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Publicado a: 26/03/2018

Welket Bungué sobre Vã Alma: “Acredito que ainda há muito para ser contado”

Publicado a: 26/03/2018

[FOTO] Direitos Reservados

É actor, mas desde 2015 que se aventura pela escrita e pela realização das suas histórias. Welket Bungué dá corpo a Bastiena personagem principal do filme com o mesmo nome que lhe valeu a distinção de Melhor Actor e Melhor Primeira Obra nos prémios Shortcutz 2017.

Foi também no ano passado, em Outubro, que começou a filmar uma série. Vã Alma estreia no YouTube a 26 de Março, mas os restantes episódios estarão disponíveis no RTP Play a partir de Abril.

“Usamos essa leitura social estereotipada para ficcionar emocionando, mas sensibilizando através de uma moralidade subentendida em que se admoesta o jovem mostrando-lhe qual o caminho a não rumar, e sim a tentar outros, melhores, ou completamente diferentes”, esclarece o autor. Trocámos um e-mail com Welket que nos conta esta sua nova aventura e as que estão por vir

Esta Vã Alma é a história de Arriaga, Bonerouge, Chade e Kanja Fria. “Costurados no trânsito da vida nas comunidades de emigrantes de onde fazem parte, são jovens que lutam para sobreviver no dia-a-dia com os meios que possuem, à sua maneira”, podemos ler na sinopse.

O hip hop serve de pano de fundo para a vida dos quatro jovens. A justificação é simples: “além de ser um género musical que move muitos recursos e opiniões na actualidade é uma forma de expressão que tem a sua génese no seio das comunidades reprimidas pela máquina social”, sublinha o criador da série.

 



Como surgiu a ideia de criar esta série?

A série Vã Alma está inserida num projecto pessoal chamado ATHMA que inclui uma série, curta-metragem e longa-metragem. Neste momento a série está finalizada, a curta-metragem Arriaga está a ser pós-produzida e em 2019 irei captar fundos e reunir-me com produtoras para conseguir realizar a longa-metragem Athma.

O que queres transmitir?

Desde Bastien, de 2015, que tenho escrito narrativas ficcionais inspiradas em casos reais acerca de temáticas de realidade social. Acredito que ainda há muito para ser contado, tendo como fundo as vivências das zonas periféricas de Lisboa, lugares com potencial disruptivo, mas ainda adormecidos.

Utilizas alguns estereótipos que, diria, toda a gente já conhece. Os pretos, os bairros, os gangues, a vida de crime para sobreviver. Tens receio que voltares a referir-te a esses temas da mesma forma como outros já o fizeram seja perpetuar estereótipos? Ou acreditas que o panorama se altere? Tiveste isso em atenção?

Em Vã Alma, os actores e actrizes, maioritariamente de origem afro-descendente, são profissionais e nenhum deles teve ou tem contacto especificamente com a realidade retratada na nossa narrativa. Os actores interpretaram as personagens com profissionalismo, mas também porque acredito que as mazelas derivadas do passado migratório da diáspora africana em Portugal nos dizem respeito a todos como viventes e sobretudo descendentes daqueles (os nossos pais) que vieram de Cabo-Verde, Guiné-Bissau ou Angola e que batalharam muito para nos dar uma vida e formação condignas, mas mesmo assim o sistema continua a vulnerabilizar as comunidades que vivem nas zonas periféricas. E é aí que a série vê o seu propósito, somos maioritariamente actores filhos de migrantes que hoje vimos contar estórias que são para a “maioria” identitária das comunidades que vivem as zonas periféricas de Lisboa, constituída maioritariamente por pretos e outras minorias étnicas, mas artisticamente usamos essa leitura social estereotipada para ficcionar emocionando, mas sensibilizando através de uma moralidade subentendida em que se admoesta o jovem mostrando-lhe qual o caminho a não rumar, e sim a tentar outro, melhores, ou completamente diferentes.

A banda sonora é, principalmente, hip hop — muito dele em crioulo. Podes falar-nos um pouco dessas escolhas?

A minha ficção é iconoclasta se pensarmos naquela que é a tendência ou o padrão ou cânone de produção ficcional em Portugal. Gostaria de frisar que tenho outras ficções que relatam outro tipo de temáticas e que, ainda assim, são contadas por actores e afro-descendentes, filmadas no Brasil, Alemanha ou Inglaterra. Com isto quero dizer que a língua portuguesa, a literatura dramática, os géneros ficcionais televisivos e sobretudo no cinema estão condicionados por aquilo que os agentes e produtores do audiovisual português têm considerado até aqui como fórmula “lusitana” daquilo que os portugueses e os portugueses não nacionalizados (afro-descendentes europeus nascidos em Portugal sem legalização ou elegibilidade de documento de cidadão nacional permanente/nativo) devem consumir. A banda sonora em Vã Alma é também texto, discurso, ou seja, os artistas seleccionados são altamente activos no panorama da música hip hop em Portugal e como tal vêm reforçar a mensagem da série além de que são manifestamente desconstrutivos e anti-colonialistas na medida em que revivem e significam a força e carácter poéticos e subversivos que emanam de um língua remetida para outro patamar que não o da língua nativa dos países de qual provém a sua fonética e estrutura, isto é, na Guiné-Bissau ou Cabo-verde. Mas o crioulo é também um elemento de conversão linguística que cada vez mais tem sido um recurso naquilo a que chamo de novo hip hop tuga, quer brancos ou pretos, mais underground ou pop, os músicos de hip hop têm entendido e trazido novas potencialidades ao crioulo e isso é algo muito positivo, porque não deixa de ser uma vitória para a lusofonia.

Aliás, um dos personagens, o Kanja Fria, está a ensaiar umas rimas logo no primeiro episódio. O hip hop é importante para ti ou faz também parte do imaginário dos bairros que quiseste transmitir?

O hip hop é importante para mim, porque cresci a ouvir hip hop, mas também porque a sua configuração mudou significativamente desde o final dos anos 90 para cá. Além de ser um género musical que move muitos recursos e opiniões na actualidade é uma forma de expressão que tem a sua génese no seio das comunidades reprimidas pela máquina social.

Conta-nos um pouco do projeto em si. Trabalhaste com a COMICALATE, por exemplo. Quem foram os teus principais apoios?

Vã Alma é uma série de quatro episódios, mas de início pensei em fazer oito episódios. O Comicalate é um colectivo de jovens que tem como principal objectivo trabalhar com jovens criativos. A união tornou-se necessária porque eu tinha a ideia, o texto e alguns intérpretes em vista, mas não tinha recursos humanos nem técnicos e o Comicalate proporcionou-me essa parte, além de que o orçamento disponível para alavancar a ideia de criar uma série era praticamente nulo. Mas bom, filmámos em Outubro de 2017 e hoje estamos prestes a estrear o produto, e a RTP Lab parece estar atenta ao nosso percurso, quem sabe conseguiremos uma parceria para realizar os 4 episódios restantes.

Ainda é muito novo para ti realizar, certo? Quais são as principais dificuldades de trabalhar em cinema em Portugal?

Estou a realizar desde 2015, mas já tenho quatro filmes curtos e esta série no currículo. Eu comecei a realizar acidentalmente devo dizê-lo, porque na verdade as pessoas que convidei para filmar Bastien em 2015 não se mostraram disponíveis na altura. As principais dificuldades em trabalhar no Cinema em Portugal como ator é porque a escrita está muito direcionada ainda para histórias onde os produtores e agentes ou financiadores veem a  cor da pele como algo determinante para a atribuição de uma personagem assim como acreditam que isso é altamente relevante para trazer crédito a uma estória ficcional. Como realizador independente, se não estivermos associados a uma produtora com nome ou muitos projectos ganhos, vemo-nos quase obrigados a encontrar aliados alternativos ou então a criar novos conceitos de fazer cinema, tais como realização através de dispositivos móveis, o que pode ser insultuoso para os mais conservadores ou escoliastas do cinema. O importante é trabalhar muito e procurar públicos diversos!

Quais são as tuas expectativas para esta série?

Acredito que a série será um sucesso, mas é preciso que as pessoas entendam que a estória de Bonerouge, Kanja Fria, Arriaga, Chade e Bastien já começou há alguns anos atrás e que continuará através de outras ficções que estão a ser finalizadas e que compõem este universo expandido que retrata os problemas sociais nas periferias. Porque nem tudo o que precariza certos meios da nossa iludida sociedade a define enquanto lugar de marginalidade e discriminação, mas faz com que aquelas pessoas sejam mais instintivas, se alimentem de esperanças improváveis e se atirarem de cabeça na mais pequena possibilidade que exista para salvação.

 


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