Há alguns artistas cuja música esbate a barreira entre o áudio e o visual. O sinal que nos chega é sonoro, mas os seus elementos evocam imagens nítidas, estruturas que reconhecemos, gravuras mentais que memorizamos. No caso da música de Beatriz Bronze, os instrumentais que constrói são compostos por texturas sónicas que trabalham em síncrono para edificar algo feito à medida da sua autora, e a sua voz ressoa com as batidas de forma orgânica, fluida e intencional.
O percurso musical da artista que assina como EVAYA começou em tenra idade. Aos seis anos, cantava em festas da sua freguesia de Poceirão, em Palmela, e aos 16 anos estudou piano. Passados três anos, abandonou as teclas quando entrou para a faculdade para estudar design. Posteriormente, ingressou num curso em escultura na Faculdade de Belas-Artes, mas estava desorientada, sem gosto pelo que fazia e pelo rumo da sua vida. Sabia que gostava mesmo era de cantar, e começou a desvendar o papel de produtora musical. Em 2019 formou-se em Produção e Criação Musical na ETIC em Lisboa, terminando o curso com um estágio profissional em Berlim interrompido pela pandemia. Mas o regresso forçado a casa fez com que o seu primeiro trabalho visse a luz do dia: em Outubro de 2020 lançou o seu primeiro EP, INTENÇÃO.
Ouvimos um espírito jovial e ambicioso neste primeiro lançamento de EVAYA. Os seus instrumentais criam uma paisagem, moldam-na com melodias ambiente e acordes ponderados, há uma preocupação em desenhar um espaço etéreo e mais experimental, como ouvimos em “dreams” ou “how to dance what is true”, sendo que nessa última os falsetes e samples transfigurados de voz lembram os primeiros tempos de Alt-J. Por outro lado, as suas melodias vocais familiares e mais pop mantêm os pés das músicas assentes na terra. Em “doce linguagem” — um dos destaques do projecto — ouvimos linhas vocais quase tradicionais adornadas com uma roupagem electrónica muito bem conseguida, e não é de estranhar que tenha sido escolhido para integrar a compilação Novos Talentos FNAC de 2021. O EP termina com uma peça instrumental cujo nome soletra “intenção” em código morse, uma metáfora para o objectivo de EVAYA de comunicar a sua música de todas as formas possíveis. INTENÇÃO é um projecto sonicamente esotérico, exploratório e pessoal, o culminar dos primeiros passos de uma artista de abordagem fresca à música portuguesa que estava ainda a descobrir-se.
Depois de quatro anos e três singles, EVAYA apresentou em 2024 o seu álbum de estreia, Abaixo das Raízes Deste Jardim. É claro desde os primeiros momentos que este projecto é mais maduro do que aquilo que o antecedeu. “contemplação” recebe-nos em excelente forma com a sua batida psicadélica e industrial, criando eficazmente um ambiente em sintonia perfeita com a obra da sua autora, adornado por versos curtos e ambíguos. Torna-se rapidamente claro que a experiência de produção de EVAYA não estagnou e continuou a evoluir, e em parceria com o João Bernardo Valente — que assina como polivalente — Beatriz Bronze apresenta canções que têm tanto de familiar como de novo em relação à sua obra anterior.
Ouvimos canções mais pulsantes, que têm mais garra e andamento e que demonstram um trabalho e evolução a nível da percussão das músicas, algo que não ouvíamos tanto no EP anterior e que está em que grande plano neste novo álbum, como o ribombar grave e profético de “florir” ou a investida fugaz e intrincada de “o que acontece agora”. E também ouvimos momentos em que a atmosfera meditativa que caracterizava a sua música anterior sofre uma transformação sem nunca perder a sua identidade em temas como o interlúdio “abelharucos”, a ritualística “ofereço ao sol” ou a esparsa “morro nasço e nunca é tarde”.
Mas o mais surpreendente deste álbum é o tema final, “sementes”. Ouvimos EVAYA a fugir da sua zona de conforto através de uma guitarrada atípica e a voz afogada em efeitos, para fechar um álbum que nos deixa com mais perguntas do que respostas. Será que isto é um auspício dos próximos passos da música da artista? Ou será que foi só uma experimentação da sua mente que fervilha, de um output que recusa nome ou categorização e é simplesmente a expressão mais pura da sua mente? A música de EVAYA está repleta de riquíssimos instrumentais, com muita coisa a acontecer e camadas que são tudo menos aborrecidas. Este ecletismo é ancorado por melodias pop que também bebem do tradicionalismo português. O resultado final é algo difícil de descrever, mas cujo valor se torna absolutamente claro após algumas audições. E estão todos convidados a entrar nestes edifícios sonoros, pois sem dúvida que serão muito bem recebidos.