas de toda este febre em torno do vinil?

Não tenho dúvida que a bolha vai rebentar. Só não sei o que virá a seguir. Devia ser um acontecimento meramente positivo este ressurgimento do vinil, mas custa-me ser optimista quando vejo os mesmos abutres que estragaram a industria — quando ainda se podia descrever como tal — a tentarem espremer mais uma vez esta nova oportunidade (provavelmente a última) com muitos dos mesmos métodos. Quando vejo disparates como discos dos Dire Straits reprensados por 25 euros nas lojas, com os originais até não há muito a desbordarem as caixas de 1 euro em todas as feiras de velharias por essa Europa fora, não dá pra acreditar num final feliz.

Fala-me do Barracão Sound: é um verdadeiro laboratório? Está apenas devotado às criações de Fumaça Preta ou tens lá gravado mais música e diferentes projectos?

O Barracão Sound é o meu laboratório. Foi lá que aprendi a gravar desde zero e é lá que faço todas as experiências com as bandas em que estou envolvido. Também é um espaço aberto a qualquer interessado que goste do som que eu faço. Já gravei muita gente lá. Desde cumbia electrónica até country holandês. Venci a maioria dos meus preconceitos há muito tempo.

És um devoto da tecnologia analógica a julgar pela listagem de equipamento que tens no estúdio. Que pensas que se obtém com esse tipo de abordagem técnica que não se consegue no plano digital? É apenas uma questão de revivalismo ou há algo mais nessa opção?

Na realidade já não sou tão analógico como era noutros tempos, quando nem computador tinha no estúdio. Hoje em dia acabo muitas vezes por usar uma mistura das duas possibilidades, dependendo sempre do projecto em questão. Ambas têm vantagens e desvantagens e eu tento sempre usar as primeiras e evitar as segundas. O que acaba sim por prevalecer sempre é uma estética mais “vintage“, que pra mim é apenas sinónimo de um som mais áspero e mais agressivo, como o dos discos dos anos 60 e 70, de que tanto gosto. Regra geral não gosto muito de gravações cristalinas e polidas, tipicamente associadas ao formato digital. Por essa razão a maioria do meu equipamento é velho, porque me garante um certo nível de “sujidão” que eu acho essencial.

Tocaram recentemente no Tremor. Há mais planos para regressarem a Portugal nos próximos tempos?

Foi fabuloso ter estado nos Açores embora não tenha podido passar nem 24 horas em São Miguel. O Tremor é um festival admirável feito por um bando de corajosos (ou malucos) decididos a fazer história. Não há planos por enquanto de voltar a Portugal. Espero se concretizem, pois faz bastante tempo desde a última vez que tocamos em Portugal continental. Pra mim é sempre especial tocar lá. Um privilégio.


https://youtu.be/6oIbLwXJ_DA

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