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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 27/01/2023

Atento ao detalhe numa das coordenadas mais movimentadas do globo.

Wiki: o narrador que fala a língua da Grande Maçã

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 27/01/2023

Os mitos e as histórias da cidade de Nova Iorque encontram sempre um caminho mágico até ao seu narrador perfeito, que se encarrega de transformar a essência da cidade em lírica poética para uma audiência, também ela naturalmente inclinada a absorver todos os detalhes e todos os cantos da metrópole global. O poeta destacado hoje é Patrick Morales, mais conhecido pelo seu nome artístico Wiki, rapper americano com ascendência porto-riquenha que adicionou, no ano passado, os oitavo e nono trabalhos à sua discografia – um 2022 bem característico para o nosso escolhido, prolongando a sua carreira a solo ao mesmo tempo que continua a partilhar projetos com um produtor que assume todos os instrumentais num determinado disco.

A epopeia começa em 2011, em Nova Iorque (where else?) quando funda o grupo RATKING com o rapper Hak e com o produtor Sporting Life, ambos também originários da Big Apple, e entram a pés juntos no underground rap game com um EP no início da década, completando o roubo de bola com So It Goes em 2014, um longa duração que foi aclamado pela sua irreverência, pela sua execução e pelas imagens pontilhadas de Nova Iorque, usando todas as suas influências na manga desenvergonhadamente, traduzindo o som clássico da costa este para as novas sonoridades e, ao mesmo tempo, negando esconder-se do legado que até lá tinha sido criado. É um excelente pontapé de saída e já permite apontar a algo maior no futuro dos seus intervenientes, contando com uma colaboração com King Krule que ainda trouxe mais atenção ao trio – apesar de parecer inesperada e desconcertante, soa completamente natural, com a voz pesada e arrastada de Archy a coincidir perfeitamente com a aspereza nova-iorquina.

É apenas a segunda vez que temos lançamentos oficiais por Wiki, depois do seu primeiro EP — Wiki1993, a primeira edição dos RATKING — nos deixar a decifrar-lhe o potencial, com flows desgarrados, uma voz agressiva, barras criativas que surfam na batida sem dificuldades e uma exploração de temas familiares, mas sempre interessantes. Comparativamente ao antecessor, So It Goes é uma evolução para Wiki, desenvolvido com um pouco mais de maturidade e de intenção no conceito, nunca descartando a hostilidade, mas aplicando-a mais insidiosamente e metodicamente, como que a dosear de uma paleta com tons menos óbvios, num slideshow que lhe exibe os vícios e a forma como se relaciona com a cidade mais populosa dos Estados Unidos da América, um dos berços da cultura hip hop.



Um ano depois, estreia-se a solo oficialmente com Lil Me, uma mixtape editada através da Letter Racer, e em 2017 chega-nos No Mountains in Manhattan, já aliado à XL Recordings, um salto bastante notável, mas merecido. A polidez no tratamento da lírica de Wiki continua a crescer. Nestes primeiros dois projetos, focando-se nas relações que mantém quer com o hip-hop quer com a sua comunidade, faz “girar” a habitual faixa de apreciamento à cannabis (que acaba por ser uma paixão duradoura na sua carreira) e presta uma atenção especial à sua religiosidade.

Depois do lançamento da primeira mixtape, abateu-se uma época tempestuosa sobre Wiki, que consegue o já referido salto para uma editora maior, faz uma série de concertos nos cinco bairros de Nova Iorque e o seu grupo RATKING separa-se, o que resulta no rapper a virar-se para si próprio – e, enquanto olha para dentro, olha para a sua cidade e revê-se nela. No Mountains in Manhattan é uma ode romântica à Grande Maçã, poema acompanhado por nomes históricos e emergentes da cena local, de Ghostface Killa e Your Old Droog, e serve de base fundacional para esta relação inquebrável entre o nosso profeta e o seu habitat natural. Nunca desfavorece o braggadocio e o engrandecimento, mas parece fazê-lo ciente de que foram os seus erros e as suas ausências que o tornaram no homem que é. É uma pescadinha de rabo na boca – Wiki não seria quem é sem a sua cidade, mas também faz para que esta não seja a mesma sem ele.

Uma nota para What Happened to Fire, um extremamente recomendado EP colaborativo com Your Old Droog, lançado em 2017, que parece ter desaparecido de todos os serviços de streaming de música excepto o Soundcloud — os dois rappers trocam barras atrás de barras, com flows que se cruzam em batidas maravilhosas de Black Milk, Statik Selektah, araabMUZIK, entre outros.



Wiki retorna com um LP em 2019, depois uma saída um pouco confusa da XL Recordings e com a estreia num beat de Madlib pelo meio. OOFIE é uma mixtape auto-reflexiva, muito mais honesta e brutal do que o habitual, cogitando sobre as suas falhas, os caminhos que tomou, transitando entre estados eufóricos e depressivos, cansado do grind e da labuta incessável que é o dia-a-dia na indústria musical, encontrando inspiração na sua arte enquanto desespera por um significado e por paz. Sair de um ponto tão baixo como este nunca é fácil, e conseguir exprimi-lo de uma maneira tão honesta e impactante é uma conquista por si só. Mas nem tudo soa a morte e a sofrimento — há um tom quase esperançoso que tinge partes do álbum, encontrando beleza no amor pela família, nos caminhos que teve de traçar e que o construíram, percorrendo a memória da sua juventude despreocupada.

Uma paragem para respirar de dois anos entre discos (coincidentemente, o mesmo período de tempo de diferença entre Lil Me e No Mountains in Manhattan) vê o seu fim com dois belos produtos de maturidade. Em maio de 2021, Telephonebooth, produzido na íntegra pelo filadelfiano NAH, o longa duração mais curto da sua discografia, com faixas que se estendem por 2 minutos no seu máximo, uma exibição clara da mestria rítmica, rímica e narrativa que Wiki foi desenvolvendo. As batidas do colega são desconcertantes e apresentam uma energia que relembra os seus raps da juventude, exacerbando a sua personalidade forte e determinada, pondo-as em contraste com as novas perspetivas equilibradas a que chegou.



Em outubro do mesmo ano, é lançado para as massas Half God, o disco que cimentou Wiki como um dos melhores liricistas e contadores de histórias que Nova Iorque já produziu. Desta feita com Navy Blue nos comandos da produção, as histórias são cada vez mais vívidas e transparentes. O crescimento pessoal e a estabilidade emocional chegaram a um ponto em que o olhar para o espelho já não é assustador, em que auscultar o passado não provoca raiva nem tristeza, e trazem uma conclusão: o nosso profeta sabe quem é, quem foi e que, talvez o mais importante, foi formado por aquilo que o rodeia. Enquanto se analisa, toca nos temas que lhes são mais próximos com uma delicadeza impressionante, ilustrando rimas com perspicácia e cuidado, pintando um quadro realista com atenção até ao mais ínfimo detalhe, mas sem os complicar.

A discussão já não é com a indústria, esse terceiro interveniente na relação que realmente criava fricção na vida — o dinheiro e como esse objeto afeta tudo, tanto individualmente, como na sua comunidade, como nos seus pares. Dele escutamos ainda uma intenção de criticar os fracassos sistémicos, económicos e raciais presentes na sociedade estado-unidense, não poupando palavras sobre gentrificação, policiamento repressor, o imperialismo além mar dos E.U.A. ou a falta de habitação acessível, “cuspindo” com uma acidez subtil na sua raiva.

É uma história belíssima de um ponto na vida de alguém que parece ter sofrido constantemente, admitidamente por consequências das suas ações, e que está pronto para se redimir e para redimir o mundo à sua volta, absorvendo a culpa que sente e tornando-a numa arma para se melhorar. Se No Mountains in Manhattan foi uma carta de amor à cidade, Half God é um romance sobre o amor mútuo partilhado entre Wiki e Nova Iorque, no que foi um retorno ao longa duração no seu mais puro sentido – 16 faixas em 58 minutos que valem todos os singelos segundos. 



O nosso narrador estabeleceu-se como um dos melhores MCs que Nova Iorque já viu nascer e fê-lo sempre na melhor das companhias, tendo contracenado com inúmeros actores, dos já estabelecidos ou outros que se viriam a estabelecer no “jogo” do hip hop: Earl Sweatshirt, Lil Ugly Mane, Denzel Curry e Princess Nokia, DJ Shadow, Mount Kimbie, Lord Apex, Mr. Muthafuckin’ eXquire, Everything is Recorded, entre muitos outros.

Em 2022, lança outra mixtape, a primeira desde 2015, com o produtor de Nova Jersey Subjxct 5, intitulada Cold Cuts, no que é mais uma demonstração de que, mesmo depois da conquista e da execução de um conceito como o de Half God, voltar às raízes e à grittiness é fácil e a alma suja continua lá, agora com todas as benesses que o envelhecimento trouxe. No final do ano, associa-se ao rapper MIKE e ao veterano produtor The Alchemist no EP colaborativo de três faixas One More: são igualmente três pérolas de três músicos em topo de forma que talvez vos tenham passado ao lado, mas que valem muito a pena de se lhe confiar rotação.


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