No Teatro do Bairro Alto (TBA), a goma-laca estará no centro da atenção, numa instalação performativa pensada e executada pelos investigadores etnógrafos e artistas sonoros Yasuhiro Morinaga e Robert Millis no dia 26 de Setembro às 19h30.
Como recurso natural, a goma-laca é um produto finito à escala humana. A regeneração de recursos é um tema-debate que tarda a ter efeitos, como o ponto urgente de arrepio no consumo. Parecem já faltar ideias e abordagens para efectivamente se travar a tempo a dependência das matérias primas de fonte não humana.
A goma-laca é uma resina natural amplamente utilizada na indústria e obtida do ciclo de vida do insecto da goma-laca. Foi no passado empregue no fabrico dos primeiros discos para gramofones. É esse o ponto de partida com que esta dupla de trabalho parte para a abordagem de “Life Entangled — The Secret Story of Shellac”.
Ao Rimas e Batidas, o nipónico Moringa e o norte-americano Millis respondem a uma série de questões sobre o propósito e a ideia contida no seu trabalho em torno da goma-laca. Da história do produto, quanto á origem e produção, passando a outras leituras relacionadas com o objecto de investigação principal de Millis — o disco antigo de 78 rotações e a actividade de recolhas sonoras pelo mundo.
Henry Thoreau, como autor transcendentalista, escreveu que: “Música é o som das leis universais promulgadas”. Podemos partir deste ponto de leitura para a nossa conversa. Até onde nos pode levar esta mesma citação? Que leitura permite essa ideia?
[Robert] Concordo com Thoreau, mas esta citação só nos leva até certo ponto… A música é diferente para cada pessoa. Alguns diriam que o que Yasu e eu estamos a criar para o TBA dificilmente pode ser considerado música — são sons ambientais, drones, gravações de campo, vozes, sons experimentais, arte sonora, mas não “música”, não como a que se ouve na rádio. Para mim, o “som” é infinitamente fascinante. Não há sons bons ou maus. A música é apenas uma parte de todo um mundo de sons. Claro, é uma parte óptima e agradável e muito importante, mas, para mim, todos os sons podem ser música, depende apenas do que fazemos com os sons, como os ouvimos, quão abertos estamos. Sempre senti isso, desde criança. Sempre gostei de efeitos sonoros em filmes ou do som de passos, ou do vento… Navego pelo mundo através do som.
A obra sonora que se propõem a apresentar no TBA com “Life Entangled — The Secret Story of Shellac” reveste-se numa camada algo enigmática, como que selada por uma laca protectora bem a propósito do nome. O que se pode revelar do que vai ver e ouvir?
[Yasuhiro e Robert] Há que ir à apresentação para descobrir. Mas podemos adiantar que estamos a abordar um tema bastante antigo e complexo, com infinitas variações: o lugar da humanidade no mundo, como os seres humanos interagem com a natureza e as conexões e descobertas surpreendentes que se podem fazer quando se ouve e pensa com os ouvidos. Não estamos a criar o enigma. O enigma criou-nos.
Esta resina natural é amplamente utilizada em processos artesanais de selagem e envernizamento desde tempos antigos e muitos luthiers de instrumentos de madeira utilizam-na no seu trabalho. Como surgiu o interesse e a ligação a este material como fonte de som?
[Robert] Como artista sonoro, faz sentido para mim interessar-me pelas origens muitas vezes surpreendentes do som gravado, sem mencionar como nós, seres humanos, ouvimos e usamos esses sons. Nós, seres humanos, passámos milhares e milhares de anos sem conseguir gravar e reproduzir sons. Nunca sequer pensámos que isso fosse possível. De repente, em 1877, Edison tornou a gravação possível. Então, Emile Berliner (usando goma-laca) inventou o disco plano como o conhecemos na década de 1890. Uma parte tão importante da cultura, uma mudança tão grande para a humanidade — mas com apenas 150 anos. Tenho uma grande coleção de discos de goma-laca de 78 rpm, cilindros Edison, gramofones e Victrolas. O meu fascínio por esse período é uma maldição! Eles ocupam muito espaço! Mas eu adoro-os.
Yasuhiro, tens uma extensa actividade de recolhas sonoras, muito focada na música de gongos e outros instrumentos dos arquipélagos asiáticos como Indonésia, Vietname ou Cambodja, entre outros. Podemos aceder ao catálogo de edições digitais gravadas, compiladas e produzidas por ti na editora The-Concrete. É ai onde consta também esse hipnótico Snake Charmer que gravaste no Rajastão.
[Yasuhiro] Se não viajarmos, nunca conheceremos sons como estes. Embora, no meu caso, as circunstâncias possam ser ligeiramente diferentes. Trabalhei durante muitos anos no Japão como diretor musical para filmes e produções teatrais. Nesse contexto, tive inúmeras oportunidades de criar obras ao lado de pessoas de toda a Ásia. Quando fui a esses lugares, não só os artistas, mas também a população local receberam-me calorosamente e ensinaram-me todo o tipo de coisas. Essas pessoas locais não são músicos profissionais; a maioria delas são agricultores que trabalham na terra durante o dia. Então, eu ficava na aldeia até que o trabalho deles terminasse, ou ajudava-os nas suas tarefas, e gradualmente tornávamos-nos amigos e eles deixavam-me gravá-los. Parecia que essas oportunidades continuavam a aumentar. Ainda tenho muitas gravações por lançar, mas não quero apressá-las sob pressão só porque as gravei. Afinal, as gravações em si não envelhecem. Sempre acho que as pessoas que me deixam gravar devem ser as primeiras a ouvir o som que captei, depois tento voltar aos lugares que visitei sempre que possível. Quando faço isso, muitas vezes recebo novas informações, o que me leva a viajar para lugares diferentes novamente. É um ciclo.
Ao que sabemos, a goma-laca é originalmente proveniente da Índia. Robert, vem dessas viagens esta relação que agora pretendem abordar?
[Robert] Sim e não. Originalmente, interessei-me por discos de 78 rpm e gramofones antigos como fonte de sons estranhos, arcaicos e incomuns para a minha prática de arte sonora, especialmente o ruído estático e arranhado da superfície, que para mim é como nuvens misteriosas — as nuvens da história e do tempo. Então descobri a música incrível gravada em discos de goma-laca. Fui à Índia pela primeira vez em 2008 para começar a refazer os passos de Frederick Gaisberg — o primeiro produtor musical que viajou para a Ásia em 1902 para fazer as primeiras gravações de música asiática.
Há um manuscrito, Shellac: A Story of Yesterday, Today & Tomorrow escrito por Elizabeth Crandall, que refere que foi a pedido da coroa portuguesa, numa missão cientifica à Índia, que o holandês Jan Huygen van Linschoten (n. 1563) se tornou num dos primeiros europeus a descrever a goma-laca. Como vês nesse contexto histórico esta tua apresentação em Lisboa, passado estes séculos? Justamente a cidade onde estás radicado Yasuhiro.
[Yasuhiro] Antes de me mudar para Portugal com a minha família, eu estava habituado a realizar trabalho de campo principalmente em áreas remotas da Ásia. À medida que continuei este trabalho na Indonésia, Vietname, Índia, sul da China e regiões sul e norte do Japão, desenvolvi um interesse pelas relações auditivo-culturais, acústico-sociológicas e religioso-antropológicas entre o Oriente e o Ocidente, desde os séculos XVI e XVII até ao século XX e aos dias de hoje. Neste contexto, no ano passado, criei uma instalação para a exposição de reabertura do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian (CAM), intitulada “ENGAWA”, apresentando perspectivas dos povos indígenas da Amazónia chamados Awa e dos Kakure Kirishitan do Japão (comunidades católicas japonesas durante o século XVII, quando o governo japonês proibiu e perseguiu o cristianismo). Desta vez, porém, cheguei à conclusão de criar uma obra a partir da perspetiva do não humano (incluindo objectos) — especificamente, da perspectiva da goma-laca.
[Robert] O Yasu mora em Lisboa e eu moro nos EUA (mas, actualmente, preferia não estar nos EUA, pois é um país difícil neste momento). Jan Huygen era um espião! Não era de confiança. O seu relato é muito interessante, mas talvez tenha sido o início de um fascínio pelos recursos da Ásia que levou ao colonialismo, ao imperialismo e a todos os outros “ismos”. Espero que a nossa apresentação analise criticamente esta história e contribua para uma maior compreensão dos nossos recursos naturais, da forma como os utilizamos e de como devemos trabalhar em conjunto, em vez de ver outras culturas (ou animais, ou insectos) como mercadorias.
Esta performance sonora resulta de uma dupla de trabalho. Há um guião assinado em conjunto, mas quem assume a música que vão apresentar és tu, Robert. Como é que surgiu esta vossa relação de trabalho?
[Robert] O Yasuhiro e eu conhecemo-nos no Japão, onde eu também estava a investigar as primeiras gravações e discos japoneses de goma-laca (quando Frederick Gaisberg fez as suas gravações asiáticas em 1902, ele foi primeiro para a Índia e alguns meses depois para o Japão). Yasu e eu partilhávamos interesses semelhantes em gravações e som e achámos que seria divertido e interessante trabalhar juntos em algo. O Yasu organizou este projeto com a TBA e estou feliz por trabalhar com ele nele.
E foi na Índia que a goma-laca surgiu como material de suporte fonográfico, como referiste?
[Robert] Sim! Na primeira metade do século XX, talvez metade da goma-laca importada da Ásia fosse destinada à fabricação de discos de gramofone de 78 rpm. Mas a sua história remonta a milhares de anos antes disso. Exploramos a história da goma-laca principalmente através do som, mas isso é porque somos músicos, etnógrafos e artistas sonoros. É assim que vemos o mundo.