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Publicado a: 06/08/2017

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[TEXTO] Samuel Pinho 

Ao longo dos tempos, Chicago tem sido uma autêntica mina de talento, responsável por fazer engrossar as hordas de (bons) rappers que escutamos por aí. Depois de Common, Chief Keef, Lupe Fiasco ou Kanye West – que mesmo lá não tendo nascido, lá cresceu e se fez artista – a cidade onde já reinou Al Capone vê florir Chance The Rapper, e mais importante para o caso, Vic Mensa. É curioso que ambos personifiquem, e retratem, a vida no mesmo ecossistema, sendo da mesma geração (ambos nascidos em ’93) e tendo tido influências e vivências semelhantes. Ainda assim, o resultado do processo criativo de um e outro são produtos musicais drasticamente diferentes, quase sem pontos de contacto entre si.

Juntos formavam parte de um colectivo intitulado Savemoney, que contava com mais 2 intervenientes, dissolvido entretanto. As colaborações frequentes com Kanye – entre as quais se contabiliza a co-autoria de “All Day” – vieram depois desse processo de experiementação juvenil e antes do rapper assinar pela Roc Nation, presidida por Jay-Z. Fora da arena musical, Mensa não se inibe de exprimir, sem filtro, as ideias que lhe vão povoando a mente. Vem mesmo cristalizando um perfil abrasivo, sem papas na língua, que lhe tem valido alguns beefs e contenciosos menos agradáveis, para além de um par de casos judiciais relativos a um estilo de vida que inclui pequenos delitos e consumo de drogas. Há, indiscutivelmente, mundos diversos em Vic Mensa; a nós, interessa-nos o estritamente musical.

 



Há sensivelmente um ano a esta parte, There’s Alot Going On tomava de assalto o panorama musical, deixando a descoberto um registo pouco habitual, no miúdo que vinha fazendo carreira por via de barras duras (mas raramente concretas) e carregadas de lugares-comuns. O próprio foi – precisamente – assolado pela mesma constatação, num desses programas de rádio que proliferam nas manhãs americanas. Aí, aproveitou para apontar ao novo registo – mais pessoal, mais fiel à veridicidade – que jurava perseguir doravante, enquanto efectivava um mea culpa bem ensaiado. Nota adicional: não é, de todo, hábito assistirmos a esta auto-avaliação tão crítica, por parte de artistas do género. É-me difícil recordar alguém que o tenha feito publicamente, dirigindo-se de forma tão cáustica à própria música recentemente produzida.

No seu álbum de estreia, Little V oferece-nos um roteiro guiado ao seu interior – angústias, depressões, vícios tóxicos e existencialismos – aniquilando o argumento de quem não o ouviria (só) por não o conhecer previamente. Aberto e sem tabus, fiel ao título da obra, está aqui tudo o que há para saber sobre o profícuo Vic: estamos perante um autêntico diário e Chief Keef, Syd, The-Dream ou Ty Dolla $ign são alguns dos capítulos que recheiam a obra em análise.

 



“Say I Didn’t” povoa a 1ª página e de imediato a memória se socorre dos infinitos samples de 4:44, articulados pelo hábil No I.D.: “Vic, baixa a música”, grita-lhe alguém por entre batidas na porta. Depois de ordenar que as drums surjam, entra de cabeça na zona de conforto: um beat fresco, mínimo e com margem para experimentação rítmica. Com referências a Ray Charles e Nate Dogg, Vic desbrava tópicos como família e o hustlin‘ de sempre, entre a leve arrogância e o bairrismo vincado. Estamos a 100km/h numa qualquer via rápida, o sol põe-se e fumamos o charro das nossas vidas. É este o cenário predilecto da faixa de abertura.

Dada previamente a conhecer ao público, “Rollin’ Like a Stoner” é a próxima a saltar aos tímpanos. Por sinal, é a life fast, die young do álbum. O hit e o banger, ainda que seja das faixas mais curtas do projeto. O piano surge enganador, firmando o ambiente calmo para logo depois… BUM! O objectivo é claro: recuperar e elevar a vida de excessos. Apesar da dose (exagerada) de carpe diem, esta é uma música mais que desejável, faltando-lhe (só) objectividade no conteúdo – flagelo comum à maioria dos bangers – para que fosse memorável. Fica o lamento de ver um instrumental exímio, mal correspondido pela música que o preenche.

Para além de precoce, dizer que a faixa é o que de melhor se retira deste álbum soa algo desadequado, apesar de, à priori, parecer das poucas que o abrasivo avanço dos tempos terá dificuldade em fazer esquecer.

 


 


Já “Gorgeous” estabelece um ambiente que roça no jazz e faz-nos imaginar o que seria de Vic Mensa noutro registo musical: a voz portentosa e afinada arrasa nos refrões suaves e incisivos, próprios . Nesta, Syd nem se fez notar. Tal como Chief Keef em “Down for Some Ignorance (Ghetto Lullaby)”: desiludiu-se quem esperava um verso do conterrâneo. “Coffee and Cigarettes” e “Wings” assumem a despesa dos sentimentos mais profundos, por via de uma abertura franca e sem reservas: a 1ª aponta baterias a um amor fracassado, num registo desapaixonado – em que o rapper já mostrou ser exímio – enquanto a 2ª aborda a experiência de quase-suicídio do autor. Mais uma vez, no primeiro caso, se excluirmos escassos segundos, a aproximação a um registo r&b/soul é notória e francamente bem-vinda. O segundo goza de um instrumental talhado para soar bem e permite ao rapper exibir os dotes líricos que tanto ostenta, alternando entre um flow mais agressivo, ríspido e a palavra falada, como quem discursa.

“We Could Be Free” é a balada que se adivinhava desde o primeiro minuto do álbum. é executada com mestria e coração, com direito a tudo o que um espectáculo de gala merece: piano, falsetes (uau!) e cheia de alma. Oxalá a mensagem não tivesse sido já tão mastigada e regurgitada, vezes sem conta.

 



Mesmo sem uma relação direta, os lançamentos de Lust For Life, 4:44 ou o mais recente álbum de Tyler, The Creator vieram retirar espaço mediático e tempo de antena ao projecto de estreia do rapper Chicago-based. Por sinal, unanimemente tido como um dos mais underrated no lado de lá do Atlântico.

É justo afirmar que este é um álbum para ser degustado, esmiuçado e descoberto a cada audição. Face ao imediatismo dos dias de hoje, tal não parece assumir-se como algo benéfico ou auspicioso.

Rematando, Vic é célere a exibir a direcção que o álbum toma, ou que pretende que este tome: para dentro. Porém, e com base nessa premissa, é legítimo apontar este como um trabalho que não avança, nem recua. É eficaz na medida em que surge munido de faixas coesas e agradáveis, se bem que dificilmente memoráveis.

Apesar de se apresentar como minimamente consistente, o jovem Vic Mensa criou algo inócuo, que só sobrevive graças à cadência lírica tão característica.

A porta para o interior está aberta: veremos se lhe dá uso ou se atalhará por janelas secundárias.

 


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