O reconhecimento artístico tanto pode ser uma veloz e estrondosa ascensão como uma equilibrada e gradual maratona. Embora o primeiro seja frequentemente o mais visível e discutido, não faltam exemplos do segundo, e é nesse que nos vamos focar. Charles Bukowski e as suas palavras simples e profundas só singraram muitos anos depois do escritor iniciar o seu percurso nessa arte. Josh Tillman, o homem por trás do sarcástico e irreverente Father John Misty, lançou oito álbuns antes de obter o reconhecimento que surgiu com esse alter ego. O rapper Danny Brown, uma das vozes mais inventivas e singulares da expressão norte-americana desse género, só atingiu o estrelato depois dos 30 anos. Da mesma forma, Marcus Brown mostra que a estrada para o sucesso e reconhecimento é longa, mas nunca infrutífera.
O artista nativo de Baltimore, nos Estados Unidos da América, assina como Nourished by Time e o nome é tão adequado ao seu percurso como à sua música. Com o passar dos anos, Brown foi aprimorando o seu projecto musical cada vez mais à sua imagem, nutrindo uma paixão que está presente desde a adolescência. Depois de receber uma reprimenda de um segurança na escola por estar na amena cavaqueira pelos corredores, foi-lhe dada a opção de ir para a sala da banda ou do coro. Escolheu a primeira e passou a mão por instrumentos como o bombo ou o trombone, mas foi na guitarra que descobriu a sua obsessão musical.
Anos depois, ingressou na prestigiada Berklee College of Music em Boston, apesar de não ter sido uma experiência agradável. Quando acabou o curso, voltou para Baltimore e arranjou trabalho numa livraria da cadeia Barnes & Noble, e o seu tempo era dividido entre fazer música e trabalhar. Posteriormente, conseguiu juntar dinheiro para se mudar para Los Angeles e foi nesta cidade solarenga que editou algumas das suas primeiras canções, assinando como Riley With Fire e Mother Marcus. O primeiro single que edita como Nourished by Time surge em 2019: “De Ja Vu” é uma estreia longa, um tema etéreo assente sobre várias camadas sonoras de guitarras. E foi o mote para o início de algo especial.
A música de Brown é caracterizada por uma atmosfera lo-fi, destilada entre o pop e o R&B. As suas influências vão desde nomes como Kanye West, Tyler, The Creator e Jay-Z a Fiona Apple e Ennio Morricone. É um espectro alargado e multifacetado, e ouvimos também na sua música a sonoridade dos anos 80. Nas suas letras discursa sobre amor, as garras vorazes do capitalismo e da rotina de trabalho e outras inquietações típicas de um jovem em pleno século XXI. O seu tom barítono é teatral e carregado de emoção, remetendo por vezes a uma versão do gigante da soul Isaac Hayes, mas menos galã e mais sensível, apreensivo e atento ao mundo que a rodeia. Depois de lançar vários singles e alguns EPs entre 2020 e 2022, a sua estreia em longa-duração surge em 2023. Erotic Probiotic 2 foi o seu primeiro grande momento na ribalta, suportado por engenhosos temas como a dançável “Daddy”, “Shed That Fear” — conselhos valiosos proferidos sobre sintetizadores quentes —, a acelerada “The Fields” ou a gingada “Unbreak My Love”, ambas com instrumentais muito bem construídos. No seu álbum de estreia, Nourished by Time apresenta um projecto disperso mas eficaz, com uma voz única carregada pela sua capacidade ímpar enquanto cantautor. Mas Brown estava só a começar.
Em 2024, assina pela XL Recordings — prestigiada editora independente que conta com artistas como Arca, King Krule ou Fontaines D.C. — e depressa volta à carga com o fenomenal Catching Chickens EP. Com pouco menos de 20 minutos, este EP foi uma entrada com o pé direito na sua nova casa. As cinco músicas que o compõem têm muito que se lhe diga, desde “Hell of a Ride”, com uma entrega insolente e um refrão fatalista encapsulado num instrumental brilhante e apoteótico, até à potente “Had Ya Called”, em que ouvimos o relato de duas pessoas que se afastaram e conselhos para alguém próximo que se está a perder no labirinto do capitalismo e a ignorar o que realmente vale a pena. Para finalizar, Brown presenteia-nos com o blues vagaroso de “Romance In Me”, o cortejar de alguém que quer abraçar e ser abraçado por, e que termina com berros dignos de um amor louco e desmedido. Se ainda existiam dúvidas sobre o talento deste artista, Catching Chickens EP dissipou-as por completo, e é uma prova definitiva das habilidades musicais de Nourished by Time.
Em Agosto do presente ano, Brown editou o seu segundo longa-duração, The Passionate Ones. O título é uma homenagem àqueles que querem paixão nas suas vidas, algo que os faz levantar da cama todos os dias e que protegem acima de tudo. Para o seu autor, isso é a sua música, e a sua paixão transparece fielmente neste projecto. Há músicas que soam como uma claque pessoal de Brown como “Max Potential”, munida de um refrão que desabrocha como uma bonita flor, ou “It’s Time”, tensa de forma expectante, sobre lutar pela nossa melhor faceta e não nos deixarmos consumir pela síndrome de impostor, agarrando com pujança as oportunidades que a vida nos dá. Ouvimos algumas das músicas mais sinceras da carreira de Nourished by Time, como a ironicamente alegre “925” ou “Crazy People”, em que faz as pazes consigo mesmo sobre um instrumental reluzente: “It took me ten years / But I’m on time”, ouvimo-lo dizer de forma aliviada. É uma victory lap sem esquecer aquilo que o fez ganhar a maratona, seja através de “BABY BABY” e as suas notas macilentas de guitarra a espelhar a voz que nos convence das hipocrisias e prisões do capitalismo, ou “When The War Is Over” que expõe de forma bela as dúvidas da mente de Brown.
Com um leque mais vasto de instrumentação e uma mistura de géneros com critério ao alcance de poucos, a estética lo-fi que caracteriza The Passionate Ones não ofusca o poder das melodias e batidas conjuradas por Nourished by Time. O sucesso nem sempre é sinónimo de qualidade, mas no caso de Marcus Brown essa é a mais pura das verdades. Foi um percurso árduo, mas não teria sido o mesmo se não tivesse sido dessa forma. E graças a essa custosa caminhada, assistimos agora à consagração definitiva de um artista que encontrou a sua voz.