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Fotografia: André Deihaye
Publicado a: 01/12/2023

O tributo merecido a Mika Vainio.

“Across Ø Around” em Serralves: a audição, esse belo campo da visão

Fotografia: André Deihaye
Publicado a: 01/12/2023

Elizabete. Ambliope. Encontro furtuito. Premonitório. No metro do Porto antes de assistir a “Across Ø Around – Mika Vainio: A Tribute”. Elizabete procurava o Centro Comercial Capitólio. Uma agência matrimonial. Do lado oposto à estação da Casa da Música. Curta distância. Ajudar a atravessar a avenida. Nenhum pensamento em particular. Movimentos cuidados. O que para nós é tarefa simples, não o é certamente para outros. Mais tarde — o som constrói imagens? O quão importante é a audição no quotidiano para pessoas como Elizabete?

O som. O som e a prática da escuta. Objecto e eixo de acção essenciais no trabalho seminal de Mika Vainio. Um fim-de-semana em que som e imagem configuram campo de investigação para preocupações existenciais. Uma obra maior avessa a configuração e catalogações. Rikke Lundgreen, uma das responsáveis pelo “The Museum of Sound“, recorda-nos — “A sua música não pertencia a nenhum grupo específico. O seu conceito não era facilmente definível. (…) Via a sua música como algo maior.” Os filmes [Tectonic Plate e A Physical Ring de Mika Taanila, A Monument for the Invisible de Anu Pennanen, Phantasma de Saara Ekström], os concertos [CM Von Hausswolff & Joachim Nordwall, Ilpo Väisänen, Charlemagne Palestine] e as instalações [“Listening Room“], comprovam-no. Ângulos vários sobre uma obra que tendo o som e a música como esteios, transcendo-os. As questões elementares de uma existência — as fragilidades comuns, desajustamentos de diferente nível, o grau de atenção que somos capazes de dedicar, as expressões mais ínfimas partilhadas.

No museu de Serralves, no piso de baixo. De um lado, a luz colossal da janela. O jardim como abertura. Do outro, na sala, o escuro. Um cubo negro. Tapete, quatro sofás, colunas e o osciloscópio. Uma aproximação a um contexto familiar — a sala de estar. Contexto e experiências partilhadas. “Mika Vainio Listening Room” é momento de concentração e micro-conjugações com os demais. O osciloscópio, pequeno instrumento, colocado estrategicamente no meio, utilizado como a materialização em imagens das ondas sonoras, é ponto focal. Concentrados no objecto e também de olhos cerrados, minimizamos a existência. A materialidade do corpo assume forma no tempo. Sem desejo de fuga ou escapismo. A vontade de estar. Uma sala nossa. Do eu e dos que nos rodeiam. Como na sala de Mika Vainio. As suas músicas. A disposição e a predisposição, talvez a única, de nos aproximarmos delas. O silêncio é estrutura. Os micro sons da cadeira a ser arrastada, da respiração dos demais, como referem Rikke Lundgreen e Tommi Grönlund, são contaminações desejáveis e apreciadas. Constituem, também por isso, um elemento essencial no tríptico do tributo que se apresentou.

Prisma fundamental, e talvez menos notório, é a relação de Mika Vainio com as imagens. As capas dos discos, sempre cuidadas e carregadas de significado. E os filmes. Simbologia de um quotidiano. A contemporaneidade em filtro crítico. Olhar fino. Tectonic Plate, A Physical Ring, A Monument for the Invisible e Phantasma — a desagregação do contemporâneo. Corpos em perda. Marcha incerta. Acompanhamos uma mulher ambliope no seu percurso ao final do dia. A cidade, a massificação de um tecido edificado. As deslocações mecânicas levadas ao seu funcionalismo máximo. Jamais como passeio. A cidade como metáfora de uma Europa em (des)construção? Um aquário que deixou de o ser. Os tempos de espera no aeroporto. As sucessivas informações sobre os atrasos e partidas dos voos. Os fusos horários. O afastamento a uma condição que nos acerca de um primitivismo. Primitivismo enquanto condição fundamental. Nunca saudosista. Os lugares. Sobretudo os não-lugares. O branco texturado. A frase de Vainio — “I have deduce, I was in a nightmare.” Nós e o nosso reflexo. Em modo espelhado. A constatação da desagregação.

Os concertos. Experiências de múltiplos encontros. Com o som dos autores, de nós connosco, de nós com os outros e da influência que sobre todos a obra de Vainio ainda exerce. Em estreia absoluta — CM Von Hausswolff & Joachim Nordwall e as imagens de Leif Elggren. Uma colaboração feita na relação sonora detalhista. Electrónica filigrana, sem adornos. A minúcia. A sobreposição estritamente conveniente. De ambos os músicos de Estocolmo — CM Von Hausswolff e Joachim Nordwall, conhecemos a sua predilecção pela ramificação. Um som que conduz a outro, que deriva noutro e noutra espacialização. As imagens projectadas de Leif Elggren, escritor, artista visual, editor de livros de arte, performer e compositor, ampliam a sensação de delicadeza. Uma fragilidade assumida. Relação de admiração de Vainio em relação à obra Elggren. Imagens esquiço do corpo humano, como na capa de ARC1 [Ø | Sahko Recordings . 2019], por exemplo. Corpos quase imperceptíveis. Materialização adivinhada. Consciencialização de um sentimento. Muitas vezes da perda. Sempre na perspectiva de um profundo e sincero autoquestionamento. 

Ilpo Väisänen. Metade de Panasonic — Pan Sonic. Entra-se no som. Imersão por completo. Não pela acepção tão vulgarmente utilizada, sobretudo no contexto da música ambiente, mas pelo simples facto de nos encontrarmos no meio de um turbilhão sonoro. É massa. Recurso a sistemas analógicos. Trilhos sonoros variados — carregados e próximos de uma certa cadência e dinâmica noise, industrial, dub. Precisão. Nenhum gesto é excessivo. Já assim tinha sido no OUT.FEST 2019. Aqui, não é o lado mais visceral que interessa destacar. Aí está, nunca negá-lo. Massa sonora densa, jamais pela estridência. Rima vulgar. Igualmente, fundamento tão útil quanto necessário.

“Across Ø Around – Mika Vainio: A Tribute”. Atravessar e os passos em volta. Tributo e reflexão. Sondar o passado, mesmo que próximo, para sedimentar presente. Na banalidade quotidiana e nas respectivas réplicas descerebradas — escutar.


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