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Victor Xamã

CALOR

2088label / 2021

Texto de Núria R. Pinto

Publicado a: 04/03/2021

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A vida é diferente para aqueles que carregam consigo a marca do êxodo. A estranheza sente-se, de prontidão, nos sons, nas palavras e, a passo e passo, na percepção de um mundo dual. Nós e eles. Os outros. Quase sempre é a ideia de avanço e melhoria que motiva a saída quando falamos nos locais, cidades ou regiões, isoladas, da partida. O isolamento leva ao esquecimento, o esquecimento à invisibilidade, no micro e no macro. 

No invisível, contudo, a vida continua. A vida segue mesmo que não lhe prestemos atenção, que não nos prestem atenção, com todas as suas dinâmicas, efeitos e vicissitudes e, embora em êxodo, quem se retira não pode esperar livrar-se delas. Nos primeiros, e tão importantes, capítulos da vida do Homem em êxodo, ficam as vivências infantis, as referências do lar, o trauma adolescente, as primeiras paixões, inevitáveis crises. Todas as peças que, em qualquer biografia, dão forma à existência e que, em grande medida, se sedimentam para a vida. Os traços são gerais, claro, já que sobre a condição do êxodo se acumulam tantas as outras. 

Quando volta, se regressar, e sempre que regressa, o Homem em êxodo nunca perde essa condição. Não é mais o mesmo. De quem fica, mudam os olhares, aguça-se a curiosidade com desconfiança. É em si mesmo um estranho, um ser em suspenso, como um viajante dependurado entre dois referenciais. A nova vida move-se entre a manutenção da familiaridade e da pertença, dentro e fora, e a acumulação de experiências e de laços que se movem em direcção ao avanço precipitado. 

Victor Xamã é um homem em êxodo e Manaus o seu ponto de partida. Dois milhões de pessoas aglomeram-se na cidade amazónica à beira do Rio Negro. Longe das grandes metrópoles do Brasil, Manaus representa o seu papel de lugar “ex-cêntrico”. Sufocada pelo calor que se faz constante no clima húmido da Amazónia, há uma cidade que do caldo da miscigenação impetuosa entre brancos, indígenas e negros se fez marcar pela violência secular. Remetida a ideias de tropicalidade e exotismo que cristalizam o Norte e o Nordeste brasileiro, Manaus é o esquecido e o invisível. 

CALOR nasce dessa viagem quente. A do artista exilado no centro económico do Brasil em busca de se manter vivo. A do Homem em êxodo que ilumina o caminho para casa enquanto ilumina o caminho para si mesmo, dando luz ao esquecido e ao invisível. Cinco faixas absolutamente necessárias em que Victor Xamã rima e, a espaços, produz — imperdível o groove-monstro de “Manaus Delírio” — ao lado dos irmãos e irmãs ao Norte, Nic Dias, Anne Jezini, Gabi Farias, Baco Exu do Blues e do brasiliense Froid. A soul, o boom bap, o acid jazz e o balanço de CALOR consagram o crescimento e a genialidade do artista amazonense. 


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