Em 1910, o crítico Louis Vauxcelles referiu-se aos artistas cubistas Henri Le Fauconnier, Jean Metzinger, Albert Gleizes, Robert Delaunay e Fernand Léger como “geómetras ignorantes, que reduzem o corpo humano, o objecto, a cubos pálidos”. Não foi a primeira vez nem será a última que a crítica está um passo atrás da novidade disruptiva e das abordagens frescas, e o tempo veio provar que Vauxcelles estava errado. Mas é uma boa oportunidade para estabelecer um paralelismo com o grupo musical deste mês. Em Fevereiro deste ano, fui apresentado ao grupo YHWH Nailgun — o primeiro termo é pronunciado Yahweh, o nome de Deus no Antigo Testamento — e descartei-os como barulho com algum trabalho por trás. Três meses depois, confesso sem vergonha que não podia estar mais errado.
A reacção imediata é compreensível, nem toda a música entra à primeira. É também precisa alguma ambientação à feroz avalanche musical produzida pelo quarteto norte-americano composto pelo baterista Sam Pickard, o vocalista Zack Borzone, o guitarrista Saguiv Rosenstock e os sintetizadores de Jack Tobias. Fundado em Filadélfia durante a pandemia por Pickard e Borzone, recrutaram os dois outros elementos já em Nova Iorque — e estava completa a receita para o caos. O primeiro tema surge em 2020, de seu nome “Mallet”, marreta arrebatadora composta por uma cacofonia ruidosa de loops cerrados e gritos desmedidos. A prestação vocal de Borzone ainda é muito rudimentar, mais gritada e menos desenvolvida, e começa a ganhar os primeiros contornos no EP de estreia YHWH Nilgun, lançado em 2022.
A entrega vocal do cantor consiste de melodias em que parece esforçar-se para arfar, canta de forma sofrida com rouquidão sincera e um tom inumano. Ouvimos uma espécie de invocação, letras curtas e repetitivas que nos remetem a imagens vívidas de pesadelos tornados poesia. Borzone aborda o seu papel com um registo independente do que se está a passar nas músicas, mas que chocaria com qualquer outro instrumental em que estivesse inserido. Prova disso é a calmaria com que canta na crepitante “Black Braid”, com o seu negrume de graves a ecoarem pela música ou pelo meio da insanidade repetitiva de “Hawk Violence”. O fio condutor destes e muitos dos temas YHWH Nailgun é a proficiência instrumental de Pickard — é notável o seu trabalho incessante por trás da bateria. O EP é uma potente estreia, um trabalho mais esparso e de mais experimentação do que o que veio a seguir, reflexo de um grupo que estava a descobrir-se.
Pouco mais de meio ano depois, lançam No Midwife And I Wingflap, que os mostra a caminhar numa direcção mais intensa e simultaneamente menos alienada. “Too Bright to See” apresenta-se como uma das músicas mais acessíveis do grupo até à data, antes de descambar completamente e tirar-nos o tapete com a sua conclusão barulhenta. “Back Muscle” soa em catadupa, entrega vocal exageradamente teatral que rivaliza a entrega instrumental assoberbante. “Venison Mama” é relativamente pacata, contrastada pelos grunhidos sofridos de Borzone. E “Look at Me, I’m a Rainer” soa a um teste de som com improvisação vocal e pujança da bateria. É um EP virtuoso num só suspiro, como alguém a suster a respiração debaixo de água de forma forçada.
Todo o trabalho anterior dos YHWH Nailgun conduziu-os até 45 Pounds. O álbum de estreia do grupo é experimental mas estranhamente convencional, com destaque para momentos como “Iron Feet”, com um motivo musical de metal a rugir que é desconcertantemente convidativo, “Tear Pusher”, munida de teclas catárticas rodeadas de desordem encadeada, a fugaz “Sickle Walk” ou “Castrato Raw (Fullback)” — a música mais acessível do álbum e curiosamente o primeiro single que lançaram em promoção do projecto. Mas a abrasão que caracteriza os YHWH Nailgun transparece com critério, especialmente em temas como a selvagem e primordial “Animal Death Already Breathing”, com direito a rugidos sofrentes, “Pain Fountain” de teclas gritadas, guitarradas distorcidas e metralhada percussionista, “Blackout”, estéril, ritualística e progressivamente mais urgente, ou “Changer”, que acaba sem aviso, como se tivessem cortado a electricidade a jovens barulhentos. Com pouco mais de 20 minutos, 45 Pounds é uma viagem avassaladora e transcendente.
Chegados ao final, voltemos ao início, ao malogrado Louis Vauxcelles e ao seu mal-amado cubismo. Uma das máximas deste movimento artístico é que os sujeitos da pintura são analisados, decompostos e reconstruídos de forma abstracta. Nesse sentido, a música dos YHWH Nailgun pode ser apelidada de cubismo sonoro. São claramente músicos com conhecimento e perícia, que analisam a arte musical, desconstroem-na e apresentam-na de forma abstracta, pouco óbvia, experimental e vanguardista. Não é de todo para todos, mas não deixa de ter menos valor por isso. É pulsante, viva, tudo menos aborrecida, e faz-nos questionar o que veio antes dela e ficar expectantes pelo que virá depois. E não é também isso que queremos da música? Queremos reconforto, familiaridade, empatia, sem dúvida. Mas não queremos também que nos desafie, que nos leve a lados em que nunca estivemos e que não sabíamos sequer que queríamos estar? Não queremos a descoberta de algo totalmente diferente de tudo o que ouvimos antes e que nos dá a certeza de que a partir desse momento nunca olharemos para esta arte melódica da mesma forma? À boleia dos YHWH Nailgun, o desconhecido torna-se palpável e confrontacional, e desviar o olhar seria algo quadrado, digno de um “geómetra ignorante”.