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Fotografia: André Tentugal
Publicado a: 28/10/2022

De volta à canção na sua forma mais rudimentar.

Wolf Manhattan: “Cansei-me das ultra produções, das camadas e camadas de sons sobrepostos em sessões do Pro Tools”

Fotografia: André Tentugal
Publicado a: 28/10/2022

O universo de Wolf Manhattan é marcado pelo fantástico, surreal, pela aspereza emocional lo-fi adornada por uma dose de pop. No disco homónimo de estreia, a receita é a seguinte: treze canções diretas marcadas pela folk e pelo punk – uma espécie de anti-folk – nas quais João Vieira, que mais conhecemos de X-Wife e White Haus, se fragmenta e se reinventa, do interior das quatro paredes do seu quarto para o mundo, fruto de “uma urgência criativa” nascida “durante a pandemia”. 

Wolf Manhattan foi revelado ao mundo no passado dia 22 de setembro, conta com contribuições extra de André Tentugal e será apresentado ao vivo a 3 e 10 de Fevereiro de 2023, no Auditório CCOP, no Porto, e na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, respetivamente. O disco surge num packaging que é também um jogo e, posteriormente, terá também a edição de um livro de ilustração a relatar a história deste lobo com selo Stolen Books. 

Para percebermos mais sobre o mundo onde habita este lobo e de onde surgiu tudo isto, o Rimas e Batidas trocou algumas impressões por e-mail com João Vieira sobre esta sua nova persona.



Referes, no comunicado partilhado com a imprensa, que este Wolf Manhattan nasce “de uma urgência criativa durante a pandemia”. De onde é que floresceu este lobo dentro de ti?

Da vontade de fazer algo diferente, de me reinventar. A pandemia quebrou um ciclo e senti que estava na altura de explorar outro tipo de conceito, de sonoridade, algo mais orgânico e minimal, que facilmente poderia fazer sozinho sem recorrer a uma parafernália de sintetizadores e maquinaria. Cansei-me das ultra produções, das camadas e camadas de sons sobrepostos em sessões do Pro Tools (software que utilizo) e quis voltar à criação de música da sua forma mais simples, basicamente a escrever canções na guitarra e no órgão com uma pequena caixa de ritmos.

Na entrevista com o Mário Lopes para o Ípsilon, referiste que sempre tiveste “canções perdidas que não se enquadravam em White Haus ou em X-Wife”. Tens alguma memória de quando é que surgiu a primeira cantiga que daria origem a este projeto?

Não tenho grande memória disso, mas foi talvez há uns dez anos atrás que escrevi as primeiras canções. Algumas delas estavam perdidas e anotadas num caderno, nem sequer tinham registo em áudio. A “Voices in My Head” e a “Never Want to See You Again” são as mais antigas.

O livro menciona que o Wolf passava os dias a ouvir a coleção de discos do tio. Quais eram os discos a que o Wolf mais vezes regressou durante a composição destas cantigas?

O que mais ouvi durante a composição das canções foram sobretudo as Shangri-Las, Jonathan Richman & The Modern Lovers, Velvet Underground, Devendra Banhart e Chet Baker, e também Aldous Harding, Kinks, Fat White Family, Cate Le Bon e muitas canções soltas de álbuns perdidos e obscuros.

Comparativamente com os teus outros projetos, que maiores diferenças sentiste a criar para este Wolf Manhattan? O que te levou a explorar estas sonoridades mais cruas, suburbanas, do lo-fi, folk punk e anti-folk?

Sempre quis explorar este lado mais direto, mais lo-fi da canção. São referências que me acompanham desde miúdo. Assim como quando criei White Haus, ao sentir que havia uma sonoridade a explorar que não estava no ADN de X-Wife, fiz o mesmo com Wolf Manhattan: explorar um som mais cru, mais direto, algo sem influências de eletrónica, somente guitarra e órgão com a caixa de ritmos do mesmo. Aqui limitei-me a utilizar só estes dois instrumentos para me distanciar dos outros dois projetos e fazê-lo de forma a que, se tivesse de tocar as canções sozinho, elas funcionassem. Queria que soasse a algo antigo mas, ao mesmo tempo, a uma sonoridade fresca e atual. O facto de utilizar instrumentos que datam até à data de 1970 e recorrer a um estúdio profissional contemporâneo (Arda Recorders), artilhado de bom material analógico e digital, fez com que conseguíssemos alcançar esse objetivo, essa sonoridade. A minha coleção de discos vai desde Scott Walker a Tyler, The Creator, de Crash Course in Science a Stooges. É-me difícil ficar num só sítio. Reflexo disso foram as festas do Club Kitten, onde se ouvia punk, pós-punk, new wave, disco, coldwave e eletrónica.

As canções do disco, mesmo que cruas e diretas, continuam a relevar o teu ouvido para a melodia, e acho que isso contribui para uma certa quirkiness. De certa forma, esse lado deste lobo serviu como refúgio e escape à solidão da pandemia ao introduzir esse aspeto mais “divertido” à coisa?

Para ser franco, não pensei muito nisso, nem analisei demasiado a coisa. Simplesmente lancei-me neste projeto pois acordava entusiasmado a pensar nele e nas 1001 coisas que poderia fazer para lhe vincar a sua identidade. Daí ter surgido o jogo de tabuleiro e a história do Wolf (que será editada em livro, em breve). Deixo-me levar pelo entusiasmo, não analiso demasiado as coisas. Não quero perder o lado da inocência e da espontaneidade durante o processo criativo, por isso foco-me só na criação e deixo-me levar, quase como se fosse um miúdo outra vez. Adoro aquela fase do crescimento em que as crianças fazem desenhos incríveis, daí a quirkiness que tu falas, e isso perde-se com o tempo. Chega a uma altura em que os desenhos deixam de ter piada, são demasiado pensados, numa tentativa de maior proximidade da realidade. Perdem a piada e perdem aquele lado surreal da coisa, que é o que me agrada. Nas canções, tento fazer o mesmo.

Este Wolf Manhattan encontra-se localizado no interior de todo um universo, uma história. Como é que passaste das canções para todo este mundo criado?

Essa foi a parte mais difícil, como lançar as canções, em que contexto e em que nome. 

Ultimamente, tenho comprado edições em vinil (atuais) de discos perdidos no tempo, com músicas que nunca foram editadas ou não tiveram a devida atenção na altura e foram descobertas por alguém influente ou uma editora que os decidiu reeditar. Por exemplo, o caso de Sybille Baier, um disco de voz e guitarra, gravado nos anos 70, que foi lançado 30 e tal anos mais tarde por um simples acaso: o seu filho compilou as canções da mãe em CD para oferecer à família e deu uma cópia a J Mascis, dos Dinosaur Jr., que acabou por o passar à editora que o lançou. Essa história fez com que ouvisse as canções de uma forma totalmente diferente. 

Acho que ao criar uma história e um personagem, as canções ganham um outro fascínio, outra vida, e foi a partir deste princípio que me lembrei: “E se estas canções tivessem sido feitas nos inícios dos anos 90 e só fossem descobertas agora? Porque não inventar uma história à volta disto?”  E aí surgiu a necessidade de criar um personagem, alguém que viveu num pequeno apartamento algures num ambiente urbano, longe do ambiente rural e dos subúrbios, na América (Manhattan), afastado de tudo (lobo solitário), a gravar estas canções. Juntei as peças e imaginei um miúdo com uma guitarra a viver num pequeno apartamento por cima de uma mercearia local. O resto é história… 

O universo de Wolf Manhattan, para mim, traz-me à cabeça um lado que, se à primeira poderia parecer “infantil”, assemelha-se mais ao fantástico e ao surreal. Houve alguma inspiração em específico para as personagens deste mundo?

A ideia era exatamente essa, ter um lado infantil e ao mesmo tempo adulto, algo um pouco assustador mas cómico. O ilustrador conseguiu captar bem esse objetivo na capa do disco. Não houve uma só inspiração em específico, mas, sim, inúmeras referências distintas  que fui colecionando até chegar ao personagem e universo finais, desde o Tomi Ungerer, autor de livros infantis ilustrados, que lançou vários livros nos anos 60, ao Ghost World, de Daniel Clowes, dos filmes indie americanos de Noah Baumbach e Greta Gerwig aos primeiros desenhos do Warhol (ele também uma influência, pois acaba por se revelar alguém bastante solitário refugiando-se na sua arte), e, evidentemente, a Factory, os Velvet Underground e muitos outros.

Procurei uma realidade urbana e decadente das grandes cidades, mas também com um toque de aldeia local um pouco sinistra e afastada de uma realidade global, como na série britânica The League of Gentlemen onde existia uma loja local para pessoas locais. O próprio vídeo da “Voices in My Head” retrata isso, um concurso de talentos no meio do nada, cheio de personagens surreais sem habilidade nenhuma.



O André Tentugal parece ter sido uma peça importante na construção deste disco enquanto produtor. O que é que ele ofereceu em específico ao universo sonoro deste Wolf Manhattan?

O André motivou-me a lançar estas canções pois viu potencial nelas, não numa visão comercial, mas porque achou que as canções eram boas. Isso foi importante pois deu-me logo um empurrão. 

Em termos práticos, ajudou-me a selecionar as músicas que iríamos gravar em estúdio. Corremos uma a uma. Houve temas que não foi preciso mexer muito, outros estruturámos, procurámos o tom ideal para a minha voz e os instrumentos adequados para toda a sonoridade. Houve canções que ganharam uma abordagem totalmente diferente (“Little Girl” e “Back to Her”), onde ele fez mais arranjos de guitarras, e outras onde trabalhou mais arranjos de órgão e guitarra acústica.

O processo de mistura e busca do som partiu de uma playlist com várias referências de sonoridades e de estilos de produção. Esse foi talvez o processo mais complicado, a procura do som, algo que não desvirtuasse o sentimento das canções, que não as tornasse demasiado sofisticadas e não perdessem aquele lado mais lo-fi caseiro, mas, ao mesmo tempo, que soassem frescas e intemporais.

Quando estava a escutar este primeiro disco de Wolf Manhattan, dei por mim a pensar que, de certa forma, existe aqui alguma exploração da ideia de espetáculo – é relevada na “Goodbye”! – e da ausência de relação entre espectador e artista durante a pandemia. Como alguém com tanta experiência em cima de um palco, como tens visto a alteração dessa dinâmica ao longo dos anos e, especialmente, no “pós”-pandemia?

Gosto do facto de teres dito que é o primeiro disco de Wolf Manhattan, como se um segundo disco estivesse nos planos do projeto. 

É exatamente isso, eu quero que haja aqui um distanciamento, como se de uma peça de teatro ou de um bailado se tratasse. No ano passado, estive dois meses a trabalhar a banda sonora de uma peça de teatro, estive em muitos ensaios e acabei por estar presente na peça a tocar ao vivo. Isso acabou por me influenciar na forma como pensei o concerto para este projeto. A atenção do público, do princípio ao fim, como se estivesse desligado do mundo lá fora, aliado ao distanciamento de quem está em palco, foi algo que me fez pensar que há outra forma de fazer as coisas, que não é preciso obedecer a uma matriz, que posso fazer o que me apetece e experimentar algo novo.

Quanto à pandemia, acho que, sobretudo, fechou um ciclo. Criaram-se novas rotinas, novos hábitos. Foi um período de reflexão para muita gente e que acabou por mudar a vida de muitos. Talvez por isso tenha criado este projeto, como se de um novo ciclo se tratasse.

Há umas semanas, li um texto na BrooklynVegan sobre o 15º aniversário do People Who Can Eat People…dos AJJ que concluía que o folk punk/anti-folk desse longa-duração podia servir de lembrete que as “próprias pessoas são causa para esperança” face ao capital agonizante. Olhando para o teu disco, sentes que isto é algo que pode ser amplificado para a música de Wolf Manhattan?

Nunca me ocorreu isso, nem foi essa a intenção. Acho que, neste caso, foi algo puramente pessoal, uma vontade de fazer o que me apetece, mesmo que isso implique ir contra a corrente musical atual. Sempre fiz as coisas dessa forma e acredito que seja a melhor forma de as fazer. Acho que é difícil avaliares o teu próprio trabalho e é difícil adivinhar qual o impacto que pode ter nas pessoas. A maior parte das vezes, só te consegues aperceber disso anos mais tarde. Ainda é tudo muito prematuro e, como tu vês, só passados 15 anos é que o jornalista da BrooklynVegan conseguiu chegar a essa conclusão e levantar a questão.

A edição de vinil do disco vem acompanhada de um jogo de tabuleiro estilo Jogo da Glória. De onde te surgiu a ideia para esse acompanhamento?

O formato horizontal de um gatefold de vinil aberto é muito semelhante a um tabuleiro de jogo. Queria fazer algo diferente e que se adequasse a este universo de fábula/ficção, e lembrei-me que poderia ter piada recriar a vida de uma banda indie em início de carreira (um pouco fruto da minha experiência em Londres) num jogo de tabuleiro e usar o modelo de Jogo da Glória, mas substituir por situações cómicas. Depois achei que não tinha grande piada pois joguei o jogo da Glória e achei uma seca. Não há estratégia ou qualquer tipo de habilidade, é pura sorte. Por isso criei um jogo de trivia tipo Quem Quer Ser Milionário com perguntas sobre as canções e múltipla hipótese de resposta. Quis tirar partido de toda a ilustração e imaginário, e tornar o objeto mais apetecível e surpreendente.

No livro, o Wolf surge acompanhado do fantasma do Bruce em palco. O live setup de Wolf Manhattan será semelhante àquilo que é retratado no livro?

live setup vai ser um retrato aproximado da história, mas não quero ser spoiler e dizer já tudo. Têm de ler a história primeiro e depois irão perceber melhor o espetáculo. Mas, sim, posso adiantar que o fantasma vai-me acompanhar em palco.

Vais presentar o disco em Lisboa, na ZdB, e no Porto, no CCOP. Que mais se segue no futuro para este lobo de Manhattan?

Sim, sendo estes os concertos de apresentação, queria que as salas fossem um retrato o mais fiel possível de todo o imaginário representado na capa do disco. De futuro, espero apresentar este lobo de norte a sul do país e, quem sabe, além fronteiras.


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