Cassete / Digital

Aires

Daylight Fireworks

ZABRA / 2021

Texto de Vasco Completo

Publicado a: 18/02/2021

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Uma das particularidades da produção de Aires, aquilo a que o seu ecletismo permite e justifica, é que a sua criação para música ambient normalmente aponta – estética ou timbricamente – para outras referências estilísticas. Poderíamos dizer que os pads de Modernidade Líquida (especialmente em “Azul Metalizado”) remetiam tanto para os sintetizadores de outrora, como para alguma música easy listening de Harold Budd ou Brian Eno. A busca por referências fora dos próprios géneros é por vezes o que faz esses mesmos géneros transformarem-se mais. Há modernidade ou contemporaneidade em Daylight Fireworks, que se sente por exemplo em “A Limerent Object” ou no final do EP, com vozes (provavelmente de música pop) em pitch down, indo até contra a habitual ausência da palavra ou da voz num universo que é por vezes até, aparentemente, muito mais etéreo que humano; ou mesmo em “Pixalated Photos of Sunrise” que desagua de um sample ecoado de uma (im)possível rave a bons metros de distância. Mas tudo aponta para facilidade de sampling e manuseamento do som em todos os seus aspectos passíveis de alteração.

E pensando na humanidade que aí habita, este Daylight Fireworks não deixa de ser talvez o trabalho mais pessoal de Aires até à data. Pelo menos é certamente aquele em que nos apresenta mais deixas para entrarmos no seu mundo emocional, com melodias e estruturas acessíveis, e uma temática menos generalizada, que é por um lado íntima, como abrange toda uma geração à volta de um sentimento comum.

Há uma coesão estética, uma clara e necessária noção de separação entre trabalhos para o produtor, o que se liga muito bem com o vínculo conceptual inerente à ZABRA. Por isso mesmo, há tantos pontos de contacto como há de separação entre os nomes Aires, Fashion Eternal, Peak Bleak ou Shikabala… ok, com Shikabala é capaz de haver mais pontos que o separem desse heterónimo de Aires, mas nem por isso deixam de haver pontos que os unem.



Este Aires pode invocar trabalho de Croatian Amor, uma influência sua – visível para quem o segue pelas redes sociais (faz sentido mencioná-las aqui, certo?) –, e ainda talvez Malibu ou Helm com “Eliminator” (ambos artistas participantes em mono no aware, a mítica compilação de PAN), mas não deixa de se aproximar daquela que é já a sua estética reconhecível e habitual.

A desfragmentação dos sons no filtrar de harmonias contemplativas expressa inquietação de espírito, e isso é visível desde os títulos até ao 18º minuto do EP. Em música que vive sem voz cantada – e imperceptível no que canta –, os títulos dos temas são portas para entrarmos mais profundamente na narrativa emocional do criador. A beleza do fogo-de-artifício diurno está na subtileza da sua apresentação devido à luminosidade, e esse é um sentimento bem paralelo ao da música ambient, que é subtil pelo seu enquadramento tímbrico. Este género não deixa de viver numa dimensão contida, e de audiências também elas comedidas, mas para quem nela consegue vislumbrar o sentimento gratificante que à música diz respeito, cada segundo de escuta parece um luxo por si só – e esse luxo é bem fácil de apreciar, com tanta serenidade sónica e harmonia sentimental. O mesmo se podia dizer de um fogo-de-artifício à luz do dia, não é?

“4 am Instagram Filters”, “New Sincerity Aesthetics”, “A Limerent Object”, são temas actuais, que reflectem uma geração que sofre de uma necessidade constante de procurar catarse, ou de outras emoções que libertam dopamina e serotonina, voltadas para a efemeridade que vive em dispositivos que emitem luz e som, e que nos acompanham de manhã à noite. E não há nada mais pessoal que falar sobre aquilo que vivemos.


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