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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 30/06/2023

Na última sexta-feira de cada mês, Miguel Santos escreve sobre artistas emergentes que têm tudo para tomar conta do mundo da música.

Abram alas para… Marina Herlop

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 30/06/2023

Permita-se uma analepse para introduzir a escolha musical deste mês e recuemos até ao dia 10 de Junho de 2023 e ao Primavera Sound Porto. A escassos momentos do início dos estratosféricos Blur, uma artista bem mais terrena iniciava o seu concerto. E bastou uma nota ribombante de Marina Herlop para uma troca de olhares entre dois melómanos, dizendo sem palavras que o concerto da banda britânica podia esperar. Os rapazes ouviram algo sonicamente apelativo, que chamava por eles, a antecipação da descoberta e a curiosidade acérrima estava em cada passo que davam em direcção ao palco. E desde então que a música da artista espanhola ficou a remoer na cabeça de pelo menos um deles. 

Marina Hernández López é uma artista natural de Barcelona que começou o seu percurso como pianista. Apesar de ter aulas de piano desde os 9 anos, a sua vocação para a música surgiu depois de alguns desvios. Ingressou na universidade para estudar ciência e jornalismo mas sentiu-se desmotivada, e uma epifania levou-a ao Conservatório de Música em Badalona. O seu primeiro álbum Nanook surge em 2016, um conjunto de composições para piano e voz que vai directo ao assunto, focado nas valências da artista nesta altura do seu percurso. Babasha foi o projecto que se seguiu, em que o piano e a voz são sarapintados de sonoridades mais digitais. Mas, infelizmente, ambos os projectos depressa caíram no esquecimento, um desfecho que teve um profundo impacto na psique de Herlop.

Para o seu terceiro álbum decidiu mudar o seu método de trabalho. Ao par de instrumentos que já dominava, quis apropriadamente juntar um terceiro: Ableton Live. A aprendizagem deste novo ofício teve um profundo impacto na sua obra. A infinitude desta ferramenta digital permitiu-lhe manipular o som de uma maneira que não conseguia antes, misturando voz, piano e instrumentos digitais num caos perfeitamente estruturado. O resultado é o avassalador Pripyat, lançado em Maio de 2022 pela PAN, editora na vanguarda da música electrónica e que conta com artistas como Arca e Eartheater.



É difícil descrever a música deste projecto sem recorrer ao chavão “experimental”. A música transcende os ouvidos e interage com sinapses que controlam a visão, convida a conjurar um espaço amalgamado, sem mapa nem direcção mas com constantes estímulos visuais. É megalómana, com progressões estruturadas como “abans abans” tão bem demonstra. A sua arrepiante beleza abstracta lembra os riscos sonoros tomados pela música de Nicolas Jaar e especialmente o álbum Nymphs. A música é composta por melodias vocais entrosadas, como um conjunto de ondas que vão e voltam com cada vez mais pujança. 

As suas melodias vocais são muitas vezes fonéticas, sem palavras associadas, o que permite uma liberdade maior na expressão da artista. Em “miu” ouvimo-la cantar com recurso ao konnakol, uma técnica tradicional de canto indiana em que a voz é utilizada quase como percussão. O resultado é uma música que parece um ritual sacro bombardeado por ocasionais estilhaços sonoros. A invocação que a inicia mantém-se sempre presente, tornando-se num dos earworms mais improváveis dos últimos tempos, e o som que nos guia ao longo desta portentosa viagem sem nexo. Há temas com os pés mais assentes no chão, como “ubuntu”, que começa com uma espécie de quarteto de barber shop assombrado, ou “lyssof”. Esta última é a única onde distinguimos realmente palavras, com qualquer coisa instrumental que nos remete à música tradicional espanhola. Mas o universo de glitches e sons raspados que circundam a voz aguda de Herlop mostram algo que, apesar de ser guiado pelo convencional, é tudo menos a norma.  

Depois de um par de músicas, os dois melómanos rumaram ao concerto de Blur. A força do experimental foi suplantada pelo conforto de algo mais tradicional, mas felizmente que a música dá para tudo. No entanto, não há como negar a natureza desafiante da arte de Marina Herlop. São canções que nos pedem para sairmos da nossa zona de conforto, em direcção a uma área sem limites, que não se rege por convenções ou obedece a formatos rígidos, e que faz o deleite daqueles que se aventuram por esta rica obra.


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