Foi no passado dia 9 de Julho que Vítor Rua foi agraciado com uma Medalha de Mérito da Cidade do Porto, recebida pelas mãos do presidente da câmara Rui Moreira numa cerimónia.
Ao longo dos últimos anos, o veterano músico dos pioneiros Telectu tem assistido à reedição de alguns dos seus seminais trabalhos, bem como o lançamento de outras obras inéditas por parte de editoras como a Holuzam ou a Marte Instantânea. Já em meses mais recentes, tem estado a doar o seu peculiar espólio à associação cultural Sonoscopia, tornando-a acessível a todos na “Rua Biblioteca”, como que a devolver à cidade aquilo que ela lhe proporcionou para crescer enquanto artista.
Numa breve troca de impressões com o Rimas e Batidas, Vítor Rua falou sobre esta relação de simbiose com o Porto.
Como surgiu a ideia para doares o teu espólio à Sonoscopia? A iniciativa partiu de ti ou foram eles que te lançaram esse desafio?
Durante a pandemia, eu e a Ilda Teresa Castro, minha companheira de vida e, agora, da música, retirámo-nos para sua casa de campo. Foram dois anos de refúgio, transportando nossos estúdios, livros, instrumentos, CDs, LPs e móveis para esse abrigo. Ali, na tranquilidade do campo, quase esquecemos a presença do maldito vírus, cercados apenas pela natureza e pelos animais.
Quando a pandemia terminou e retornámos a Lisboa, percebi que minha biblioteca, ainda na casa de campo, estava sendo subaproveitada. Tantos tesouros ali guardados, especialmente para músicos aspirantes a compositores, improvisadores ou intérpretes, não podiam ficar escondidos. Minha colecção de livros é vasta, abrangendo música, filosofia, cosmos, natureza, poesia, física e biologia, refletindo meu processo criativo e meu ser.
Os CDs, embora em menor quantidade, são jóias raras e ecléticas: música contemporânea, óperas, jazz e pouca música rock/pop, mas muita música clássica e contemporânea. Obras de compositores da antiga União Soviética, como Silvestrov, Korndorf e Terterian, são apenas alguns exemplos da preciosidade que possuo.
Devido ao meu trabalho, raramente visitava a casa de campo. Foi então que, seguindo a sugestão da Ilda Teresa Castro, considerei doar esse acervo a uma instituição que pudesse preservar e divulgar essa riqueza cultural. A decisão veio rapidamente: a Sonoscopia, uma associação que acompanho desde o início e que está localizada no Porto, perto da minha casa de infância, na zona do Carvalhido. Eles são pioneiros na promoção e divulgação de diversas tipologias musicais, tanto nacionais quanto estrangeiras, e na edição de livros e discos sobre o som, tema central da minha investigação musicológica. Fiz meu mestrado sobre o silêncio em etnomusicologia e sou doutorando sobre o som em musicologia histórica.
Ao conversar com o Gustavo Costa [da Sonoscopia], recebi uma resposta calorosa e generosa. Eles se prontificaram imediatamente a buscar meu acervo na casa de campo. Assim, meu tesouro cultural encontrou um novo lar, onde pode ser apreciado e aproveitado por muitos outros amantes da música e da cultura.
Dessas obras que doaste, falamos apenas de CDs e livros ou também outros formatos não tão convencionais? Que tipo de coisas podem encontrar os visitantes da “Rua Biblioteca”?
É um work in progress, um contínuo doar de minha essência, livros, discos e instrumentos musicais, cada qual com sua presença. Vou lendo, escutando, adquirindo novos sons e páginas densas, e à Sonoscopia, minha alma compartilho, em suave e firme sentença.
Na “Rua Biblioteca”, uma avenida de saber e harmonia, livros de variados formatos, do bolso às enciclopédias grandiosas, sobre compositores, música e som, em poética sinfonia, que enriquecem mentes curiosas, em jornadas preciosas.
Os discos, por enquanto CDs, selecionados com esmero, cada nota, cada faixa, escolhida a dedo, com um zelo verdadeiro. Instrumentos musicais, de guitarras a violinos, bandolins em seu brilho, e um sintetizador Arturia MatrixBrute, uma jóia do mundo eletrónico, em seu caminho.
Mais livros, mais CDs, mais instrumentos hão de vir, e meu legado, em contínua expansão, há de seguir. À Sonoscopia, entrego não apenas objectos, mas parte de mim, em assertiva poesia, um acto de amor sem fim.
Há alguma(s) dessas peças que queiras destacar? Seja pela sua raridade ou por uma ligação mais afectiva que possas ter com a obra em questão.
Minha ligação com os livros e CDs que agora residem na “Rua Biblioteca” é uma trama de memórias e afectos. Entre eles, o fascinante “A Piada Infinita” de David Foster Wallace e a obra em português da Gertrude Stein, cuja escrita me encanta, ocupam um lugar especial em minha estante de recordações. Contudo, é nos volumes onde aprendi a arte da composição, onde decifrei os segredos das partituras e das técnicas musicais contemporâneas, que repousa a mais profunda nostalgia. Estes são os livros que me ensinaram a moldar arranjos, a dirigir orquestras e a explorar novos símbolos e notações.
Cada um desses tomos, adquiridos ao longo de uma jornada vasta e rica, remonta a uma época de descobertas incansáveis, muitas delas adquiridas durante as digressões dos Telectu. Das terras exóticas da China e da URSS, aos EUA, Cuba, Japão e quase toda a Europa, trouxe comigo não apenas livros, mas pedaços de uma experiência global e universal.
Além da música e do som, outros temas também deixaram marcas indeléveis em minha memória. Lembro-me com apreço do livro sobre o “Caos” de James Gleick, das reflexões sobre o som de Roger Scruton e da filosofia perspicaz de Mary Midgley. Cada um desses volumes contribui para um entendimento mais amplo e enriquecedor do mundo.
No domínio dos CDs, minha admiração pelos compositores soviéticos do século XX é quase reverencial. Estes álbuns, produzidos em tiragens raras, revelam um mundo tão crucial quanto os trabalhos de Boulez, Ligeti e Xenakis, oferecendo um testemunho profundo da inovação musical. Entre os itens mais peculiares, destaco um CD singular, o qual contém apenas a peça “4′33″” de John Cage. Um disco em que, paradoxalmente, o silêncio digital faz eco da mais profunda reflexão sonora.
Por fim, entre os instrumentos, o sintetizador analógico Arturia MatrixBrute se destaca, sendo uma peça de notável importância e sofisticação no meu arsenal musical. Assim, ao partilhar este acervo com a Sonoscopia, faço-o não apenas com um gesto de generosidade, mas com o desejo de perpetuar a beleza e a profundidade do conhecimento e da arte que nele reside.
Foste também um dos mais recentes artistas a receber uma Medalha de Mérito da Cidade do Porto pelos teus mais de 40 anos de contributo para a música portuguesa. O que significou para ti seres distinguido desta forma em 2024?
Quando soube que seria agraciado com a Medalha de Mérito da Cidade do Porto, confesso que, a princípio, pensei ter cometido algum erro [risos]. Não sou usualmente inclinado a receber honrarias, pois sempre falei e escrevi o que penso, atitude que, creio eu, deixa certas figuras, especialmente aquelas ligadas a instituições e à política, receosas sobre o que posso dizer ou escrever.
Mas desta vez, era verdade. Receber tal honra da cidade que me moldou, onde me formei como músico, foi um prazer redobrado. A distinção veio de Rui Moreira, uma figura que admiro profundamente (e digo isso, pois são raros os políticos que admiro!).
Além do meu currículo e das contribuições para a cidade do Porto — divulgando seu nome por todo o mundo, onde quer que eu tenha actuado — acredito que a doação do meu espólio cultural à brilhante Associação Sonoscopia teve seu peso. Esta acção representa mais do que uma simples transferência de objetos; é uma oferta de meu legado intelectual e artístico, uma partilha de memórias e saberes acumulados ao longo dos anos.
Minha relação com a cidade e minha dedicação à música e à ciência, entrelaçada com uma paixão por livros e sons, encontra na Sonoscopia um solo fértil. Esta instituição, com seu compromisso em promover e preservar a cultura musical, reflecte meus valores e minha visão. Assim, ao doar meu espólio, celebro não apenas minha trajectória, mas também a continuidade do conhecimento e da arte, semeando inspiração para as gerações futuras.
Com assertividade digo que, esta medalha simboliza um reconhecimento mútuo: a cidade me honrou, e eu, através do meu espólio, retribuo, perpetuando um legado de música, ciência e arte.