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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 09/12/2020

Quem é que gosta de ouvir aspiradores para adormecer?

whosputo: “Procuramos um barulho algo ensurdecedor mas atractivo na nossa música”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 09/12/2020

A assinatura “música para o corpo e para a cabeça” tornou-se com o tempo um cliché, mas encaixa-se perfeitamente na identidade de algumas bandas. Os whosputo são uma delas. O projeto nasceu em 2018 e publicou o primeiro álbum, Art of Decay, em Abril deste ano. Aproveitando a quarentena, cruzaram malhas antigas com material novo e materializaram Buffer Sketches, o pretexto desta entrevista.

À boleia da soul, r&b e electrónica, os whosputo escrevem, gravam e misturam em espírito DIY. Com esta liberdade criativa, o grupo aborda temas como a ansiedade e a depressão em texturas sensuais, ondulando por entre a melodia e o groove mas nunca se impondo e retirando o ouvinte da ambiência para onde o transporta. Buffer Sketches assume-se primeiramente como um estado de espírito. É uma experiência leve, hipnótica e aflita, tudo ao mesmo tempo.

No canal do YouTube do projecto, encontramos uma linguagem visual a ser trabalhada em simultâneo com a música. No videoclipe do single “Are You Just Like Me?”, somos convidados a seguir o vocalista e mentor Raimundo Carvalho, resguardado pelos membros e amigos da banda enquanto sobe vários lanços de escada. Com essa sensação de resguardo, fomos convidados a entrar neste projecto.



Aos primeiros minutos de Buffer Sketches percebemos que vocês vão beber a muitas fontes musicais e que não é fácil colocar-vos numa gaveta. Os whosputo vêm de alguma comunidade ou comunidades musicais de Lisboa?

[Raimundo Carvalho] Nós conhecemos-nos num contexto académico, na Escola Superior de Música, onde estudámos jazz, cada um especificamente no seu instrumento. Eu estudei guitarra, o Miguel Fernández bateria, o Tiago Martins baixo e Tom Maciel estudou piano e teclados.

Temos todos backgrounds distintos. O Tom é de São Paulo, eu sou do Porto e toquei em bandas de rock e grunge, o Miguel é galego e toca jazz há muito mais tempo, para além de em muitos grupos de rock, pop e electrónica, e o Tiago é o que tem mais escola da cena musical portuguesa, toca com a Sequin e em outros projectos relacionados.

[Tiago Martins] Eu trabalho as duas vertentes. Por um lado, sempre toquei música afroamericana, mais ligada ao jazz e ao r&b, e paralelamente explorei o circuito indie nacional. Acho que ambas as vertentes acabam por se condensar na estética mais específica que trabalhamos agora. O mais importante deste projecto é não termos barreiras entre o que é moderno, fresco e as fórmulas que estão por de trás das estruturas e da abordagem do jazz tradicional, da música brasileira, do soul e r&b que nós estudamos. Queremos fazer música quente e com groove, mas procuramos a exploração da música electrónica. Qualquer pessoa hoje pode ter um sintetizador em casa no computador e mexer no Ableton. Queremos fundir os dois mundos sem pender para nenhum deles, sem sermos demasiado old school ou demasiado abstractos.

Vocês referiram a “estética mais específica” do EP. Essa preocupação, que é forte em Buffer Sketches, antecedeu a produção do registo, ou foram-na descobrindo enquanto “jammavam” e produziam?

[RC] Foi tudo descoberta. Todo o álbum é produzido e misturado por nós. Ao mesmo tempo que estávamos a estudar música, fomos começando a trabalhar com ferramentas de produção como o Ableton e impondo-as no trabalho. Simultaneamente, devido à música electrónica que ouvimos, começámos a obcecar com certo tipo de texturas. E usámo-los enquanto conceitos. Ou seja, nós gostamos de harmonias, de melodias e de letras fortes, mas são só conceitos, e queremos deixar a música em aberto.

Vocês soam muito ao vosso estilo de produção, e a textura prende-se com isso. As ondas actuais de r&b/electrónica costumam-se agarrar numa primeira abordagem ao groove, ao sentido rítmico das músicas e assumi-lo como elemento dominante. Contudo, ao ouvir as primeiras faixas de Buffer Sketches, fico com a impressão de que o groove e a textura têm igual peso. Isso foi premeditado?

[TM] Sinto que esse peso vem de certas influências, da soul super melódica dos anos 60 e da Motown, em que a canção e a letra são essenciais. E a textura, as pequenas contramelodias ou respostas de sopros que escrevemos, acaba por ser fórmulas que usamos e que dão essa sensação de conjugação entre o groove e os restantes elementos da canção. E o Raimundo, que dava início à composição, não se descola destes dois mundos. Não compomos malhas fechadas de clubbing só para dançar, mas também não compomos baladinhas inertes só a se valer pela letra e pela melodia.

[Miguel Fernández] No EP, muitas vezes o groove não está presente nos instrumentos rítmicos, mas sim em sintetizadores e samples que acabam por criar outro tipo de grooves. Para além disso, nunca nos esquecemos de que estamos a falar de canções, as suas estruturas são a base de Buffer Sketches por mais que possamos experimentar com grooves e estéticas esquisitos.

Pegando nesses samples e no facto do vosso groove não estar dependente de uma secção rítmica tradicional, Buffer Sketches conta com muita exploração electrónica e variações rítmicas que tornam as canções menos imediatas e mais densas. Foram formas que encontraram para explorar as noções de ansiedade e confusão mental abordadas (“Are You Just Like Me?”, “Casedrop”, “Quarantine”)?

[RC] Nem mais. Como o Miguel referiu, o ideal da banda é fazer canções com vestes diferentes. Normalmente, as canções que nos surgem são sobre esses estados, sejam em nós próprios ou nas pessoas que nos rodeiam, que feliz ou infelizmente nos “inspiram” para escrever as letras. Ao nível da produção, de compor e pensar na textura rítmica e dos samples, aplica-se o que referes. Nós puxamos o threshold do que torna a música desconfortável enquanto ainda é cozy. Estás a ver aquela malta que curte ouvir aspiradores para adormecer? Procuramos essa sensação, um barulho algo ensurdecedor mas atractivo. De um ponto de vista prático, pegamos em todas as nossas ferramentas para criar texturas acessórias que contribuam para esta sensação: sintetizadores, baixo, bateria e voz processados por pedais de efeitos, guitarras super processadas, etc.



Vocês investem muito na exploração sonora sem soarem excessivos, o que não é fácil. Na verdade, não há nada mais fácil do que se acrescentar à mistura camadas sonoras sem haver uma intenção por trás.

[RC] É algo que tentamos ter em conta. Quando estamos a ensaiar ou a produzir, tentamos traduzir as nossas ideias de forma à música soar coesa. É como orquestrar uma big band ou fazer um arranjo clássico. Os instrumentos entram em certas momentos delineados porque isso faz sentido, não precisas de utilizar tudo ao mesmo tempo. No meu caso, quando estou a produzir, penso sempre no James Blake. Ele deixa a sessão de Logic aberta depois da composição, vai gravando mais material e quando está a produzir tem sobretudo o trabalho de retirar elementos. Às tantas, põe-te uma malha a soar com um bounce do caraças com um bombo a cada três ou quatro compassos ou uma tarola a surgir a meio da faixa. Desta maneira, os instrumentos têm muito mais impacto quando entram.

É um exercício de desconstrução. É também o vosso caso?

[TM] No nosso caso, utilizamos esses recursos de exploração mas nunca se tornam o elemento fulcral da canção. Um ouvinte completamente leigo pode se aperceber dos samples e das texturas mais estranhas mas não é o que o agarra. O interesse da música prende-se com a estrutura e a mensagem. Daí a importância dessa subtracção. Se misturares todas as cores de uma paleta ficas com um castanho horrível, e perdes todas as gradações interessantes.

“Cupid” sabe a uma libertação depois do caos que a antecede… antes da segunda parte da música. É definitivamente a maior surpresa e o momento de maior impacto emocional do registo. Buffer Sketches é dedicado a alguém?

[MF] Não só a uma pessoa.

[RC] Se o Buffer Sketches fosse uma ópera rock, teria que ter mais do que uma personagem principal. A “Quarantine” baseia-se no meu caso pessoal, a “Case Drop” foi pensada com alguém em mente mas na verdade coloquei nessa personagem várias situações que aconteceram a outras pessoas. É uma coisa que gosto muito de fazer, utilizar uma personagem para falar sobre o que está à minha volta e com que me preocupo.

A letra e os temas que vocês abordam são uma camada escondida, que não é evidente numa primeira audição e que contrasta com a carga mais leve do instrumental. Quem vos ouvir com atenção vai-se aperceber desta bipolaridade, entre o que o vossa música aparenta ser e o que é, no fundo.

[TM] Acho que o facto de cantarmos em inglês ajuda a esconder as letras, tendo em conta que a maior parte do nosso público é português. Mas isso também se relaciona com os estilos de música com os quais crescemos. Por exemplo, eu cresci com diversas bandas em que os cantores, ainda que roubassem o destaque com a voz, escreviam letras profundas. Para mim, é necessário que a letra contribua para a mensagem da banda e não seja só um ornamento. Isso acontece com certos estilos de música que nós também gostamos, como algumas malhas de soul. Nós gostamos de brincar com as palavras e situações, de imaginar cenários surrealistas e de exagerar com o que escrevemos. A voz é instrumento e tem que ter uma função aveludadora da música.


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