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Fotografia: Margarida Rocha e Silva
Publicado a: 17/06/2023

Na antecâmara de um aguardado regresso da pianista aos discos.

Zoe Rahman Octet no Turner Sims: uma noite de matéria policromática

Fotografia: Margarida Rocha e Silva
Publicado a: 17/06/2023

À nossa frente, um Steinway & Sons de cauda repousa paciente, em silêncio, à espera de ser tocado. Sempre que o é, preenche a sala do Turner Sims, em Southamptom, de overtones retirados de uma série harmónica aparentemente infinita. Sabemos que, na prática, esta série encontra-se truncada, mas são tantas as vibrações que produz – e de timbre tão característico – que questionamos se até a mais simples molécula ali presente não lhe responde em ressonância. Em segundo plano, à nossa direita e não menos ávidos por serem tocados, um contrabaixo e uma bateria Gretsch fitam-se com cumplicidade. Em primeiro plano, vários microfones, saxofones, clarinetes – estarão ali os sopros, pensamos, no mesmo instante em que da porta lateral surge o octeto de Zoe Rahman. De sorriso aberto e contagiante, a pianista e compositora britânica apresenta-se vestida com claras referências às suas origens bengali. Seguem-lhe os restantes membros da banda: Gene Calderazzo (bateria), Alec Dankworth (contrabaixo), Rowland Sutherland (flauta e flauta alto), Helena Kay (saxofone alto e clarinete), Mark Armostrong (trompete), Tori Freestone (saxofone tenor) e Rosie Turton (trombone). Prontamente percebemos que esta é uma formação que combina experiência com talento emergente.

A postos para o início da atuação, o octeto surge de fronte a uma parede de tijoleira iluminada a tons azuis-esverdeados, contrastantes com os laranjas e vermelhos que naturalmente dela ressaltam. Uma combinação de cores perfeita, ou não estivesse Zoe Rahman ali para apresentar Color of Sound, o seu novo álbum como líder de banda. Este trabalho será oficialmente lançado no próximo 7 de Julho, sendo um muito aguardado regresso da pianista aos discos. Em 2016, Zoe lançou Dreamland, um notável álbum a solo, e provavelmente o registo em que mais expõe as linhas de raciocínio do seu hábil e intricado pianismo em que música dita clássica e jazz se encontram. Pense-se na síntese que resultaria de um encontro entre Rachmaninoff e McCoy Tyner e não se andará muito longe da expressividade que a pianista natural de Cheshire projeta nas 88 teclas. Contudo, para ouvirmos Zoe Rahman em banda temos de recuar até 2012, pelo que a expectativa de escutar as matizes do novo Color of Sound era grande.

O octeto encetou a atuação com o single “Dance of Time” – o avanço inaugural dessa próxima obra foi disponibilizado no mês passado – preparando o terreno para um concerto em que Zoe afirmou toda a sua magia ao piano; Calderazzo esteve sempre interventivo e pleno de intensidade; Dankworth – um senhor do contrabaixo! – protagonizou alguns dos melhores solos da noite; e a secção de sopros interpretou maravilhosamente os arranjos das composições, com frequentes passagens de testemunho que presentearam a plateia com intervenções maravilhosas – todos excelentes nos solos, com o novo sangue do grupo, Helena Kay e Rosie Turton, a evidenciar porque ali está. À enérgica “Dance of Time” seguiu-se o novíssimo “For Love” e dois temas dedicados aos filhos de Zoe – “Little Ones” e “Sweet Jasmin”, que mostraram tanto o lado ternurento como a vertente jubilosa e divertida das composições de Zoe. Experienciámos ainda a suavidade meditativa de “Peace Garden” que confortou os presentes com as cascatas melódicas do piano.

Mas à medida que o concerto avançava, apercebíamo-nos, no entanto, que o título do álbum é um claro oxímoro, pois a matéria aural deste trabalho revelava-se profundamente mais mais substancial do que mero revestimento cromático. É antes música que flui através de dinâmicas desafiantes e inesperadas: quando sentimos que a agarrámos, já das nossas mãos se escapou. Trata-se, pois, de matéria fluida com propriedades reológicas singulares. Subjacente à aparente consonância e melifluidade das melodias, encontra-se uma tensão diastólica que preenche os ventrículos dos espaços harmónicos, estendendo-os ao limite da sua plasticidade. As resoluções, essas, surgem como pontos de inflexão que apontam para dimensões de entendimento. Um par de compassos bastam para uma contração calculada de regresso a cambiantes familiares. O octeto então converge: Zoe, Alec e Gene dão-nos a matriz-base da passagem, e os sopros unem-se para lhe dar verticalidade. Agarramos a música novamente. Quando nos apercebermos, esta voltou a escapar-nos. Surgem novas texturas, novos caminhos, novos lugares; um universo diferente do anterior, um novo solo, novos estímulos. Concentrados pelo desafio da proposta, fechamos os olhos e deixamo-nos levar.

De regresso para o segundo set, Zoe apresentou-se em trio, ladeada pelos seus habituais companheiros de estrada, Dankworth e Calderazzo. Esta secção rítmica já colaborou com nomes como Pharoah Sanders, Abdullah Ibrahim, Ginger Baker ou Dave Brubeck, sendo, pois, um verdadeiro tesouro de experiência musical. Com classe e elegância, o trio fez o que de melhor sabe fazer: tocar jazz contemporâneo com a desenvoltura e gosto superlativo. Terminado este momento mais intimista, a espinha dorsal do octeto voltou então a juntar-se à secção de sopros para o último alinhamento de temas. Houve espaço para visitar o anterior álbum de Zoe como líder de banda – Kindred Spirtis (2012) – através de “Conversations with Nellie” e “Maya” – este último tema onírico escrito para a sobrinha da pianista e compositora – e ainda “Go with the Flow”, originalmente escrita para o livro Nikki Iles & Friends, Book 2, o que levou Zoe a desafiar todos os pianistas da sala a tocá-la.

Do novo Color of Sound, escutaram-se ainda “Roots” e o majestoso “Unity”, tema que totaliza e plenifica esta ideia de octeto, desvelando todos os detalhes dos riquíssimos arranjos. Ao vivo e a cores, celebrou-se a união depois de anos de separação forçada, longe dos palcos. Se os músicos sentiram este afastamento como ninguém, este também não foi um pormenor de somenos para o público. Evidenciou-o o facto de que ao primeiro sinal do fim do concerto, da plateia rapidamente gritou-se “one more!”. Regressou então o octeto a palco para deliciar os presentes com um último blues de Duke Ellington. Momento de consagração com direito a solo da maioria dos músicos. Seguiram-se vagas de aplausos para um espectáculo que encheu todas as medidas. Está assim aberta a tour de apresentação de um álbum que só agora começou a criar ondas. Prevê-se que sejam grandes – e coloridas.


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