Digital

Vários Artistas

MJ DOOM

Monster Jinx / 2021

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 31/01/2021

pub

Os arquétipos são importantes em qualquer cultura, moldes de onde decorrem cópias mais ou menos exactas, em primeiro lugar, mas a partir dos quais, com o tempo, vão surgindo leves transformações, que depois acabam por conduzir a novos modelos, novas ideias e práticas, novos pontos de vista. O que se percebeu quando se soube que a arquetípica figura de MF DOOM abandonou a dimensão em que habitamos foi exactamente o quão inspiradora foi a sua figura, a sua obra. A sua IDEIA. Porque a magia da máscara reside precisamente na constatação de que TODAS as ideias que se possam ter sobre DOOM são correctas. No caso do Vilão Mascarado não há mesmo percepções erradas. Todas têm lugar. E daí a extensão do lamento colectivo pela sua partida, daí o reconhecimento do seu impacto nesta arte que a todos liga e que identificamos como hip hop.

Em Portugal, o colectivo que se abriga na sombra de um Monstro Roxo foi sempre aquele a quem esse particular espírito de DOOM melhor se aplicava. Um sólido conjunto de mentes criativas que se dissolve num conceito mais vasto, um pequeno exército de diferentes artistas (beatmakers, DJs, músicos, MCs, ilustradores, fotógrafos gourmets…) equipados com uniforme roxo que desde muito cedo entenderam que o hip hop é, e por paradoxal que isso possa parecer, um espaço de cânones firmes, por um lado, e de liberdade absoluta, por outro. E a Monster Jinx, reconhecendo esses cânones, esses arquétipos, nunca abdicou da dose de loucura libertária que acreditava necessária em cada momento para levar a cabo as suas entusiasmantes missões. Quem olhe para o verdadeiro quadro de honra que é a sua vasta discografia, facilmente percebe que, tal como DOOM, a Jinx também soube construir um universo paralelo, alheio a correntes de fundo, comprometido apenas com a sua própria noção de arte. A verdade é que qualquer pirâmide precisa de uma base sólida que a sustente e, no caso da complexa pirâmide do hip hop tuga, a Monster Jinx parece ser aquela pedra posicionada bem no centro, crucial para a restante arquitectura, ainda que eventualmente invisível para quem só preste atenção ao topo.

Mais do que bem-vinda, portanto, esta vénia da Monster Jinx a MF DOOM era esperada e desejada. O desígnio cumpre-se então em MJ DOOM, homenagem colectiva em que se envolveram boa parte dos agentes roxos deste universo jinxiano: DarkSunn, Stray, NO FUTURE, Vasco Completo, Maria, M.A.F., Arekkusu, Raez, OSEB, Don Pie Pie, Liquid, Sh33p, E.A.R.L. e Saloio.

O tríptico de peças que marca o arranque desta viagem dita o tom de reverente reconhecimento do génio de DOOM mas, lá está, sem abdicar da dose de invenção que é o oxigénio que sempre alimentou o hip hop: Sh33p senta-se ao piano e leva “Coffin Nails” para uma angélica estratosfera criando a música que se escutou no elevador cósmico que levou Daniel Dumile para o lugar onde está agora; Vasco Completo, um dos mais recentes recrutas do exército roxo, mantém a toada nostálgica, segura os ecos da voz do Vilão em “Rhinestone Cowboy” e envolve-a na seda refinada que é a sua própria visão musical, toda ela vapor, nuvem harmónica e melódica que parece existir em suspenso; e quando se chega a “Pó de Raiz”, com Maria a agarrar em “Na Boca do Sol” do maestro Verocai, já estamos em pleno domínio hip hop, com a cadência do break e a mestria sampladélica a relembrarem-nos que o produtor de Alverca é um dos mais incríveis beatmakers a trabalhar entre nós neste momento.

Diga-se já que não há elos mais fracos na corrente que a Jinx aqui revela: percebe-se que para uma homenagem deste calibre, cada um dos convocados recorreu ao seu “A-game”: DarkSunn transforma “All Caps” na banda sonora de um filme de blaxploitation que todos desejávamos poder ver; os Don Pie Pie injectam nervo e músculo em “Meat Grinder” forçando a nossa cabeça a aderir à sua cadência e Stray pega em “Accordion” para em 1 minuto e 46 segundos nos relembrar que é MC de corpo inteiro, um MF Rafeiro que tem pedigree refinado na sua caneta. A Liquid compete a missão de se posicionar no centro do alinhamento, o que é alcançado combinando barras de diferentes proveniências, com a voz de DOOM a soar vibrante, distinta, nobre e eterna, enquanto por baixo corre uma base de luxo, pulsante, plena de ideias.

A segunda metade de MJ Doom traz a arte de Raez que se revela capaz de nos colocar um sorriso na cara, com balanço luminoso e, mesmo no final, DOOM a falar-nos do lado de lá, dizendo que continua a fazer o que tem que fazer, enquanto expressa a limitação que o seu corpo físico lhe impõe. Agora, DOOM existe entre o possível e o impossível e entre as dobras do tempo, sem limitações físicas, só espírito. Que é exactamente o que o boogie futurista de E.A.R.L. parece sugerir, transformando “Gas Drawls” num “Villain Chillin” iluminado a néon. NO FUTURE mete o Vilão no centro da rave e OSEB começa por levá-lo para a sala do lado, mais chill, mas rapidamente o convida a descer à cave fumarenta onde os breaks nos acertam em cheio como murros no estômago. A viagem não termina sem que M.A.F. confronte o flow de DOOM com um brilhante pedaço de caos glitch e Arekkusu desmonte tudo em partículas, permitindo que DOOM se desfaça em pó de estrelas, cósmico e infinito. Sem corpo, mas com máscara e voz e obra feita. O derradeiro arquétipo.

O MJ no título deste álbum significa Monster Jinx, mas bem podia querer dizer MORTE JAMAIS porque estas 13 faixas deixam bem claro que DOOM continuará a viver por muito tempo.


pub

Últimos da categoria: Críticas

RBTV

Últimos artigos