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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 24/03/2022

História viva.

Vum-Vum: “Sou igual a toda a gente, mas totalmente diferente”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 24/03/2022

No próximo dia 25 de Março, Vum-Vum Kamusasadi protagoniza mais um concerto nos palcos portugueses — palcos que conhece de lés a lés e que já não lhe reservam surpresas. Curiosamente, o multifacetado artista nascido em Angola não deixa de provocar espanto. Assim o foi em 1969, quando se estreou enquanto compositor e intérprete, e numa tarde de 2022, em que acedeu sentar-se à conversa com o Rimas e Batidas, falando da sua arte como uma expressão incansável de resistência convertida em memória.

Uma curta história sobre Manuel Rosário das Neves: nascido em Luanda no último dia do 1943, crescera no Bairro Indígena, um dos, dizia-se, mais “problemáticos” de Luanda, de onde não vinham muitas das vozes da resistência à ocupação colonial e de onde eram originários muitos dos presos da PIDE. Lá aprendeu a tocar bongos e, por meio da astúcia que o levou a observar um dos comparsas do seu quinteto de serenatas, Tizinho Miranda, a tocar violão. “Jamais me ensinou: apenas estava atento à colocação dos dedos,” contou-nos.

Entre 1954 e 1957 viveu em Nova Lisboa (actual Huambo), onde frequentaria a Escola Industrial Sarmento Rodrigues, mas foi na Escola Industrial de Luanda que se formou. Em 1961 seria preso pela PIDE “sem saber do que estava a ser acusado”. Era, então, dactilógrafo ao serviço de uma alta patente do Estado Novo que, diz-se, fora avisado por subalterno de que a fivela do seu cinto, do lado esquerdo, só poderia querer dizer uma coisa: pertencia à resistência. Para si, era simples, estava a fazer “banga” (ou fazer estilo). Foram três meses sob alçada da polícia política, inocente.

Suceder-se-ia a primeira estadia em Portugal, a então “metrópole” do Ultramar de Salazar. A sua mãe alistara-o na força aérea para afastar as possibilidades do episódio anterior resultar numa acusação de terrorismo e num destino pior — uma temporada no Tarrafal, como acontecera com Gabriel Leitão, ou com Liceu Vieira Dias? Quem sabe. Não que a acusação de terrorismo o assustasse. Antes de ser alocado no Alentejo, andou alguns meses fugido, até que o encontraram, enquanto descansava no kimbo e o mandaram em definitivo para a metrópole.

Em Portugal, a chama que se acendera com os episódios anteriores levaram-no a procurar a resistência, ainda que em vão: depois de se formar, na base da OTA, e antes de ser alocado para a guerra do Ultramar, tentou, sem sucesso, alistar-se no MPLA. “Procurei saber de algum contacto do Daniel Chipenda (…). Em vão! Era procurado como refratário, foi assim que me entreguei e fiquei preso na Base da OTA até Agosto de 1964”. Contudo, aquando do seu regresso a Luanda, encontraria forma de revolucionar o seu país através da sua guitarra, da sua voz, e de uma singular característica de poliglota. Manuel Rosário das Neves não dominava apenas o português e o kimbundo, era também ágil no inglês, no espanhol, no francês e no italiano.

Esta singular característica valeu-lhe, depois de iniciar a sua carreira enquanto músico e intérprete, o feito de ser o primeiro negro residente numa das mais emblemáticas boates de Luanda, o Tamar, na Ilha da capital de Angola. Lá pôde-se ouvi-lo a cantar chanson française, música espanhola e os clássicos do yé-yé vindos de Inglaterra e dos Estados Unidos. Também se ouviu estes mundos todos numa só voz nas suas composições: Manuel renascera enquanto Vum-Vum, artista multifacetado, guitarrista, compositor, arranjista, escritor e encenador. Alguém que até hoje vive para a sua arte, e vive com uma missão não de fazer história, mas de a manter viva tornando-se parte dela. Em Abril de 1968 retorna a Lisboa, tal era a sua fama: “Além dos variadíssimos palcos, onde era o único negro a actuar nas boates da baixa da cidade de Luanda frequentada apenas por gente branca, também um ou outro cabrito e mulato”, revelou. Foi nessa altura que aprendeu a dominar a arte do violão, quando começou a actuar no Teatro Monumental.



Chegou 1969, ano em que Vum-Vum vê prensado o primeiro capítulo da sua história, que hoje é também parte da história da música e do rock de Angola e de África. Muzangola é um EP que fez pela música do mais velho dos continentes o que poucos registos haviam conseguido até então: convergir o mais importante da música afrodescendente, desde as distorções abrasivas do rock, ao sofrimento do blues e, claro, ao ritmo estonteante do semba. A Valentim de Carvalho, provavelmente, não imaginava que tinha acabado de selar um pedaço de história de, nas próprias palavras de Vum-Vum, “um preto que não padecia de branquitude” nem aceitaria deixar-se instrumentalizar.

“Muzangola”, a música, cantava o novo som de Angola, que de baixo em riste delineava uma melodia rock, sobre a qual a guitarra rasgava a harmonia e rompia com a expectativa do seu papel no género. A aproximação a Angola e a África acontecia, também, no kimbundo, que servia de propulsor para a voz, elevando Vum-Vum em gritos que, mesmo para o yé-yé, vislumbravam novos tempos. O pai do rock angolano não começou pelo seu “agora”. Estava já de olhos postos no futuro.

Ao Rimas e Batidas, desenrolou logo as suas influências, de James Brown às cadências da música angolana, que carregava desde os tempos em que aprendera bongos: “O Muzangola tem uma peça em 4/8, ‘Xé-Xé-Xé Kangrima’, um ritmo influenciado pelo semba”. Não seria a única demonstração de resistência neste EP: Muzangola significava música de Angola e foi feito para ultrapassar as ideias de exotismo que cristalizaram alguns artistas do país e que permitiram a sua instrumentalização pelo Estado Novo. Muzangola, explica o próprio, soava a modernidade, ultrapassava tradições (ainda hoje se pode dizer isto) sem nunca esquecer a sua origem. Entre as peças escritas pelo próprio, revisitava-se temas de enorme tradição entre mwangolés, como é o caso de “Monami”, de Euclides Fontes Pereira e celebrada, enquanto canção, pelos históricos N’gola Ritmos.

Seria pela altura da edição deste marco histórico que Vum-Vum retornaria a Portugal, onde viveria até aos anos 80, convivendo com lendas de toda a cultura lusófona. De Zeca Afonso, com quem praticaria artes marciais japonesas (Zeca praticava judo, Vum-Vum karaté), a Teta Lando e Bana, tendo este último lançado o seu primeiro LP Salalé por via da editora Voz de Cabo Verde. Registo que viria a confirmar o seu estrelato em Cabo Verde, estatuto que havia adquirido por via da fama de “Monami”: “Um cabo-verdiano, amigo de um primo meu, quis-me bater quando me foi apresentado. Não acreditava que eu era Vum-Vum, achava que estava a fingir. O famoso Vum-Vum que cantava ‘Monami’.”

Salalé mantém-se fiel à convergência que resume Vum-Vum, um homem que usa línguas com a mesma agilidade de que disseca, desmantela e volta a montar géneros em trechos de música singular que tanto pode ser rock como semba, mas que acima de tudo é africana à moda de Kamusasadi. A faixa-título, que recolheria também atenções da Luaka Bop de David Byrne, tem o mesmo baixo protuberante, mas que desta vez se cobre de uma viola despida de efeitos, acústica mesmo, para melhor acompanhar a voz, portentosa e embevecedora.



[“Dediquei-me a escrever porque o mundo está sem memória”]

Em 1988, seguindo uma carreira em que não raramente fora apupado por não se calar, Vum-Vum rumaria a Estugarda, onde aprenderia a língua alemã e permaneceria durante largos anos, explorando outras paixões, nomeadamente como chef de cozinha, para alimentar a sua real missão, a de criar arte e reavivar memórias. Fê-lo ora por via da música, ora por via do teatro, tendo criado a peça O Assimilado, ora em literatura, na qual se estrearia em 2011 com o seu romance Simplesmente Joana e para o qual prepara um sucessor.

Foi lá que chegaria à Tropical Music, não sem abrir caminho como sempre havia feito: “Foi no Parlamento Austríaco, no Auditório da Câmara dos Trabalhadores, onde fiz o meu primeiro Concerto em Setembro de 1988, a convite de Christian Kreisky, filho do antigo chanceler Bruno Kreisky. De seguida, finalmente em Stuttgart na famosa Livraria Buch Julius em Novembro, realizado por mim em comemoração do dia da Independência de Angola”. Já em 1989, chegaria ao Linden Museum de Stuttgart, momento crucial na sua carreira na Alemanha, onde viria a ser considerado pela imprensa um George Brassens africano. Com justiça, acrescentamos nós.

Foi, também, na Alemanha que veria mais um trabalho seu a ser editado, após deixar na caixa de correio da Tropical Music uma maquete. Um acto que resultou numa resposta quase imediata, para seu espanto, mas também sem surpresa — Vum-Vum não esconde uma admiração pelo estoicismo alemão, um povo que, como o próprio, não foge das memórias e que é rectilíneo nas ações e palavras; a esta cultura vai buscar não só o ethos, mas também a língua, cujo à-vontade no uso não se coíbe de exibir em conversa, ora falando em alemão, ora praguejando quando a ocasião e a indignação assim o pedem.

“Ligaram-me para falar sobre a minha música e disseram-me que esperavam outra coisa, por ser música africana. Disseram que a música africana, tipicamente, era pouca voz… e muita percussão. Pois, esse não sou eu”. E se não era em 1969, quando se estreou, em 1976 quando pela VCV lançou Salalé, ou em 77 quando se cruzou em Lisboa com o grupo brasileiro Os Cariocas, não seria em 1995, ano em que se juntou ao portefólio de estrelas editadas pela Tropical Music, onde se destacam Astor Piazzola, Mercedes Soza e Cesária Évora, com MuzAngola, o CD. Foi aqui que acrescentaria Kamusasadi ao seu nome: “o Claus Schreiner, boss da Tropical Music, pediu-me para acrescentar um outro nome ao Vum-Vum, para dar mais ênfase.”

A relação com a Alemanha não se ficou no tempo que Vum-Vum lá passaria, nem se quedaria no disco que lá viu ser editado. Ficou no respeito que lá encontrou pela necessidade de preservar memória, quando em Portugal esta parecia incomodativa. “Os portugueses foram os piores colonos”, atira sem qualquer reserva durante a conversa. E segue a sustentar com a sua vivência, que muito vai além de três meses de prisão depois de denúncia à PIDE: as idas ao cinema do Huambo que lhe eram proibidas por ser negro (“havia apenas três negros que podiam ir ao cinema,” e segue nomeando cada um deles e as funções que estes prestavam ao serviço do governo colonial); a “raça” bem decalcada no bilhete de identidade de cada pessoa, numa “escala” de português de primeira e português de segunda a preto cafuzo e preto (sim, um racismo assim tão declarado); assim como as várias narrativas lusotropicais com que poucos portugueses parecem sentir-se desconfortáveis.

O conforto não é, contudo, a linguagem de Vum-Vum, que recorda as repetidas vezes em que fora vaiado por narrar as realidades do colonialismo português, por cantar sobre elas e por as querer manter vivas, mais não seja para que nunca se esqueça e nunca se repita. Como, aliás dito pelo próprio o fizeram os alemães com a sua história recente e que lhe serve de mote para uma crítica mordaz a Macron: “Disse aquando da sua visita à Eritreia que França tinha sido cúmplice, mas não culpada dos crimes coloniais em África. A falta de vergonha…” Sempre foram estas as estórias que levava para palco e que levavam a que o apupassem, nunca pela falta de qualidade artística, impossível de lhe apontar, mas pela forma como confrontava os seus interlocutores com a realidade de que queriam fugir.

Ainda é esta necessidade que o move, a de manter vivo o que nem mesmo os artistas angolanos que celebramos agora parecem querer dizer. A vontade de não deixar esquecer os crimes que lhe marcaram a juventude e conduziram a uma guerra colonial seguida de uma guerra civil em Angola, assim como de todas as histórias semelhantes em África. Servem-lhe de inspiração para todas as suas expressões: “Nos últimos tempos, dediquei-me a escrever porque o mundo está sem memória”, diz-nos. A sua, por outro lado, não falha, exibindo contornos de ser eidética — o que valida a nossa suspeita de elevado intelecto revelado no domínio do inglês, do francês, do alemão, do kimbundo e do português, assim como na arte de escrever canções. Esta desenvoltura em particular não é reconhecida apenas por nós, nem tampouco é recente: as canções de Vum-Vum foram revisitadas e reavivadas repetidamente ao longo do tempo por artistas de alto calibre, como o Duo Ouro Negro ou António Calvário. E sempre da mesma forma: “pediam-me os direitos para interpretar as músicas. Nunca escrevi música para ninguém que não eu”. E mesmo assim o seu espírito indomável parecia falar mais alto em todas as versões, ou não fosse a sua “N’vula” figurar no incontornável disco de afirmação africana do Duo Ouro Negro, Blackground.

Esta sempre foi a sua postura. “Para que escrevo e serve a minha arte em toda sua dimensão? Pela minha África”, diz sem rodeios, apresentando a sua premissa: ”um povo sem memória do seu passado histórico não pode ser dono do seu futuro. Assim caminha África”. Não por sua vontade, claro. Depois do concerto no Linden Museum, “um grupo de professores veio pedir-me se eu podia dar esse concerto para as escolas primárias dos 8 aos 13 [anos], porque eu contava a história de África que a Europa desconhece, sobretudo, falando das Cultura de Rendimento. Foi assim que dei em três escolas, e mais: a rádio principal do estado de Baden Wuttemberg pediu-me para gravar um programa a contar de como era a infância que então vivi na época colonial”. Aquela que descrevemos, tão levemente e de forma incompleta, em cima, mas que falam de escravatura, de racismo, de exploração, de desrespeito pela humanidade. Aquela que leva Vum-Vum a proclamar, de forma recta, “os portugueses foram os piores colonos,” e que nós repetimos para que não se esqueça.

Estas memórias servirão, também, de mote para o concerto de dia 25 de Março, na SMUP, na Parede, em que Vum-Vum se apresentará de viola e voz, a solo, para cantar e declamar alguma da sua poesia, num espectáculo que lhe valeu enorme admiração na Alemanha — essa mesma, que, na sua opinião, encara de frente a sua história. Será uma oportunidade única para vislumbrar o que faz de Vum-Vum Kamusasadi um artista tão singular, que transcende o epíteto de pai do rock angolano, uma realidade que o próprio descreve como ninguém: “Sou igual a toda a gente, mas totalmente diferente”. Este é o negro que é e sempre foi dono de si, e que nem a prisão, o racismo, a censura, o desconforto e as calemas calaram. Celebre-se Vum-Vum, agora e sempre.


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