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Publicado a: 10/11/2016

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virtus se eu fosse

 

[TEXTO] Francisco Noronha

Tal como entendemos fazer relativamente à republicação da crítica a UniVersos , optámos, também neste caso, por republicar a crítica a Se Eu Fosse… tal e qual a mesma foi originalmente publicada (com excepção de pormenores de ordem formal) em 2012, no site Rua de Baixo (motivo pelo qual ficam desde já ressalvadas quaisquer desactualizações).

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Há uma questão, prévia e incómoda, que só a preguiça de reflexão pode justificar que evitemos quando se escreve sobre um álbum de beats ou, se se preferir, de instrumentais. Afinal, o que é isso de hip-hop instrumental?

Ainda há tempos, Serial, produtor dos Mind Da Gap, dizia que, para ele, não era concebível fazer um álbum só de batidas, e isso porque, considerando-se a si mesmo como um “fundamentalista”, não dispensava, em momento algum, as vozes, isto é, no caso do hip-hop, o rap do MC. A questão não é de agora, pois o hip-hop dito instrumental tem já uma longa história. Podemos dizer que a erupção do conceito/género coincide com o lançamento do histórico Endtroducing… (1996), estreia de um californiano de 24 anos que jamais deixaria de estar ligado à vanguarda da música contemporânea: DJ Shadow. Construindo batidas exclusivamente a partir de samples extraídos das mais diversas “plataformas” (música, cinema, ruídos anódinos, barulhos do quotidiano citadino, anúncios televisivos, etc.), Shadow construiu uma obra-prima, cujo meio de execução – o sampling, precisamente – representou uma gigantesca democratização da criação musical, ou, mais genericamente, da criação artística.

Desde então, o género ganhou asas e do hip-hop instrumental mais classicista (beats), representado por nomes como J Dilla, Pete Rock, Wax Taylor ou RJD2, chegou-se a paragens mais longínquas, marcadas pela fusão e pelo experimentalismo, que transformaram o hip-hop em música avant-garde (tal como os Kraftwerk faziam, em 70, a música de vanguarda a que o hip-hop foi beber influência), como são disso exemplo artistas como Flying Lotus, Exile ou Prefuse 73. A “instrumentalidade” – no duplo sentido que a expressão consente, i.e., como género musical e como meio para obtenção de um fim – não deixa de estar intimamente associada, aliás, ao florescimento de novas estéticas urbanas, hoje muito em voga, como o trip-hop, o downtempo e, mais recentemente, o dubstep. O grande ponto de interrogação sempre residiu em saber se o dito hip-hop instrumental valia, por si só, como música, isto é, como género autónomo. E se esta dúvida pouco sentido faz no que respeita ao hip-hop instrumental mais experimental (o tal, por exemplo, de Flying Lotus) – já que, aqui, há, de facto, um organismo vivo que respira por si mesmo –, o certo é que, muitas das vezes, no hip-hop instrumental mais clássico (samples e loops), permanece sempre aquela sensação de insatisfação, de que falta alguma coisa: então e o rap? Felizmente, porém, não é isso que sentimos em Se Eu Fosse… (2012), o novo álbum de instrumentais de Virtus.

 



Em Portugal, só mais recentemente é que o hip-hop instrumental começou a ganhar lugar próprio, com a emergência de toda uma nova geração de beatmakers (Madkutz, dB, Minus, Raez, etc.), embora o primeiro grande artificie na arte tenha sido Sam The Kid, que, em 2002, lançou esse tesouro chamado Beats Vol. 1: Amor (repare-se que não estamos a falar de meros produtores, onde caberiam NelAssassin, Bomberjack, etc., mas de autores de hip-hop exclusivamente instrumental).

Este ano [n.d.r.: 2012], Virtus, depois de lançar a sua primeira obra(-prima), UniVersos, acaba de disponibilizar para download gratuito Se Eu Fosse…, álbum de instrumentais que não engana ao que vem: boom-bap nova-iorquino (Premier, Large Professor) carregado de jazz e soul, aquilo que os norte-americanos cunharam como soulful. O gosto (e mestria) na composição já se faziam sentir no seu primeiro EP, IntroVersos (2008), onde, entre outras, O Começo (intro instrumental) revelava um produtor com “P” grande. Se o hip-hop instrumental tem sido, predominantemente, de cariz digital (composto a partir de MPC e programas informáticos), Virtus assina, em Se Eu Fosse…, um disco de uma sonoridade profundamente orgânica, pontuada constantemente por linhas de baixo, teclas, saxofones e outros instrumentos de sopro (e thumbs up se é mesmo uma arpa que se ouve em “O tempo”). Um pouco aquilo, no fundo, que os Orelha Negra fazem, mas com instrumentos (“Um regresso” soa, autenticamente, à banda lisboeta).

O título do disco completa-se com o título de cada uma das faixas, resultando no desejo naïf de Virtus em ser, por exemplo, “Manhãs de 90”, “Tentação”, “Pugilista” ou “Suspiro”. E por aqui já se vê o ambiente de nostalgia (soul music, pois claro) que perpassa todo o álbum, onde parece a todo o momento que estamos de volta a um qualquer passado, a um tempo remoto mais belo, mais doce – a infância (e Virtus é um ser “peterpanesco”, como já se sabia de “Outros Modos” e como o artwork deste álbum o comprova), naturalmente, mas também os primeiros amores (“Quase nós”), os primeiros sonhos e as primeiras frustrações. De resto, esta sensação back in the days está chapada em muitos dos títulos das faixas: “Manhãs de 90”, “Outra vez Primeira vez”, “Um regresso”, “O tempo”.

 


https://www.youtube.com/watch?v=o7TDFtAmUfE

Já tínhamos feito a comparação, por ocasião de UniVersos, entre Sam The Kid e Virtus, e ela volta a justificar-se, pois que também Beats Vol. 1: Amor mergulhava na mesma atmosfera melancólica dos good old times, enfim, naquela coisa tão portuguesa a que chamamos saudade (a propósito, já era altura de alguém samplar Cesária Évora). Por outro lado, a sensação com que ficamos depois de escutar os discos de um e outro é a mesma, a saber, o do amor e do carinho com que tudo aquilo foi cuidadosamente trabalhado, numa pesquisa arqueológica das referências e vivências que o artista revela ora de modo mais flagrante (em “O tempo”, ouve-se uma récita do poema “Explicação da eternidade”, de José Luís Peixoto), ora charmoso e sub-reptício. Todavia, onde o álbum de Samuel Mira denotava alguns desequilíbrios (a duração exagerada das faixas, que as fazia cair na monotonia e na redundância), próprios de uma primeira obra, Se Eu Fosse… mostra ter um dedo muito mais seguro na ordenação daquilo que pretende, não deixando que o tempo de cada faixa ultrapasse os três minutos e sabendo introduzir múltiplas variações, melódicas e rítmicas, no decorrer da mesma. A isto acrescem os vocals (herança de Sam), perfeitamente coerentes com os títulos das faixas em que se incorporam: ouve-se cantar “come back” em “Um Regresso” e Erykah Badu (a de “Searchin’”, música original de Roy Ayers) no final de “A vontade de ir”.

Não obstante o talento inequívoco de Virtus na composição e na capacidade de transmitir emoções, apetece dizer que este é um álbum demasiado… perfeito. Demasiado arrumadinho, ordenado, coerente, onde tudo está nos trincos. Por essa razão é que sentimos um pouco a falta de um rasgo, de um certo aventureirismo sónico que lhe conhecemos de outras paragens. Referimo-nos, concretamente, àquelas sonoridades mais noctívagas, sujas, que se podem escutar em “Só Artistas”, “História de Todas as Histórias” ou “Figuras Públicas”. Essa ausência do risco, do pisar de terrenos mais desalinhados, talvez se explique pelo carácter conceptual do álbum, e, na verdade, as únicas faixas que fogem ao binómio jazz-soul são “Pugilista” e “Suspiro” (momento lindíssimo ao piano).

 



O ano de 2012 acaba por terminar em grande para o hip-hop português. Ao novo álbum dos Mind da Gap (Regresso ao Futuro) e de Sir Scratch (Em Nosso Nome), junta-se agora um álbum de instrumentais de um dos artistas mais talentosos – senão o mais talentoso – da nova geração do hip-hop nacional, cujo percurso merece um acompanhamento a par e passo, tamanhas são as suas potencialidades enquanto letrista e produtor. Aplica-se a Virtus aquilo que um dia Valete rappou sobre Sam the Kid (em “Hall Of Fame”): “Sam, ninguém sabia o que o puto valia / Sam, ninguém sabia no que se tornaria…”.

 


Se Eu Fosse… by Virtus

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