Já foi há 23 anos que Sam The Kid fez — mais uma vez — história ao assinar um dos primeiros álbuns instrumentais (e conceptuais) de hip hop português. Beats Vol. 1: Amor, editado pela Loop:Recordings, inspirava-se na história de amor (e desgosto) dos seus pais para uma narrativa sonora pautada por sons soulful e jazzy, com samples de vozes que acrescentavam camadas ao storytelling.
O disco não só foi determinante para várias gerações de artistas do hip hop tuga, como abriu as portas do movimento a um público alargado que passou a encarar de forma diferente esta música, à medida que as batidas contagiantes de Samuel Mira deixavam de ser estranhas para se entranhar nas profundezas da alma. É também o trabalho que personifica essa relação de amor e simbiose entre STK e a sua MPC.
“Eu sempre disse ao longo dos anos que o meu instrumento, que é um sampler, a Akai MPC [2000], é um instrumento lindo porque, não tendo lá nada [físico], permite-me guardar todos os instrumentos e géneros musicais do mundo”, disse na entrevista ao jornal Público, feita pelo jornalista Mário Lopes e publicada há poucos dias. “Posso não saber tocar bateria, mas sei como quero que ela soe, sei como quero que esteja programada. Sei como criar uma frase melódica a partir de um sample. O que quero dizer é que nós pensamos em todos os instrumentos e controlamos todos os instrumentos. Temos uma visão da música muito ampla. Conseguimos ir beber a todos os géneros musicais e transformar aquilo na nossa cultura, que é o hip hop.”
Esta sexta-feira e sábado, 31 de Outubro e 1 de Novembro, o rapper e produtor de Chelas leva aos palcos, pela primeira vez, o seu hoje célebre e acarinhado disco instrumental. Os concertos, onde estará acompanhado pelos seus Orelha Negra e por uma orquestra, acontecem no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa. A 25 de Novembro, o mesmo espectáculo é apresentado na Casa da Música, no Porto.
Para anteciparmos o marco desta estreia em palco e lembrarmos a importância que Beats Vol. 1: Amor mantém na história do hip hop e da música portuguesa — sendo que o muito aguardado segundo volume, Beats Vol. 2: Rap, anunciado há vários anos, ainda não chegou — pedimos a uma selecção de produtores portugueses que partilhassem um depoimento sobre o marco instrumental de Sam The Kid. São músicos do Minho ao Algarve — passando pelo Porto, zona Centro, Lisboa e Alentejo — que demonstram o legado imaterial de Beats Vol. 1: Amor.
[Cálculo]
“É um disco que me marcou enquanto produtor e artista, faz um bocado parte do meu ADN por ser um dos primeiros contactos que tive em Portugal com um estilo de produção de pegar naqueles samples soul, funk… Eu sou muito fascinado pelo Kanye West, a minha escola é muito essa, e quando saiu este álbum, com o conceito que tem… É um álbum que ainda oiço mas que ouvi mesmo muito quando saiu. Lembro-me especialmente de um tema, que é o meu preferido, o “Memórias”… Improvisei muito nesse instrumental. Passei horas e horas a ouvir esse beat.
Esse álbum tem uma importância enorme pelo conceito que tem, por ser uma história de amor, pelos interlúdios, pelo estilo de produção. E, depois, mais tarde, vim a saber como é que ele foi executado e isso deu-me ainda mais respeito pelo álbum, pela maneira como o Sam The Kid o sequenciou e gravou as faixas finais. É espectacular agora ser tocado ao vivo e é um marco para mim enquanto artista. Influenciou muito a minha produção e faz parte do meu ADN.”
[DarkSunn]
“O Beats Vol.1 mostrou — numa altura ainda de definição do que poderia ser o universo musical do hip hop português — que era possível editar um álbum de música hip hop instrumental, conceptual, com princípio, meio e fim. Ainda hoje continua a ser a baliza pela qual pautamos álbuns de hip hop instrumental cá. Consagrou (ou confirmou) o Sam como um dos valores máximos da produção em Portugal e serviu de carta de introdução, ou de abertura de fronteiras, a um público mais generalista por cá. Sem o Beats Vol.1, muitos produtores ainda acreditariam que cá não era possível editar um álbum de beats e ter sucesso a fazê-lo.”
[Madkutz]
“Quando o Beats Vol.1: Amor saiu, lembro-me de que os primeiros comentários foram: “Então não tem rimas?” Estávamos todos habituados a ver o Sam The Kid como MC e a produzir temas onde ele e outros MCs iriam rimar. Este formato em Portugal era um nicho. Lembro-me de ter um álbum de instrumentais do Primero G dos TWA, e o Beats Vol.1: Amor foi um disco extremamente importante para todo o produtor da altura. Mais uma maneira de sermos ouvidos, não ficarmos dependentes de MCs escolherem ou não instrumentais nossos para os seus discos.
Incitou-me a criar os meus álbuns de instrumentais e ainda hoje tenho-o como o Holy Grail deste formato. O disco que originou esta minha sede por lançar obras em nome próprio. Revisito o disco umas quantas vezes durante o ano e fico feliz de o mesmo ter envelhecido bem. Continua a ser uma óptima companhia para qualquer momento.”
[Maria]
“É um disco que para mim teve muita importância, por mais do que uma camada. A primeira é a mais lógica, que é a técnica. Quando o disco saiu, eu estava mesmo no meu início e lembro-me especificamente de ter comprado o disco e, passado um ano, quando já estou a estudar em Vila Franca de Xira e conheço o Raptor, nós fazíamos um exercício muito técnico na casa dele de dissecar o disco, perceber os tempos, tentar atingir aquele som de drums. Infelizmente o Raptor já cá não está, se não certamente também diria umas palavras sobre este disco, e também foi muito importante para mim nesse aspecto.
Depois, o disco ensinou-me as várias dimensões da música. Eu já samplava, mas não percebia onde é que estava o soul. E foi com este disco que descobri. Ensinou-me essa multidimensionalidade que os beats de hip hop têm, que podem não ser só dedicados única e exclusivamente aos rappers, que era uma visão muito presente na altura — e ainda é, mas cada vez menos. E essa é a maior aprendizagem que retirei do disco. Todo o meu trajecto como produtor tem sido muito ligado à beat scene, à música instrumental, muito mais do que fazer beats para rappers, e isso tem muito a ver com este disco. E, depois, onde é que vou fazer as pesquisas, onde é que está o soul… É a maior lição que tiro e ainda está muito presente nas minhas rotações. Nos meus sets, às vezes até em sets de club, passo uma ou duas músicas deste disco. E estou muito feliz que possamos reouvi-lo agora num formato completamente diferente.”
[Minus]
“É um disco importantíssimo para mim enquanto produtor, mas curiosamente foi enquanto MC que tive o primeiro contacto com o CD, porque podia gravar demos com letras minhas por cima dos instrumentais do Sam. Era mais fácil para mim na altura colocar o CD a reproduzir e gravar os meus raps por cima num gravador de cassetes que usava em 2004. Os instrumentais estavam ali à mão, não exigia que fosse fazer download ou procurar instrumentais à Internet. E a nível sónico o disco soa como se fosse qualquer herói americano que disponibilizava beats para MCs adolescentes, como eu na altura, podermos rimar por cima.
Foi também com o Beats Vol.1 que comecei por me interessar por fichas técnicas e despertou uma curiosidade enorme de saber como foram gravados os instrumentais, a participação do D-Mars no projecto, a editora, etc. Enquanto produtor, este projecto do Sam The Kid tem uma importância muito significativa anos mais tarde, e até recentemente quando fiz o Man with a Plan, porque é o primeiro disco instrumental português com um conceito, pensado e interpretado com esse intuito. Isso é mesmo muito importante porque não estamos a falar de uma beat tape ou de um CD de beats soltos que os produtores passam de mão em mão a rappers. Isto é um disco conceptual.
Em tom de curiosidade, em 2018 lembro-me de, numa conversa com o Henrique Amaro, ele ter partilhado comigo que o Beats Vol.1 e o meu disco desse ano eram os únicos discos instrumentais a passar em airplay na rádio pública. Esta particularidade é um motivo de grande orgulho e admiração pelo trabalho do Sam e pelo impacto geral que este disco tem na comunidade e atenção do público em geral.”
[Praso]
“O Sam The Kid, com este álbum, inspirou-me primeiro do que o J. Dilla. Porque eu não fazia ideia de muitas técnicas de produção que existiam na altura, nem sequer trabalhava com MadTracker e estava a anos-luz ainda sequer de poder ver uma MPC à minha frente, e uma das grandes razões pelas quais me tornei um grande viciado na MPC foi porque o Sam quase sempre trabalhou com ela. Tenho duas ou três pessoas que me inspiraram muito por isso, mas a primeira foi mesmo o Sam The Kid.”
[Raze]
“O Beats Vol.1: Amor saiu na altura em que eu comecei a fazer rap e a dar os primeiros passos na produção. Curiosamente, a minha primeira maquete enquanto rapper foi feita num instrumental desse álbum. A par das beat tapes do D-Mars, enquanto Rocky Marsiano, foi dos trabalhos que mais me influenciaram, pelo menos na dinâmica de ter um fio condutor ou um conceito por trás. A qualidade era muito à frente no tempo, sem deixar de lado a parte mais crua dos recortes.”
[Sickonce]
“A minha relação com este disco tem uma particularidade porque não o consigo localizar no tempo, na minha memória. Para mim, este disco ocupa um espaço temporal de anos, como se a importância do lançamento e a rotação que lhe dei ocupasse mais espaço do que o normal e por isso não consigo associar a uma altura da minha vida ou mesmo a outras coisas que estivesse a fazer. Sei que me influenciou muito na forma como produzia e na utilização de samples.
Não sendo exemplo único, foi muito importante para os lançamentos de álbuns instrumentais em Portugal, que era algo que eu consumia muito vindo de fora. Além de todo o valor musical, para mim tocou-me muito a importância dada ao lado conceptual que sempre foi algo que me interessou em lançamentos artísticos.
“O rapper que lançou um dos álbuns instrumentais mais importantes até hoje no panorama nacional”: isto tem um significado e importância gigante para o espaço do produtor/ beatmaker e foi um ponto de viragem no panorama nacional. Enquanto produtor, pela primeira vez vi rappers à minha volta a olharem para beats que não eram tentativas de bangers a serem valorizados e isso abriu o interesse para tantos beats que outros beatmakers tinham nos seus cartões, disquetes e discos de computador. Hoje continua a ser relevante e actual — ou seja, é mais uma demonstração da sua qualidade e que o lado instrumental desta arte tem esse poder.”
[TNT]
“Quando ouvi pela primeira vez esse disco, a principal reacção que tive foi de curiosidade. Já tinha ouvido alguns discos instrumentais, se calhar não muitos de hip hop — normalmente ouvia instrumentais que vinham em lados B de discos — e quando ouvi este a principal reacção que tive foi: “Como é que isto foi feito? Como é que os samples foram processados desta forma? Como é que os chops foram feitos nos samples de forma a criar uma melodia que, claramente, não é a original? Como é que as vozes que entram foram colocadas ali? Como é que o pitch foi feito para todas as coisas baterem certo umas com as outras? Como é que este corte e costura foi feito com tanta eficácia?” Suscitou-me, enquanto produtor, esta curiosidade — sendo que, na altura, não sabia que tinha sido gravado ao vivo e eu também não dominava a MPC. Na altura ainda trabalhava com o computador, e tudo aquilo ser feito à mão numa máquina é realmente uma coisa muito mágica e teve o resultado que teve.
Na altura, os beats, na sua maioria, eram loops. Maiores ou menores, mas percebias claramente que eram loops. E já o Sam The Kid estava a dominar uma arte muito parecida com os chops do Premier, do Pete Rock, curtos e que construíam melodias e acabam por ser a sonoplastia de que ele vem a falar nos álbuns mais tarde. Muito nessa lógica de construção de uma melodia nova a partir de coisas já existentes.
Adorei o disco, gostei de ouvir a história e fiquei sensibilizado porque claramente dá para percebê-la, e gostei acima de tudo que não fosse considerado uma beat tape ou um conjunto de beats, mas sim um álbum. Um álbum que conta algo. Foi uma surpresa muito bonita e marcou uma geração.
Na altura emprestei esse CD a um colega meu da faculdade, em troca de outro disco de uma banda portuguesa no qual o Cruzfader dava uns scratches. O tempo foi passando, perdi muitos CDs ao longo da minha vida, mas aquele foi um dos que me sempre ficaram… Foi uma grande tristeza porque sabia que não iria haver reedição e queria muito recuperá-lo. E normalmente, quando emprestas algo assim a alguém, passado tanto tempo, a pessoa já não tem, trocou de casa ou perdeu. Mas voltei a contactá-lo, numa altura em que reuni uma colecção de CDs de hip hop tuga, tinha essa lacuna e fui atrás desse meu colega da faculdade — liguei-lhe na esperança de conseguir recuperar o CD e ele tinha-o. E perguntou-me pelo dele, que eu também tinha. Quase 15 anos depois de termos acabado o curso, combinei com ele voltarmos a trocar os CDs e fiquei super contente porque o Beats estava intacto e impecável.”