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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 01/04/2022

Retrospectiva de um amor profundo.

XXYYXX: 10 anos de uma promessa por cumprir

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 01/04/2022

Dois synth glides abrem o disco. Os BPMs são muito lentos e a percussão vai soando espaçada, a cambalear quase. Uma voz em reverse surge: um anjo qualquer que, claro, imperceptivelmente, diz algo como “live forever inside”. 

Apenas dois acordes que se repetem ao longo de “About You”, música que marca uma geração de ouvintes no Youtube, plataforma na qual a faixa soma milhões de visualizações, em diferentes vídeos e canais. Sim, muitos também conhecem os tais acordes do tema de abertura como o beat (rearranjado) da “Child’s Play” de SZA com Chance The Rapper – uma boa maneira de mostrar também como o beatmaker chegou a tanta (e tão boa) gente.

Os mesmos synth glides abrem (a sério) as portas para a obra de XXYYXX, o produtor americano que aos 17 anos lançava o (homónimo) álbum. Depois da mixtape Still Sound, Marcel Everett, um jovem a crescer ligado ao digital, editou a sua música nas plataformas que hoje já tomamos como garantidas, numa época com um Youtube em grande força; um SoundCloud no seu auge; um Bandcamp em crescimento.

Aliás, em conversa pelo Instagram com o único featuring que XXYYXX tem, a cantautora Steffaloo falou-nos abertamente da colaboração: “Como aconteceu com muitas das colaborações das quais fiz parte na altura, nunca tinha conhecido o XXYYXX na vida real antes de ele ter-me contactado via Internet, para ver se quereria fazer uma faixa em conjunto (…) foi um tempo mágico quando o Tumblr e os blogues de música estavam no seu pico, e todas as colaborações que eu acabei por fazer, praticamente tiveram origem através desse mundo”. Mesmo com esta brecha para falar com alguém que colaborou com o produtor, a aura de mistério mantém-se: “Agora que penso nisso, o Marcel é um dos poucos produtores que eu ainda não conheci em pessoa.”

XXYYXX aparece em 2012 como uma nova força nos campos do hip hop instrumental mais electrónico, cercando o pós-dubstep, ecoando ideias que vinham reflectidas do trip-hop e do downtempo da década de 2010, colocando-se lado a lado de músicos como Giraffage, James Blake, Clams Casino, Mount Kimbie, Groundislava, TOKIMONSTA ou Nosaj Thing, embora com uma maturidade bem diferente de alguns destes pares. 

A equação: os graves + o sampling destemido de grandes temas e grandes artistas (Amy Winehouse, TLC e Ne-Yo talvez sejam os mais memoráveis) + a sonoridade tão enraizada na produção electrónica mais digital = evidências claras de um millenial a tomar conhecimento do que o YouTube e as DAWs, aliados a uma criatividade acima da média, podem fazer. A produção minimalista de XXYYXX sabe onde respirar e onde despejar efervescência instrumental. Pode ser ritmicamente densa, influenciada tanto pelo trap e pela EDM, de pancadas normalmente reverberadas e texturas etéreas.

Voltamos aos synth glides… “About You” é a canção maior, o vídeo mais marcante, a impressão digital que ficará sempre associada a Marcel. Mas não está só. XXYYXX tem em “Fields” o sufocante peso do ciúme encafuado na voz de Winehouse quando, com a voz pitchedup, repete em chops “what did you with him today?”, submersa naquela melodia de synth, que cresce ao longo da faixa, até à (quase) exaustão. XXYYXX apresenta a beleza romântica de “Closer” e calma depois da tempestade de “TIED2U”. Tem o peso altamente melancólico e esmagador de “DMT”, a velocidade irrequieta de “Set it Off”. É difícil não enxergar a capacidade de Marcel Everett de transportar emoção tanto nas melodias dos samples que cantam sobre os sub-bass e kicks mais pesados, como nos pads sedosos e etéreos. 

Sobre este fértil período da vida do (muito) jovem produtor, Steffaloo ainda confessou : “Honestamente, eu nunca tinha ouvido falar do XXYYXX até ele ter-me contactado. Eu acho que ele tinha literalmente 16 anos ou assim e estava apenas a começar a obter alguma atenção… Eu tinha estes vocais que eu adorava mesmo e não tinha ‘casa’ para eles. (…) Quando o Marcel me chamou, pensei imediatamente nestes [vocais] e enviei-lhe. Quando ele me enviou o que tinha feito, estava apaixonada… foi a ‘casa’ perfeita para as vozes”.



Everett demonstra mestria total, mesmo em tão tenra idade – impossível esquecer este dado –, no trabalho das vozes e na construção da estrutura a favor da composição. A produção hip hop de baixa fidelidade, que na sua vertente mais genérica peca pela estrutura previsível, vê-se adulterada nas mãos de XXYYXX, que tempera a gosto com dinâmicas e narrativas vertiginosas – no tão bom sentido do termo. Querem o remate certeiro? Steffaloo, mais uma vez, com a palavra: “A música que fizemos juntos ainda é uma das minhas favoritas das quais tive a possibilidade de fazer parte. E todo esse álbum dele foi uma introdução perfeita ao tipo de música este miúdo era capaz [de fazer]. Ainda o oiço frequentemente.”

Pelo caminho, XXYYXX ainda foi recebido no Plano B, no Porto, e no Lounge, em Lisboa, acompanhado por Giraffage, no mesmo ano de lançamento deste álbum. Por mensagem privada, falámos um pouco com Paulo André Cecílio, jornalista e crítico musical, que, de memória naturalmente “enevoada”, nos contou um pouco do que viveu no evento sobrelotado para a pequena (apenas de tamanho) sala lisboeta: “(…) se há algo que me ficou desse concerto foi a quantidade absurda de povo que lá foi de propósito para o ver. Claro que o facto de o concerto ter sido gratuito também ajudou… Convenhamos que não é difícil encher o Lounge, mas chegar lá e constatar que havia fila desde a porta até ao elevador da Bica é daquelas coisas que impressionam. (…) Tirando alguns (poucos) desistentes, a malta que lá estava não queria mesmo arredar pé.” 

A performance ficou marcada por alguns “empurrões e discussões”, e não excluiu, obviamente, o tema que levou tanta gente ao espaço: “(…) fui ao YouTube e vi que alguém gravou um vídeo dele a tocar a “About You” – malha extraordinária que bateu imenso à altura, até por culpa daquele videoclipe meio artsy, meio charrado, e que obviamente só poderia ter feito parte do alinhamento (caso contrário o pessoal partia aquilo tudo). O acontecimento e o pré-concerto acabaram por ficar mais comigo que a concretização.“

PAC, quando lhe perguntámos se concordava com a percepção de que XXYYXX não era imensamente falado, respondeu: “Provavelmente já não ouço de uma ponta à outra também há 10 anos. Mas o facto de estares a escrever um artigo sobre ele, sendo que não estiveste naquela noite em Lisboa, já prova alguma coisa: prova que é possível que o disco – composto quando ele era apenas um puto de 17 anos, convém recordar – está a caminho de atingir o invejável estatuto de álbum de culto. E normalmente são esses discos os melhores.”

Talvez por questões de direitos de autor, o âmbito digital em que o disco floresceu deu azo a várias retiradas do mesmo das principais plataformas de streaming, e foi “perdendo” faixas nesse processo. Inicialmente, outro dos temas-chave desta fase de XXYYXX era “Overdone”, com Anneka. O remix vinha como parte do download do álbum, mas foi sendo posto de parte, em particular no Bandcamp ou no Spotify. Actualmente, na plataforma de Daniel Ek, o disco aparece sem algumas das suas músicas e com a ordem totalmente adulterada, no entanto, ainda é possível ouvir na sua concepção original no Bandcamp, sem a já referida “Overdone” – tema imperdível num bom sistema de som ou bom par de headphones, pelo sub-bass característico desta época.

O quase desaparecimento de Marcel Everett sob o heterónimo XXYYXX não o fez cumprir a promessa (involuntária, diga-se) de emergir enquanto um dos artistas mais refrescantes que os profundos recantos da Internet viu prosperar. Sem chegar ao nível do seu álbum homónimo, os anos que se seguiram foram de esparsa e escassa atividade, em que a irregularidade e menor importância dos trabalhos se revelaram de forma mais evidente.

Sem nunca reformar este nome, o artista passou os últimos 10 anos a lançar, de forma muito informal, singles e remixes pelo SoundCloud, nos quais navega pelos mares do lo-fi, do chill-hop, do hip hop e r&b ao estilo contemporâneo. No radar, talvez tenhamos apenas dois registos, para além do seu XXYYXX e da já referida primeira mixtape, que possamos considerar longas-durações… Exone e (II) são trabalhos de âmbito mais exploratório, com características de música ambient e música concreta – desde a ausência quase total de elementos rítmicos ou beatbased à presença fulcral de fieldrecordings – e que, não descurando a vertente emocional e etérea que lhe é inata, têm coordenadas composicionais bem distintas. 

Há 10 anos, Marcel Everett, agora a rondar os seus 27, trouxe mais uma pirâmide hipnótica para a história recente da música dita electrónica — embora de uma forma tímida, deixou a sua marca. A influência pode não ser clara, pela pouca webgrafia que existe sobre XXYYXX, mas a Internet tem uma memória profunda e, pelas várias plataformas de que já falámos, há centenas, milhares, incontáveis comentários que louvam este disco pelo seu cariz emotivo, agradável, ébrio e orelhudo. Não precisamos de ver repercussões directas na música de outrem para um disco ser considerado importante ou influente. A marca que deixa nas pessoas, em quem ouve, essa é por vezes a mais profunda conexão que um artista pode deixar. Resta-nos saber o que está nos planos do músico americano.


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