Quem quer ser lobo tem que lhe vestir a pele e é isso exactamente que João “Kitten” Vieira White Haus, de seu nome (quase) completo faz agora em Wolf Manhattan, projecto que lançou há um par de meses o seu segundo álbum, Real Life Is Overrated, e que agora se prepara para pisar o palco do Paredes de Coura’24.
Numa conversa aberta, João Vieira abre o jogo sobre o processo criativo, mas também sobre as condicionantes que pesam sobre a vida de uma pessoa que também é artista ou sobre o que significa estar do lado de lá, na plateia, a ver ídolos em plena performance em modo anónimo.
Assumindo ter o espírito do punk debaixo da pele e a inspiração dos grandes clássicos a guiá-lo, João Vieira não esconde nada debaixo da manga, tira a máscara de lobo e guia-nos então pelo seu agitado presente.
Quando fizeste o primeiro álbum de Wolf Manhattan, já tinhas a noção de que essa seria uma aventura que irias continuar e à qual irias acrescentar capítulos? Ou foi uma coisa que tendo sido muito pensada para aquele momento conseguiu no entanto ganhar tracção posteriormente?
Eu faço as coisas a pensar a curto prazo, não a longo prazo. Depois da pandemia, isso obrigou as pessoas a repensar a sua forma de estar. E além da pandemia, há toda esta situação actual da indústria — isto está tudo tão diferente e continua a mudar num curto espaço de tempo, que não dá para uma pessoa pensar se a coisa vai durar, se vai ter dois ou três álbuns. Os projectos em que eu me meto — seja X-Wife, White Haus ou agora com Wolf Manhattan — normalmente são feitos a pensar no momento. Eu penso: “Agora vou fazer isto. Vou fazer um disco e depois logo se vê.” Se eu estiver a gostar do projecto que estou a fazer, se estiver contente com o resultado final, se gostar de o tocar e de andar na estrada, se tiver paciência para isso e me der prazer, eu sigo muito o meu instinto. Por isso é que fiz agora uma pausa com White Haus, pois não estava a sentir. Agora estou a sentir este projecto, também porque a minha direcção musical mudou um pouco. Sinto que agora estou a navegar por águas um pouco diferentes, mas que vão também um bocado de encontro àquelas que são as minhas raízes. É o punk, é o indie… Foi aí que eu comecei a ouvir música. Os primeiros discos que eu ouvi foram de música punk, o Bowie e o Lou Reed, esses grandes artistas. Wolf Manhattan é um bocado isso, o regresso às minhas origens. E eu não penso muito. Eu fiz aquele primeiro disco com um conceito e uma identidade muito própria, porque foi feito só com uma guitarra, uma caixa de ritmos e um órgão. Aí eu limitei-me. Agora, neste segundo disco, eu já quis que as coisas mudassem. Por isso, neste momento tenho este disco e não sei se vai haver um terceiro, ou se volto para White Haus ou se deixo a música [risos]. Eu estou a viver o momento. É só isso.
Eu entendo essa ideia do artista que vive num eterno presente, porque há sempre uma obra a ser criada neste momento — seja uma pintura, um livro, um disco, o que for. O artista foca-se nessa obra e o presente é uma entidade muito forte que prende o artista — no sentido em que o desresponsabiliza do passado a até do futuro. Existe essa ideia de que o que importa é o que está a acontecer agora, não é?
Claro.
Mas tu não deixas de ser um civil. Quando despes a farda de artista, imagino que sejas confrontado com coisas que nós, os comuns mortais, somos confrontados regularmente — contas para pagar, o filho que tem de ir para a escola, enfim… Existem essas questões mundanas que também te devem tocar a ti. Como é que tu compatibilizas isso, essa vida artística em que estás preso a um presente e o lado do João Vieira que tem de pagar as contas e tudo mais? Como é que essas duas coisas jogam uma com a outra?
Não é fácil. Mas são muitos anos disto. A minha carreira conta com mais de 20 anos neste momento. São 21 anos, 10 álbuns… É muito tempo. A verdade é que me tenho vindo a aguentar, não sei como. Faço muitos biscates, muitos projectos de música, tenho a minha actividade enquanto DJ… Mas eu, de há um ano para cá, andava mais preocupado com o futuro, com essa coisa que tu dizes de pagar as contas, de como é que vai ser a minha reforma, o meu futuro… O que eu tenho feito agora, e que fiz neste disco, é realmente dedicar-me à parte da aprendizagem de composição e de música, para tentar fazer um trabalho cada vez melhor, tentar superar-me. Tenho estudado mais música, mais teoria, mais a parte da composição, tenho trabalhado mais a parte da voz. Estou a tentar ser um artista cada vez melhor, que o meu próximo trabalho seja sempre melhor do que o anterior e que também se note que há uma evolução como intérprete. Neste disco eu trabalhei muito bem a voz, foi tudo muito bem pensado. Fui trabalhar com o André Tentugal aquela parte de perceber qual o registo que funciona melhor e tudo isso. Isto para te dizer que, de há um ano para cá, decidi: “Vou ser artista. Vai ser isto.” Eu ando nisto há demasiados anos. Já andei aí à procura de empregos, a ver o que é que poderia fazer e que tipo de cargos poderia ocupar, mas estou numa idade já um bocado complicada — por um lado, sinto que as pessoas não me querem dar cargos de principiante, mas por outro lado também não tenho a experiência nem o background para entrar num cargo de director de uma sala de espectáculos ou algo assim, apesar de eu achar que seria uma coisa que funcionava facilmente para mim. Ultimamente tenho-me vindo a tentar concentrar em viver com menos. Faço menos coisas, tenho uma vida um pouco mais regrada e controlada. Acho que a coisa mais valiosa que nós temos é o tempo, então aplico o meu tempo a fazer aquilo que gosto: a ler, a ver bons filmes, a ouvir discos, a descobrir música nova, a ir a lojas de discos, a aprender a tocar melhor guitarra e piano, a compor, a ver documentários e a estudar muito a forma de como fazer que os meus projectos se tornem mais interessantes, como é que os meus espectáculos podem ser melhorados. Há todo este trabalho de backstage que eu tenho vindo a fazer. Já consigo gerir muito bem a minha vida, estou há 20 anos sem ter um emprego, basicamente, porque trabalho por conta própria. Há meses péssimos e há meses melhores. Eu consigo gerir e ir-me aguentando. Então decidi: “É isto que eu vou fazer.” Se correr muito mal, começo a vender as guitarras uma a uma, depois os sintetizadores, os amplificadores, os discos… Vai tudo [risos]. Não vou passar fome. Tenho família e amigos, acho que está tudo bem. Também não sou uma pessoa assim muito ambiciosa, que sonha em passar férias em resorts de cinco estrelas e coisas assim [risos]. Por isso, tá-se bem.
Quando é que percebeste exactamente que ia haver uma sequela deste Wolf Manhattan e começaste a fazer o segundo disco?
Comecei a fazer o segundo disco quando ainda nem tinha saído o primeiro. Porquê? Porque eu não conseguia estar muito tempo parado. Eu estava nos estúdios Arda, em Campanhã, e tinha lá uma sala de composição e de produção onde fiz vários tipos de trabalhos. E como tu sabes, as fábricas de discos… Quer dizer, tornou-se um processo muito complicado fazer um disco hoje em dia porque os tempos de espera são demasiado longos, isto por culpa das Taylor Swifts e das Adeles desta vida que fazem 500 edições de cores diferentes e depois as fábricas ficam paradas. É muito difícil teres um disco em pouco tempo e isso é uma coisa que é um bocado frustrante do meu lado do vinil. Eu gosto do objecto do vinil, mas é um objecto que realmente complica muito em termos de edição. Tu tens um disco pronto — e eu tinha o disco pronto — e esperas nove meses até o ter cá fora. E nesses nove meses eu escrevi praticamente este segundo disco, porque eu pensei: “Bem, eu já o ensaiei, já tenho as pistas preparadas para tocar ao vivo. O que é que eu vou fazer neste tempo?” Comecei a preparar um segundo disco e apontei para uma coisa um pouco diferente em termos de produção. Tanto que os primeiros concertos do Wolf Manhattan já incluíram duas músicas do novo disco, porque os discos são demasiado curtos e, num espectáculo, meia hora de música é muito pouco. E basicamente foi isso. À medida que fui fazendo o disco… Eu normalmente vou para o estúdio, faço uma seleção de mais ou menos 20/25 canções. Depois, dessas 20/25 canções, levo 15/16 para o estúdio, e dessas canções há 3 ou 4 que se saltam fora. É esse o meu processo, normalmente. Por isso, quando tenho 20/25 canções, eu sei que é a altura de ir para o estúdio. Eu sou a pessoa que normalmente chega, decide que vai fazer uma canção e consegue fazer uma canção no final do dia.
Muito bem. Não vou usar nenhuma tecnologia mais moderna para fazer esta analogia, mas vou usar a ideia da disquete. Antigamente, para correr os programas nos computadores, tinhas que meter uma disquete e tirar outra disquete. Que disquete é esta que tu enfias dentro do computador quando queres trabalhar com esta identidade do Wolf Manhattan?
Eu acho que isto são fases. Eu vejo muito isto como… Até na minha carreira como DJ, eu vejo as minhas playlists e aquilo que eu passo num ou dois anos, e nos dois anos seguintes já estou numa onda diferente, já há discos que acho que não fazem sentido passar e procuro por coisas novas. Eu acho que este lado do DJ e da procura de música nova constante, que é algo que eu trago desde antes de ter estado em Inglaterra… Foi até uma das razões que me levou a ir viver para Londres, esta coisa de ir aos clubes e ver bandas ao vivo, ir às lojas de discos e ter acesso à música — estamos a falar numa era pré-Internet, estamos a falar dos anos 90. Por isso, eu acho que toda esta informação que eu fui acumulando na minha cabeça — e também por os meus sets serem tão ecléticos, indo de cenas desde o punk à electrónica, passar pelo disco ou pelo krautrock — permite-me separar muito bem as águas. E eu nunca quis estar limitado a fazer só um género de música. Eu não conseguia estar a vida toda a fazer só os X-Wife ou só a fazer White Haus, porque acho que isso é muito limitado. Há muita coisa que eu quero fazer musicalmente e que quero experimentar, porque isso também me motiva e também me entusiasma. Acho que a parte da escrita vem muito do entusiasmo. Quando tu vais escrever a pensar “tenho que fazer um single para a rádio, tenho que fazer um single para bater, para depois ir tocar nos festivais”, entras num processo que eu acho que é errado. Acho que tens que fazer a música de uma forma muito livre, e aquela cena de, no dia seguinte, voltares ao estúdio e ligares o material todo numa de “deixa lá ver o que é que eu fiz ontem”… Pões aquilo a tocar e dizes assim: “Hey, tenho aqui qualquer coisa. Há aqui qualquer coisa com que eu posso trabalhar.” Isso é uma sensação espectacular que tu procuras. E depois é aquela sensação de alienação, em que tu estás completamente absorto naquilo que estás a fazer e estás desligado do mundo, os teus problemas desaparecem. Há um lado muito terapêutico nessa parte de fazer música, que te dá entusiasmo e te motiva a acordar no dia seguinte para ir para o estúdio, ligar as coisas e ouvir o que é que fizeste. Eu deito-me e acordo a pensar nas músicas. O próprio livro do Wolf Manhattan, que saiu pela Stolen Books, foi escrito numa manhã com o gravador do telemóvel. Eu disse: “Já sei o que é que vou fazer.” Então gravei aquilo. É uma coisa que me mantém activo e que me mantém vivo, de certa forma. Por isso é que tenho muita facilidade na parte da escrita, de composição — eu acho que é a parte mais fácil. Articular tudo o resto é mais difícil — arranjar músicos para tocar isto, a parte dos fatos, a parte de toda a produção, de logística. A logística hoje em dia na música é muito complicada. É muito difícil essa parte. Isto não é assim tão simples como isso. A parte simples é criar as canções e gravar as maquetes. Isso é muito simples, tudo o resto é complicado.
É a isso que se refere o título do álbum? Tu estás a descrever um mundo em que tu vives criativamente dentro da tua própria cabeça e enfrentas todos esses desafios da escrita de canções, o pensar em personagens, em histórias, etc. É a isso que o título se refere? A essa vida artística que não é igual à vida “real” como nós começámos por discutir?
Sim. Eu adoro este tipo de títulos, em que é quase como tu ires ver uma pintura — tu interpretas aquilo à tua maneira, relacionas-te com a coisa da forma que queres. Há uma interpretação livre, às vezes nem se deve explicar muito bem o que é que aquilo quer dizer. Eu posso dizer duas ou três coisas importantes. Lembro-me de uma frase do Jarvis Cocker e vou citá-lo porque acabei de o ver há dois dias no Primavera Sound e adorei o concerto — 29 anos depois, voltei a ver os Pulp. O Jarvis diz: “Why live in the world, when you can live in your head.” Aqui é um bocado isso. Eu sempre me fechei um bocado de não querer viver a vida real, de ter um real job, não é? Eu tenho que falar com estrangeirismos porque o título está em inglês. Mas esta coisa de get a real job, get a real life, eu sempre me escapei um bocado a isso e o Wolf Manhattan, esta persona que eu criei — desde o fato e o cabelo, todo este mundo — é um bocado um escape a essa realidade. É aquilo que tu dizes, aquela coisa de pagar as contas e do dia-a-dia tornar-se um bocado chata. Então eu tenho que ter algum escape na minha vida para torná-la um bocado interessante. A vida não pode ser só pagar contas e estar preocupado com a educação dos filhos, as reuniões de condomínio e essas coisas. Foi esse escape que eu encontrei quando fui para Londres, aquilo era um mundo de fantasia. E aí a minha mãe disse: “Tu vives num mundo de fantasia.” Eu disse: “Pois vivo.” Eu digo isso numa música, na “Dreaming”: “I want to live in a world of fantasy”. E quando eu estou no palco… Se há momento para viver em fantasia é quando estou num palco. Uma pessoa já tem uma vida um bocado bege durante o dia-a-dia, há que haver ali um momento colorido, não é? Há que haver momentos em que uma pessoa se entusiasma a pensar nisso. Então foi um bocado nessa coisa de Real Life Is Overrated. Quando as pessoas dizem aquilo de get a real job ou get a real life… Really? Não sei. É também o eu pensar a vida assim: “Será que eu vou ser um artista para sempre?” E se vou ser um artista para sempre, com a idade isso torna-se cada vez mais complicado, por isso vou ter que trabalhar mais, vou ter que ser melhor em todos os aspectos musicalmente — seja na composição, como intérprete, tudo isso. Tens que ser mais audaz e ao mesmo tempo também tens que criar uma identidade cada vez mais própria, fazer uma coisa que ninguém está a fazer. Por isso, o esforço é cada vez maior agora com a idade do que foi com os X-Wife. Os X-Wife foi assim que aconteceu [estala os dedos], sem pensar muito. Wolf Manhattan é pensado, dá muito mais trabalho e tenho que batalhar muito mais. Por isso, as coisas mudaram muito em 20 anos, mas cá estou eu [risos].
Estava-me a lembrar daquele anúncio, que eu já não lembro bem sobre o que era, mas tinha aquela frase que ficou famosa, que é: “Até que idade pensas divertir-te?”
Sim, também há outra frase assim, muito engraçada, agora não sei quem é que disse, mas que era: “I hate work which is not fun.” São cenas, frases, que ficam na tua vida. Uma vez, acho que foi em Paris, numa exposição qualquer que eu vi, e eu até usei isso na minha biografia no Facebook já há muitos anos: “I hate work which is not fun.” Sou eu a pensar que todo o meu trabalho que é remunerado tem que ter algum lado de divertimento. E, por isso, esse é um dos objetivos da minha vida, fazer com que o meu trabalho seja algo que me entusiasme. É como aquele pessoal que escreve sobre as segundas-feiras, toda a gente nas redes sociais a dizer: “Segundas-feiras são péssimas.” E eu penso: “Pá, vocês devem ter uma vida horrível, porque eu adoro segundas-feiras.” Segundas-feiras são aqueles dias frescos, em que eu ligo os synths e estou ali no meu mundo — são altamente! Estes gajos que detestam as segundas-feiras são uns miseráveis, porque segundas-feiras… E quem diz segundas-feiras, diz os outros dias da semana, que são mais do dobro do que o fim-de-semana. As pessoas que vivem só para o fim-de-semana, ou vivem só para aqueles 15 dias de feiras por ano… Essa não é a minha vida. Prefiro ser um bocado mais pobre e comer massa com atum às vezes [risos]. Mas tá-se bem, não há-de ser nada.
Há bocado mencionavas ter ido ver Pulp ao Primavera Sound. Tu quando despes a pele de artista e vestes a de simples membro do público, ainda assim, vais com bloco de notas? Como é que o João Vieira vê um concerto desta natureza? Há ideias com que tu ficas, do tipo: “Ai é assim que eles fazem? Nunca tinha pensado numa coisa assim.” Que visão é essa que tu levas quando vais ver um concerto?
Há concertos que tiveram grande impacto para mim. Às vezes são concertos que passaram ao lado de muita gente e são significantes. Por exemplo, eu há muitos anos atrás vi o Adam Green em Santa Maria da Feira só com uma guitarra e, se calhar, a maior parte das pessoas não se lembra desse concerto. Mas eu acho que foi esse concerto que despoletou a cena do Wolf Manhattan — dez anos mais tarde, praticamente, porque aquilo inspirou-me realmente. Às vezes há assim coisas… Eu vou ver muita coisa e, nos festivais, tento sempre procurar coisas menos óbvias para descobrir, porque há sempre formas de pensar: “Espera aí, isto tem piada.” Normalmente, o que eu noto agora são as coisas que, para mim, não funcionam. São as desilusões. Eu tenho constantes desilusões com uma data de artistas e eu acho que o que se está a passar hoje em dia — e não querendo fugir à conversa — é que há muitos artistas na área a cancelar concertos e festivais, porque dizem que é demasiado dispendioso, e os que não cancelam estão a cortar nos músicos que tocam ao vivo, recorrendo cada vez mais a backing tracks e tudo isso. Às vezes perde-se um bocado para o espectáculo, não é? Eu fui ver, por exemplo, o Helado Negro e fiquei um bocado desiludido com o concerto. Fui ver os Pulp e adorei. Mas estamos a falar de orçamentos muito diferentes. Isso às vezes também impede as bandas de fazerem aquilo que realmente gostariam, não é? Mas então, do que é que eu tiro notas? Normalmente estou sempre à procura dos erros, aquelas coisas que te fazem pensar “este não é o caminho”. E eu estou com um grau de exigência cada vez maior em termos daquilo que eu gosto ou que não gosto, então é muito difícil eu sair de um festival e… Normalmente, há três ou quatro concertos de que eu gostei no meio de, para aí, uns 15 que eu tenha visto. Há coisas que já não me impressionam, provavelmente porque eu já vi mais de mil concertos. Os Pulp são um bom exemplo, porque vi há dois dias e deram aquele que foi o concerto da minha vida, o que eu vi em ’95 — foi o concerto que mais me emocionou e que mais senti até hoje. E praticamente 30 anos depois, vi um artista de 61 anos em grande forma e a dar um grande espectáculo. Isso motiva-me e cativa-me, porque tu pensas assim: “Há um lugar para estas pessoas também, que fazem um bom espectáculo, que são óptimos profissionais, são bons comunicadores, são grandes artistas, têm a sua identidade, e passados estes anos todos estão em grande forma. Isso dá-te uma réstia de esperança neste mundo todo dos influencers, das redes sociais e dos conteúdos. Pensas assim: “Há espaço para tudo, tens é que te esforçar no teu trabalho e ser honesto naquilo que estás a fazer.” Basicamente, o Jarvis mostra isso, tu notas que ele está ali, está confortável no seu papel, e ele está a cantar as canções. Ele não está… Por exemplo, eu senti isso nos Blur: eu senti que o Damon Albarn não estava com a mesma pica com que o Jarvis esteve. O Jarvis é um bocadinho mais velho que o Damon, mas eles estão mais ou menos na mesma época do britpop em que tudo explodiu. Quer dizer, o The Great Escape e o Different Class sairam no mesmo ano, em ’95, por isso eram das bandas grandes de Ingleterra na altura do indie — como os Oasis ou os Suede. Eu senti o Damon mais desinteressado, já mais virado para aquelas cenas que ele faz, mais para os Gorillaz e para os outros projectos dele mais de world music e tudo. Não senti tanto o concerto. O Jarvis senti que realmente estava espectacular, e isso para mim é a coisa mais importante, é sentir que está alguém em palco e que aquilo faz sentido naquela altura. O Nick Cave, eu acho que é um ótimo performer e que até ganhou com o tempo, tornou-se um artista cada vez maior. Por isso, uma coisa que eu vim a aprender com o tempo é que é realmente importante teres a tua identidade, é importante seres consistente no teu trabalho, naquilo que tu fazes, e é importante empenhares-te mesmo nos espectáculos. Para mim, um mau concerto pode-me desiludir ao ponto de nunca mais querer ouvir aquele artista da mesma forma, e isso acontece muito. Se calhar, muita gente vai discordar disto que eu vou dizer, mas eu fiquei um pouco desiludido com o concerto da Lana Del Rey, e eu até tinha o disco dela, e já não vou ouvir o disco da mesma forma, porque… Não sei, não senti o concerto, pronto. Mas é uma opinião pessoal. Eu acho muito importante que tu estejas constantemente, enquanto artista, a ver o que é que se está a fazer, a ver como é que o mundo está a mudar, como é que os artistas estão a mudar em palco, como é que se faz agora as coisas, e tentares fazer aquilo o melhor possível de acordo com as ferramentas que tens. Eu continuo a querer descobrir coisas novas que me entusiasmam, mas já foi muita coisa descoberta, é difícil encontrar as coisas que realmente… Eu digo-te uma coisa — e isto, se calhar, é uma coisa da idade —, o último concerto que vi no Primavera Sound e que realmente me surpreendeu foi Erykah Badu, que era uma artista que eu nunca liguei muito, porque não é o meu género de música, e fiquei para ver, e realmente aquilo foi uma coisa de outro campeonato, eu fiquei de boca aberta, tipo: “Ok, isto é outra coisa.” Ou, por exemplo, a Solange, que também vi no Primavera e adorei. Foram coisas que realmente me bateram muito e que me surpreenderam. É isso que eu procuro nos festivais, é aquela surpresa, o factor surpresa, o brio que eles têm naquilo que fazem. E também ligo muito à coisa de ter músicos em palco e haver esse cuidado com o som, tudo isso, como está montado… Os Pulp tinham oito músicos em palco e acho que isso também faz a diferença.
Há bocado mencionaste aí a palavra “ferramentas”. Conceptualmente, expandiste o projecto e meteste mais coisas dentro dessa mala de ferramentas que levaste para o estúdio, não é? E isso naturalmente tem uma consequência no som final do disco. Foi algo de propositado ou foste buscar aquilo que tu achavas que as canções estavam a pedir?
É isso. As canções é que mandam aqui. Se as canções querem uma bateria e se a canção vai melhorar por ter uma bateria em vez de uma caixa de ritmos, eu não me vou limitar, não me vou castrar a dizer: “Não. Tenho que usar a caixa de ritmos porque depois, ao vivo, vou ter que meter um baterista e isso vai ser um problema.” Eu sei bem que vai ser um problema e temos de falar das coisas como elas são: financeiramente, ter uma caixa de ritmos ou um baterista são coisas muito diferentes, porque tens de alugar uma carrinha, porque tens que ter roadie, porque é muito mais espaço que tu precisas para andar de um lado para o outro, as próprias salas de ensaios — tudo isso é complicado, não é? Mas eu agora também estou numa fase na minha vida que é assim: se é para apostar, é para apostar tudo, e eu não vou estar aqui a fazer falsas partidas ou a tentar ver se isto cola. Eu, para fazer, faço mesmo bem, e aqui eu pensei: “Ok, o primeiro disco é um primeiro disco.” E aqui eu uso sempre o exemplo dos The Cure, porque o primeiro disco deles é mais lo-fi e depois eles foram crescendo cada vez mais como banda. Eu aqui também pensei: “O primeiro disco tem um conceito, são umas cassetes que foram encontradas, por isso uso uma caixa de ritmos, um órgãozinho, a guitarra, e é isto que vai ser.” É um conceito mesmo de uma sonoridade lo-fi. Neste novo disco, eu pensei que estas canções já pedem uma produção, assim, um bocado tipo o Transformer do Lou Reed, que foi um álbum que eu usei um bocado como referência para este disco, em termos de variedade de canções, em termos da construção do álbum, porque o disco é bastante variado, e em termos de usar a bateria, o piano, o baixo. Eu queria que as canções ficassem… Não é que ficassem maiores, mas que tivessem uma sonoridade muito próxima daquilo que se fazia nos anos 70, em que as bandas… É aquela época dos primeiros 3 ou 4 anos dos anos 70, aqueles discos que saíram, que ficaram clássicos, porque são discos que eu acho que, 50 anos depois, tu ouves agora e soam muito bem e não são discos datados. Os anos 60 têm esse lado incrível para mim, são uma época que sobreviveu muito bem ao teste do tempo, enquanto que há bandas — mesmo a nível gráfico, não só a nível de som de estúdio — ficaram muito datadas, por exemplo, dos anos 90 — que agora voltaram. Mas os anos 60, eu acho que é uma época em que as coisas saíram sempre bem, não há discos assim datados, e vai desde o punk à eletrónica — tens discos de Kraftwerk, tens discos do Bowie, tens discos, sei lá, dos Clash, tens dub, tens tanta coisa. É uma década muito rica e que me inspirou muito para este disco. Se eu for fazer um disco dos anos 70, vou trabalhar com o Zé Nando Pimenta, que é um purista de estúdio, que é um gajo músico que sabe muito de música e que gosta de… Ele é de uma onda diferente da minha, mas tira o melhor partido dos instrumentos. Isso foi uma coisa muito pensada. É um álbum limpo, as coisas têm que soar muito bem, os instrumentos escolhidos foram bem escolhidos, os microfones, tudo isso. Quer dizer, é um trabalho muito cuidado. Isto deu algum trabalho, não foi assim uma coisa feita às três pancadas. É um trabalho muito cuidado em que tivemos que pensar realmente como é que estas canções poderiam sair a ganhar, e eu acho acho que elas ganharam bastante. Agora que estou a começar os concertos, e claro que este disco eu vou ter que o tocar em vários formatos, porque é a realidade. Eu não posso andar com 8 pessoas na estrada, porque isto é um projecto underground. Temos que ser realistas [risos]. A vida é assim. Mas uma pessoa não se pode estar sempre a queixar e eu estou naquela fase em que tenho que encontrar soluções para as coisas, tenho que as fazer. Há concertos agora… Em Paredes de Coura eu vou levar a banda completa — é um investimento da minha parte, mas é importante. Há concertos em que não vou poder levar a banda completa, mas isto é uma realidade dos dias de hoje. Os grandes artistas também têm de fazer essas opções, porque realmente é muito difícil andar na estrada hoje em dia, é muito caro, os cachês não subiram em 20 anos, posso dizer isso. Os cachês como DJ até desceram bastante, mas como bandas andam mais ou menos na mesma coisa. Só que as coisas estão muito mais caras do que há 20 anos atrás, porque tu não podes continuar a pagar o que pagavas a um roadie há 20 anos atrás, agora pagas mais. E um técnico é igual, e um músico contratado também. E eu percebo, porque isto é um trabalho, só que não dá para tudo, então tu tens que optar. Daí o Wolf Manhattan ter que ter um espectáculo cénico bastante rico para tu conseguires gerir e dizer assim: “Ok, para além da música vou ter que criar aqui algo mais que enche o olho, que seja diferente.” Eu lembro-me de uma pessoa que saiu do primeiro concerto do Wolf Manhattan no CCOP e que estava a comentar assim: “Isto foi algo realmente muito diferente.” E aquilo foi dos melhores elogios que eu poderia ter ouvido. Quer dizer, um gajo de 40 anos dizer que isto foi algo realmente muito diferente, ou não vai ver muitos concertos, ou então foi algo mesmo muito diferente, e era isso que eu queria fazer. Eu tenho que fazer algo diferente porque isto é um mercado pequeno, tenho três projectos as pessoas vão-se fartar de me ouvir. Eu tenho que inventar aqui qualquer coisa.
Há pouco dizias que o Transformer foi uma referência muito grande para este disco, e é curioso porque o Transformer do Lou Reed tem por produtor um outro artista, que é o David Bowie. Tu ao trabalhares com o André Tentugal também tens essa dupla forma de te relacionares com ele — são ambos artistas, ambos produtores, falam ali linguagens em comum. Como é que tu descreves esta tua relação com o André?
A relação com o André é engraçada, porque eu e o André temos backgrounds musicais completamente diferentes. Nós gostamos de música completamente diferente. Há ali uma ou outra coisa que nós gostamos em comum, mas somos de lados diferentes. Eu venho do punk, do glam rock, do Bowie e do Lou Reed. Ele não vem de nada disso. Ele vem de coisas tipo o Elliot Smith e os Fleet Foxes, e aquelas bandas mais folk e coisas assim. Ele gosta assim de coisas que eu não… Os Beirut e essa onda, sei lá, são os discos que ele tem lá em casa, agora que me estou assim a lembrar. Mas o que é importante e interessante neste tipo de colaborações, não é ir buscar um gajo que goste dos mesmos discos e que tem os mesmos discos que tu tens em casa. É exatamente ir buscar outra pessoa que te põe a ouvir música de uma forma um bocado diferente que te diga: “Já pensaste em cantar assim? Ou já pensaste que, se calhar, podemos mudar aqui a nota nesta música? Não casques tanto na guitarra. Ou se calhar isto precisa respirar, não ponhas a guitarra a tocar. Ou tira o órgão daqui.” Quer dizer, se tiveres uma pessoa que pensa como tu, um produtor não vai fazer ali grande coisa. Vai dizer assim: “Epá, isto está bem, não mexas muito, está óptimo.” Por isso há aqui canções que têm um cunho de produção praticamente meu, não é? Tipo a “Life On My Own”, que é uma música electrónica, é praticamente só minha. Mas também há músicas tipo a “Consequences” e a “Can’t Always Win”, que a parte da produção foi importante. E o que é que foi importante aqui também? A parte da voz, que é uma coisa que eu acho que vem das pessoas me terem vindo a dizer que assim estou a cantar melhor, que a voz está a soar melhor. Para mim, é uma coisa importante também. Como estes discos são mais despidos, a voz está mais presente, por isso tens que estar… É um bocado como ires para a praia, tens que mostrar o corpo, tens que fazer ali um workout se queres estar em boa forma [risos]. Aqui é a mesma coisa.
Tu estás a falar da voz e eu sinto precisamente que uma das coisas que a mim me parece muito mais trabalhada neste disco é a intenção. Ou seja, não necessariamente se a voz está mais bem colocada ou não, ou mais afinada ou não, não é tanto isso. Mas há ali uma intenção por trás de cada canção, quase que me faz pensar num trabalho teatral, sabes?
Sim, sim.
Tu vestes mesmo a pele de alguém dentro da tua cabeça e a voz está a seguir um guião, digamos assim.
Sim, porque a voz é uma coisa muito importante. Por exemplo, uma música como a “Can’t Always Win” foi gravada, passadas duas semanas voltei ao estúdio e voltei a gravar para conseguir aquele momento. Porque quando se está em estúdio não é só acertar nas notas, ou a voz estar aveludada. É a parte do sentimento, da intenção. Por exemplo, uma música que é a “Girl in Financial Crisis”, não era para ser eu a cantá-la por causa do título, e eu pensei: “Não sei se é bom eu cantar isto.” Mas então arranjei pessoas, raparigas para cantar a canção, e ninguém conseguiu fazer aquela cena que eu fiz, porque eu queria fazer uma cena tipo na onda das The Slits, imaginei os primórdios do punk em Inglaterra. Eu queria uma voz do género da da Vivian Goldman, esse universo todo. E ninguém conseguiu fazer isso, então: “Pronto, canto eu a canção, porque eu sei exatamente qual é o ataque para esta canção.” Ela é muito rápida e nem toda a gente consegue cantar tão rápido como eu, por isso há aqui realmente… É tudo muito cinematográfico. Eu fecho os olhos, estou a cantar aquilo e estou a imaginar… Ponho-me na posição das pessoas e tudo. Isto do The Wolf Manhattan Show é algo muito cénico. Eu digo sempre que o The Wolf Manhattan Show não é só um concerto, é muito mais do que isso, e eu gostaria que fosse muito mais. Se tivesse capacidade financeira para o fazer, eu fazia disto uma cena incrível, mas eu acho que isto também tem o seu charme, em que as pessoas percebem: “Ok, isto é um projeto alternativo e vamos tentar jogar com as ferramentas que temos.” Os cenários fui eu que os pintei e, com a ajuda de um amigo, estivemos a recortá-los com uma serra elétrica. Aprendi como é que se faz aquelas porcarias todas, sempre nos YouTubes [risos]. “Como é que eu vou fazer isto?” Mas tu tens que arranjar soluções. E pronto, eu penso sempre assim: “Não sei se este vai ser o meu último trabalho, se este vai ser o meu último álbum.” Este é o meu 10º álbum, o 5º a solo, e eu tenho que superar sempre o anterior, tem que ser sempre algo melhor, porque senão também não vale a pena. Porque depois é muito mais difícil para mim, alguém que tem uma carreira de 20 anos, de “furar”. Se eu agora dou um passo em falso, é como se fosse a rolar por uma escadaria abaixo, e depois tens que subir as escadas todas. E agora estou ali a meio, e estou a subir, não posso ir para trás, agora é só para a frente. E acho que é isso, é um trabalho de persistência, de resiliência. É o que é.
Quero fazer-te uma última pergunta. Vem aí Paredes de Coura, acabaste de estar no Primavera como espectador… Estes grandes concertos dão uma especial “pica”, imagino.
Sim, estes grandes concertos são muito importantes por várias coisas. A primeira é porque tens uma montra, estás a tocar para gente que nunca ouviu falar de ti e é uma forma de tu angariares os potenciais fãs e de chegares a muito mais gente. É uma forma de tu cresceres. Eu lembro-me de estar a tocar no Primavera Sound e de chegar ao fim e o meu Bandcamp já tinha vendido mais três ou quatro discos durante o concerto. Já tive pessoas a escreverem-me e a dizer: “Olha, foi uma surpresa incrível no festival.” Por isso, eu acho que hoje em dia é tão difícil tu “furares” no meio de tanta informação, que estes festivais são realmente oportunidades. São tantas as bandas a tocar num festival destes, portanto é um privilégio e tu tens que aproveitar muito bem estas oportunidades e tens que fazer o teu melhor trabalho, porque está lá muita gente que nunca ouviu falar a ti e tu vais estar a tocar para muita gente que te vai ouvir pela primeira vez. E isso é muito importante porque o primeiro impacto é muito marcante e aí podes chegar à gente. E isto é uma forma de tu cresceres. Os X-Wife cresceram muito também na base dos concertos ao vivo. Éramos uma boa banda ao vivo, então começou o passa-a-palavra e isso foi enchendo salas. É um processo que tem que se fazer, o projecto é relativamente novo. E eu agora tenho muito mais noção das coisas do que há 20 anos atrás. Isto é uma oportunidade gigante, nunca se sabe quem está ali no público, que frutos é que isto poderá dar. Pode não dar nada, mas são estas as grandes oportunidades que tu tens que agarrar. Por isso vou com banda completa, vai ser um espectáculo maior, e vamos tentar fazer o melhor possível, porque hoje em dia são raras estas oportunidades.