[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTO] Direitos Reservados
Em 2015, o Super Bock Super Rock mudou-se de armas e bagagens para o espaço do Parque das Nações, com os cabeças de cartaz a ocupar espaço no MEO Arena, uma sala com muitas provas dadas no principal campeonato da música ao vivo em Portugal. Será quase de certeza esse o cenário para o concerto de K.Dot, o primeiro no nosso país após o triunfal ano de 2015 em que viu To Pimp a Butterfly dominar praticamente todas as listas de melhores registos destes últimos 12 meses e até as nomeações para os Grammys. Já se sabe que este será um concerto imperdível, mas se por acaso pertencem à inexplicável classe dos cépticos que ainda não vivem convencidos pelo talento maior do que a vida de Kendrick Lamar, deixamos aqui seis razões para pensarem melhor no assunto, enquanto se dirigem para a bilheteira mais próxima.
[SECTION 80]
O primeiro álbum “a sério” de Kendrick Lamar é também o seu primeiro clássico. Data de 2011, mas tem uma aura de pérola de outro tempo. Poderia ser um clássico mais secreto dos anos 90, mas não – é já um claro produto deste novo milénio. Na crítica que publicou sobre o disco em 2011, a Pitchfork começava por dizer que Kendrick era “um miúdo estranho”, uma outra maneira de dizer que a sua personalidade intrigava e que não era fácil encaixá-lo nos “moldes” então disponíveis. De Compton, mas muito diferente dos rappers que fizeram nome nesse bairro, com Section 80 K.Dot conseguiu comparações a projectos mais singulares da Costa Oeste como Souls Of Mischief e Pharcyde, o que são óptimas referências, mas ainda assim insuficientes para explicar o que dali viria. O cuidado na escrita, a pontaria certeira na escolha de beats que lhe servem os flows e lhe permitem olhar para diante, a profunda musicalidade do todo, as imagens, as metáforas, as respirações. Tudo apontava para a grandeza que os dois álbuns seguintes haveriam de confirmar. E abrir um disco com o power incontido de “Fuck Your Ethnicity” dizia logo muito da classe de um artista.
[GOOD KID M.A.A.D. CITY]
A aclamação para good kid, m.A.A.d. city, lançado em Outubro de 2012, foi imediata e unânime. Numa era de instantes partilhados em redes sociais, Kendrick Lamar preferiu criar um filme, “um dia na vida de…”, apresentando ao mundo um álbum conceptual carregado de ideias, fluente em rimas, fluído em batidas, maduro e, sobretudo, inteligente – “menos Boyz in the Hood do que Uma Agulha num Palheiro”, escreveu a Billboard referenciando o filme de John Singleton, por um lado, e o clássico literário de J.D. Sallinger, por outro. A aclamação parece ter surgido de todo o lado, mesmo dos mais improváveis recantos da pop: Dan Reynolds, dos Imagine Dragons, elogiou a escrita de Lamar – “quando ouço Kendrick Lamar sei que todas as palavras foram usadas por uma razão”; já Taylor Swift deu à sua vénia a dimensão de um desejo – “adorava ser a melhor amiga de Kendrick Lamar e não sou…”. Tantas palavras simpáticas são, afinal de contas, compreensíveis: o primeiro álbum real – no sentido “palpável” do termo, mas também com espessura industrial graças ao contrato conseguido por Dre – de Kendrick Lamar mereceu os mais rasgados elogios da imprensa internacional que o elevou à condição de clássico do género, levando-o a ombrear com os melhores momentos discográficos de artistas como Jay-Z ou Nas, outros fenómenos que souberam emergir das ruas e erguer-se acima das massas.
[TO PIMP A BUTTERFLY]
Trinta e seis anos depois de “Rapper’s Delight” dos Sugarhill Gang, 30 depois de King of Rock dos Run-DMC, mais de duas décadas depois de Illmatic de Nas e quase 15 anos depois de Blueprint de Jay-Z, alguns dos marcos indiscutíveis do panteão hip hop, Kendrick Lamar ousa tentar redefinir as margens do género que o formou e a que entregou dois clássicos: Section 80 e good kid, m.A.A.d. City. E ao terceiro álbum, K.Dot decide reinventar o género através de um muito simples acto: a sua própria reinvenção!
Recorrendo a uma complexa equipa de produção que, no entanto, evita os habituais super producers que costumam ser responsáveis pela fatia de leão do budget, Kendrick investe na interacção entre manipuladores de máquinas e músicos reais para criar um álbum musicalmente denso e complexo que deve muito a um estudo atento dos agentes de ruptura que foram empurrando a música negra para o futuro – dos Parliament/Funkadelic a Prince ou à escola de Los Angeles representada por Flying Lotus, que assina a introdução do álbum. E depois há todo o conceito poético do disco, uma intrincada rede de ideias em que Kendrick questiona a sociedade e a realidade que o rodeia (“The Blacker the Berry”) não deixando de se olhar a si mesmo no espelho, como a dupla de temas “i” e “u” tão bem deixa claro. Ter música forte de um lado e ideias sólidas do outro não são, no entanto, garantias por si só de sucesso artístico. O triunfo estético de To Pimp a Butterfly reside na forma como Kendrick submete todas essas forças criativas a uma visão que é artística, política e pessoal, profundamente honesta e capaz de redefinir as regras do jogo. O hip hop não voltará a soar igual depois de um disco assim e todos os protagonistas de primeira linha desta cultura – de Jay-Z a Nas, de Drake a Kanye West – devem estar ainda a repensar estratégias e a atirar material para o lixo. A fasquia está agora mais alta.
[MIXTAPE COM J. COLE]
A acreditar nas capacidades de dedução de Ricardo Miguel Vieira, o próximo dia 16 de Fevereiro poderá muito bem ser o dia em que o mundo receberá (certamente de braços abertos) o projecto colaborativo de J. Cole e Kendrick Lamar, anunciado em finais de Novembro último durante a Black Friday. É um encontro justificadamente antecipado: J. Cole, que arrancou para a sua carreira com o apadrinhamento de Jay-Z, e K-Dot, que cedo recebeu a benção de Dr. Dre, representam duas linhagens distintas e são a personificação do sangue novo que devolveu urgência e excitação ao universo do hip hop. Muito provavelmente, parte do material que constar nesse projecto colaborativo há-de ser transposto para os palcos.
[TRABALHO COM BLACK HIPPY]
Ab-Soul, Jay Rock, Schoolboy Q e Kendrick Lamar. Um supergrupo que, de facto, ainda não editou nada enquanto tal. Têm surgido múltiplas colaborações, com o quarteto a pontuar temas nos seus registos individuais (“Shadow of Death” no álbum Black Friday de Jay Rock ou “Constipation” no álbum Longterm Mentality de Ab-Soul, para dar apenas um par de exemplos) e é natural que Kendrick possa evocar algum desse material nos seus concertos do próximo ano. Aliás, nem seria descabido pensar que 2016 poderia ser o ano de lançamento do primeiro álbum de Black Hippy embora isso seja mais wishful thinking do que dedução apoiada em factos neste momento.
[COLABORAÇÕES EXTRA]
Kendrick tem sido chamado bastas vezes para deixar a sua marca em trabalhos alheios. A diversidade extrema dos convites diz muito do alcance da sua arte: citando apenas as participações registadas em material alheio em 2014 e 2015 é possível construir uma lista ecléctica em que figuram os nomes de Imagine Dragons, Alicia Keys, Pusha T, Flying Lotus ou Taylor Swift, para citar apenas alguns exemplos. E K.Dot bem que se poderá socorrer de alguns dos versos que foi oferecendo a singles de outros artistas na hora de cuspir argumentos no palco do SBSR.