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Texto: Paulo Pena
Fotografia: Hugo Lima
Publicado a: 18/08/2023

Encantados por Sudan Archives e Fever Ray e rendidos a Tim Bernardes e Loyle Carner.

Vodafone Paredes de Coura’23 — Dia 2: nada menos que amor incondicional de e para Loyle Carner

Texto: Paulo Pena
Fotografia: Hugo Lima
Publicado a: 18/08/2023

Vamos tirar já isto do caminho: bem sabemos que, para quem deste lado vos conta o que se tem passado na edição em que se celebram os 30 anos de Vodafone Paredes de Coura, não há memória comparativa para as conclusões que se hão-de tirar no fim disto tudo; mas o salto de fé não nos parece maior que a perna quando avançamos que o concerto de Loyle Carner terá sido dos melhores — ou dos mais especiais, se quiserem — destes últimos trinta anos de música à vila. Fiquem com esta, que já cá voltamos.

Em retrospectiva, tudo nos parece secundário depois de uma hora de emoções tão fortes. Ainda assim, o segundo dia de festival (com um terceiro claramente a cativar-nos como mais nenhum dos restantes) já nos encheu as medidas com uma mão cheia de actuações. Se ontem juntávamos mais um depoimento à causa de que o Couraíso é oásis bem real, arquive-se qualquer contraditório anexando, se possível, provas visuais do show de Tim Bernardes. Woodstock à portuguesa, com mais relva que lama, numa colina rendida aos encantos despretensiosos do paulista que, sentado e de violão ao colo, trouxe cantigas de puxar a cortina do dia à volta da fogueira de calor humano. Ainda há por estes dias quem se valha apenas de uma guitarra, primeiro, de um piano, depois, e da voz, invariavelmente, para desarmar uma multidão predisposta à euforia festivaleira. 

Na hora do cabecilha do trio O Terno — que passou, ainda, por reportório da banda —, as atenções vidraram-se ora no autor de Recomeçar (2017) e Mil Coisas Invisíveis (2022) à boca de cena, ora na sua projecção em plano fechado, de green screen (à letra) em pano de fundo, alternada por imagens de beijos inadiáveis e lágrimas terapêuticas da plateia, como se a música de Martim Bernardes Pereira fosse a salvação. E talvez seja mesmo.

Contraste absoluto para o que ficou das actuações de Sudan Archives e Fever Ray, também elas completamente diferentes entre si. Há, porém, uma extravagância calculada que as aproxima, não só na apresentação (porque os olhos também comem), mas também na proposta artística inortodoxa — e, nesse aspecto, vieram ao sítio certo. Agora, se a primeira se faz valer do violino enquanto arma de eleição — que tanto usa como espada de samurai ou espingarda de caçadora — e um cúmplice (Ghalani, de seu nome próprio, segundo sabemos) na hora do acto ao palco secundário, os segundos, liderados por outra figura feminina, eram quadrilha numerosa em palco principal. 

Em matéria capilar, a coroa de rastas e rosas de Brittney Parks leva a melhor sobre os espinhos de Karin Dreijer. A figura diabólica é, no entanto, uma expressão comum a ambas, ainda que a segunda dê ares mais demoníacos — e o próprio espectáculo tenha contornos mais sinistros. Candeeiro de rua instalado ao centro do palco, fumo denso à entrada dos suspeitos e uma tensão constante. Apesar de a electrónica da cantora sueca e companhia (que editaram Radical Romantics no primeiro trimestre do ano) ser mais expansiva do que lhes julgamos pela capa, paira uma desconfiança sobre as enigmáticas figuras que parecem vir a dar o golpe fatídico a qualquer altura. Nada disso, afinal de contas. Por trás das máscaras faciais até deverão ser gente simpática, certamente. E o espectáculo que montam, em velocidade cruzeiro e sem solavancos, dá-nos um novo significado à expressão “ter mais olhos que barriga”: é com os ouvidos que, aqui, se fica de barriga cheia.

Se bem que, independentemente da técnica impressionante da violinista norte-americana — que teria deixado qualquer estalagem de queixo caído nos idos da Idade Média —, Parks seria, muito provavelmente, queimada viva em época medieval logo a seguir a Dreijer, também por alegada bruxaria. Se foi feitiço ou não, não sabemos. O que é certo é que a artista californiana nos deixou embasbacados do princípio ao fim com a sua entrega generosa e o seu virtuosismo a vários níveis — porque cantar, tocar violino, trabalhar a plateia até à exaustão e dançar sem rei nem roque (no melhor dos sentidos) em simultâneo não é para qualquer um ou uma. Mas também Sudan Archives não é, sobretudo depois daquilo que vimos no princípio da noite, uma qualquer.

E isso vale, mais ainda, para Loyle Carner. Numa fase em que o rap se tornou género dominante, primar pela diferença sem abdicar da simplicidade deixou de ser regra. Um homem e as suas verdades pode parecer coisa pouca, mas ontem chegou para todos. E esse Homem (com “H” capital de “HGU”) começou por expiar tudo o que odeia em “Hate” para, depois, nos falar daquilo que ama: do filho Ben, à cabeça, de quem as saudades falam mais alto, a Portugal, país que conhece melhor do que se pensa, desde que se escondeu no “big deep south” (denunciado pela paisagem de Faro no vídeo de “Angel”) até forjar amizade com um portuense que o acompanha na estrada de máquina fotográfica em riste. 

Ladeado por um quarteto encantador (distribuído pela guitarra, a bateria, o baixo e as teclas), o rapper londrino deu-nos hugo (2023) e Not Waving But Drowning (2019) em doses generosas e passou ainda por Yesterday’s Gone (2017) ou “Yesterday” — segundo tema da parceria com Madlib, em nome de MadLoyle, que cantou nesta noite inesquecível. No entanto, mais do que o que cantou, foi como cantou: as letras, uma boa parte do público sabia-las o suficiente para formar coro uníssono, mas este era um concerto mais para ouvir do que para cantar. Ouvir os versos honestos de Loyle Carner e as palavras sinceras de Benjamin Coyle-Larner, que, sendo exactamente a mesma pessoa — o que, neste âmbito, não é dado adquirido (nem tem de ser, aliás) —, não deixa margem para segundas ou falsas intenções: por muito que acreditemos que os “nossos” concertos são sempre os mais especiais, o MC londrino fez questão de nos convencer, repetidamente, disso mesmo. Confessou-se fascinado (mais um…) pela terra onde se viu a actuar e não conseguiu esconder a perplexidade perante a devoção de tamanha multidão, num dos melhores concertos que protagonizou nos últimos tempos. Palavras (autênticas) do próprio, que foram da denúncia da masculinidade tóxica à paixão pela música, durante uma hora irrepreensível e ao nível dos seus maiores pares. “Small man cast a big shadow.”


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