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Fotografia: Sebastião Santana
Publicado a: 10/06/2023

Lisboa no arranque a todo o gás de uma nova digressão europeia.

Wiki na ZDB: uma carreira passada a pente fino sem direito a pausas para respirar

Fotografia: Sebastião Santana
Publicado a: 10/06/2023

Previa-se um dia chuvoso — e pelas nuvens que assombravam Lisboa, parecia uma previsão certeira. No entanto, talvez pela apoteose de música ao vivo que aconteceria por Portugal inteiro na noite de 7 de junho, quarta-feira, São Pedro decidiu que (pelo menos em Lisboa) não cairia nem uma pinga. Na Galeria Zé dos Bois, também se faziam previsões para a primeira de 12 datas da tour do nova-iorquino Wiki, acompanhado dos seus colegas e amigos Subjxct 5, Papo2oo4 e Jadasea. Como seria a setlist? Que tipo de espetáculo teríamos?

Na ordem do momento estava um pequeno DJ set de Subjxct 5, que seguidamente se faria acompanhar em palco por Papo2oo4. Também Jadasea apresentaria a sua arte e, finalmente, Wiki subiria a palco. Comecemos, então, por responder à segunda pergunta mencionada acima: foi um espetáculo de arromba. 

Subjxct 5 está vestido com uma jersey de futebol norte-americano com o nome Jacobs e parece-nos apropriada a escolha, pois o ritmo e a agressividade com que se começou a noite podiam ser bem comparados a um jogo da NFL. Os BPMs aumentam consideravelmente através das sonoridades do deconstructed club, do jersey club e de remisturas de canções bem populares que o neojersiano escolheu para iniciar a noite, aquecendo o aquário da ZDB enquanto as pessoas vão entrando e a sala vai ficando composta. A primeira saudação da noite é dele e aviva o seu público, começando a açucarar o tom com canções de um r&b muito amoroso antes de entrar Papo2oo4 no palco. De jersey com “Revis” estampado, a sua vontade é clara: partir tudo. Com uma presença de palco absurda, vai saltitando constantemente enquanto vocifera as suas malhas de ritmos estonteantes, todas produzidas, claro, por Subjxct 5.

Nos momentos entre faixas, vai tecendo alguma conversa através de uma bela tentativa de exercitar o seu português (com muito espanhol pelo meio, mas a malta dá a abébia), referindo até a grande comunidade portuguesa que vive em Nova Jersey e apontando o dedo aos seus amigos portugueses do seu estado — “I’m right here in Lisbon right now, they haven’t even been to Portugal once, they’re fake portuguese!” — e manda uns impropérios bem mandados (provavelmente o melhor “foda-se, caralho!” que já escutámos com sotaque da Costa Este).

Os únicos backing vocals que ouvimos são os adlibs que o DJ vai mandando, pois a voz forte de Papo até aos 808s pesadíssimos das batidas jersey e drill se sobrepõe. Ambos parecem cientes que nem todos os que estavam na galeria estavam lá para os ouvir, mas deixaram tudo em palco para que ninguém saísse sem uma memória bem vivída dos dois. O concerto acaba com Papo a cuspir rimas a capella, com a sala a rebentar em palmas e gritos no final de uma demonstração de rap bem sério. Agradecem aos que estão à sua frente pela presença e reafirmam o apreço por estarem em Portugal, num pré-verão quente, mesmo depois de um voo de 10 horas. Ficamos com a ideia que este duo está muito bem treinado e pronto para ser titular na defesa das cores do hip hop.



Uns 5 minutos vão-se gastando para reencher copos de cerveja e tratar da hidratação, tal foi o nível de energia requerido para a abertura da noite. Pós-intervalo, entra em palco Jadasea, novo talento do hip hop inglês, acabadinho de editar o seu último longa-duração — no sentido original do conceito, com praticamente uma hora de música (e da boa, diga-se), algo que até o próprio menciona, “we made a one hour record, who even does that anymore?”

Acompanhado de Laron, o produtor de todas as faixas de The Corner: Vol. 1, no cargo de DJ para o espetáculo, refere que este é o seu primeiro concerto juntos. A falta de rodagem ao vivo com as novas faixas reflete-se em algumas falsas partidas e recomeços, tentando chegar-se ao timbre perfeito para cada tema. Mas esta desinibição de tentar outra vez até soar como se quer reflete a atenção ao detalhe que imprime na sua arte e o carinho que tem por ela.

As vibrações acalmam bastante durante este concerto, dado tratar-se de um hip hop de cariz mais abstrato e emocional, carregado por uma voz ternurenta – se antes estávamos a ser bombardeados com uma enxurrada de graves e rimas bradadas, agora estamos a ouvir um narrador exímio a relatar vivências londrinas num tom mais íntimo e vindo do coração, em batidas mais melodicamente densas. Talvez uma inversão da ordem tivesse sido apropriada e a noite teria evoluído mais naturalmente para a exclamação final que foi Wiki. A fasquia da energia tinha sido exponencialmente elevada pelo par anterior e os tons mais emocionais de Jadasea e Laron acabaram por não ter tanto impacto. Independentemente disso, Jadasea está em palco para deixar o coração nele.

Pelo meio há um fã que chega a pedir ao rapper que cante uma canção específica — uma que o próprio afirma que escreveu com 15 anos —, requisição infelizmente negada, mas com a promessa de a cantar na próxima vez que estiver por Lisboa. Na reta final, uma parede de 808s faz vibrar a sala inteira, lançando mais uma vez a ambiência para um hype inegável e uma despedida feliz. Tanto Papo2004 como Subjxct 5 estão de lado, a apoiar Jada, e notamos aqui a força com que o amor se manifesta em palco. Todos estes rapazes se apoiam e ajudam uns aos outros. É uma conexão especial, que só podia resultar em algo especial, algo que vai sendo mencionado por todos os artistas durante a noite — é uma união para uma viagem muito significativa para todos.



Outra questão que se punha é: sendo Lisboa a primeira data da tour, o que é que sairia daqui na voz de Patrick Morales? Bem, ficou claro pouco depois do headliner entrar em palco. Wiki é o homem da noite, sabe bem que o é, e sabe bem que o está a fazer. Franzindo e com a intenção de rebentar com as costuras da Galeria Zé dos Bois, Subjxct 5 volta a palco para mandar os backs de um rapper extraordinário, que parece não precisar de respirar nem querer deixar o seu público respirar. A primeira ovação é ensurdecedora e a nuvem de fumo que vai pairando na audiência até parece desaparecer com os gritos. Half God é recebido com ainda mais adulação e o autodenominado Baby Blue vai saltando de beat em beat como se fosse um sapo em nenúfares, sem sequer causar alterações ao lago, mesmo através de mudanças de beat, flow, cadência e tom. Zero barulho, só pura poesia.

Sabe bem que não está cá desde 2016 e nota-se que a marca que quer deixar é profunda, batendo nos seus maiores bangers enquanto vai polvilhando a setlist de praticamente todos os seus projetos — o refrão de “Never Fall Off” é acompanhado pelo público, repetido inúmeras vezes até todos na audiência estarem presentes no coro. E no final desta, o apreço que se sente por Wiki é reciprocado pelo próprio — “Lisbon, I fuckin’ love y’all, man. You make me so hot!”. Quatro, cinco, seis minutos seguidos a rappar, sem pregos, sem ofegar, o homem cospe como se fosse o seu último dia no planeta — já é veterano e isso é claríssimo como a água.

O ajuntamento de todos os artistas da noite em palco para este concerto, acabando virtualmente todas as linhas e todas as punchlines, a genuinamente gostarem e a sentirem tanto como o protagonista, foi absolutamente maravilhoso de se ver. E quando Wiki refere que “It’s a family affair tonight!”, dá para palpar bem a ligação já criada e que se continua a criar em palco entre todos estes artistas.

Um pouco de Lil Me para os seus OGs causou mais um momento de entusiasmo. “Grim”, retirada de OOFIE, uma colaboração com Denzel Curry e Lil Ugly Mane, é recebida efusivamente, com o nova-iorquino a deixar um shoutout a este último, que recentemente tem passado por uns tempos mais dolorosos, pedindo que o mantenhamos nos nossos pensamentos. O concerto vai seguindo, sem espinhas, sem intervalos, sem pausas duradouras, pois Wiki é um carregador infinito de rimas disparadas com a garganta toda, com os refrões cuspidos nas vozes não só do próprio, como de Papo e Subjxct 5. O palco está cheio de alma e a sala responde com a mesma sensação.

Numa das visitas a Cold Cuts, um momento de hip hop muito real, com Subjxc5 a pedir ao público que levantasse as mãos e o seguisse, tal guru, com a sala a responder muito afirmativamente à pergunta “Lisbon, are you here?”. Nesta “My Life”, temos direito até a rimas a capella, e a declamação soa tão bem que levanta a pergunta — será que o beat é mesmo necessário? Já nos últimos cartuchos, “All I Need”, de Half God, uma das suas mais conhecidas, explode com a sala; “Seedy Motherfucker”, de Lil Me, quase causa um terramoto; e “Mayor”, de No Mountains in Manhattan, é um momento de exaltação pura. Repensamos o concerto no seu total e encontramos um equilíbrio praticamente perfeito nas emoções que se vão completando em palco: raiva, meiguice, nostalgia, amor, autodepreciação, tudo seguindo e sem paragens para processar uma experiência completa da carreira de Wiki.

Chegando aos minutos e faixas finais do concerto, Subjxct lança um “we got some ‘Portuguese Love’ like Teena Marie”, referindo-se ao clássico de 1981 — e sim, estava na Zé dos Bois muito amor português. Vão-se lançando shoutouts, o público tem um dedo no ar — “keeping it one” como foram ordenados — “Wik Da God” é entoada bem alto tanto pelo autor como pelos seus fãs. O produtor de Nova Jérsia já está abraçado a Wiki e encostado ao seu ombro, a disposição está elevada ao rubro e o espiritual completamente satisfeito. Esteve em Lisboa um deus nova-iorquino, que já merece lugar num hall of fame da cidade onde nasceu e vai renascendo o hip hop. Mais uma bonita noite de música finda-se, e a lua, já no seu quarto minguante, está bem visível para quem sai do Bairro Alto depois de presenciar uma noite maravilhosa.


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