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Publicado a: 19/03/2018

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black panther o álbum review

[TEXTO] Alexandre Ribeiro

O que é que separa Kendrick Lamar de todos os outros grandes artistas pop desta era? Várias coisas, mas a mais gritante de todas é a facilidade com que consegue puxar as margens para o centro, estando sempre um passo à frente da maioria e nunca perdendo a capacidade de escrever grandes canções que logram alcançar o raro feito de serem igualmente populares. O caso mais claro dessa habilidade de colocar as franjas no centro das atenções foi To Pimp a Butterfly, disco que, por exemplo, possibilitou que nomes como Thundercat, Flying Lotus, Kamasi Washington, Terrace Martin, Sounwave, Knxwledge ou até Rapsody tivessem uma montra generosa para exibirem as suas enormes qualidades. Músicos bastante talentosos — que não precisavam da aprovação do grande público, deixe-se bem claro — que se juntaram por uma causa maior.

Os paralelismos entre a vida e obra de K.Dot e o simbólico Black Panther até estão lá, se procurarmos bem: o “protagonista/herói” negro, a capacidade de perverter as regras a partir do epicentro mainstream ou a exaltação de uma herança cultural que, em tempos, foi desvalorizada, usurpada e remetida para um canto. Num tempo em que as redes sociais amplificam tudo o que são causas, é importante meter a cabeça de fora do “furacão digital” e perceber o caos que se gera na realidade: Black Panther e as canções de Kendrick Lamar são, cada um à sua maneira, valiosos exercícios criativos que venceram retumbantemente numa altura em que Donald Trump governa o país. E sim, não é aconselhável desligar estas coisas, por mais distantes que possam parecer estar.

O filme realizado por Ryan Coogler é um blockbuster grandioso que marca uma posição a partir de um “pedestal” de 200 milhões de dólares. As receitas de bilheteira são exorbitantes: estamos a falar de muitos zeros à direita. Segundo a Variety, a longa-metragem já angariou mil milhões de dólares pelas salas de cinemas espalhadas pelo mundo.

Wakanda, a nação fictícia onde se passa grande parte da história, é, de uma maneira bastante fantasiada, uma representação de um presente alternativo onde África nunca foi colonizada e desvirtuada. Essa ideia não está explícita… mas também não está afastada. A ponte com os Estados Unidos da América é feita através do vilão, um miúdo “abandonado” numa terra que não é a dele, que não o aceita como ele é e que o obriga a escolher o caminho menos convencional para conseguir sobreviver. Onde é que já ouvimos esta história…?

Resumindo: um filme de super-heróis com alguma consciência social e uma vontade enorme de não ser “mais um”. A banda sonora alternativa — sim, a “verdadeira BSO” é outra obra de arte de Ludwig Goransson, compositor que é peça imprescindível na carreira de Donald Glover, mas isso é outra conversa — é o reflexo do seu “cérebro”, Kendrick Lamar. Arrojada, actual e, tal como a obra cinematográfica, uma mistura de ambição mainstream com atrevimento artístico.

 



Numa época em que o hip hop domina, a música “de e inspirada por” Black Panther também é um retrato das várias abordagens que existem dentro do género musical que mais nuances explora dentro do seu próprio universo. A pop açucarada de “All The Stars” assenta que nem uma luva a SZA e Kendrick Lamar. É fogo-de-artifício que dá gosto de ver e, apesar de Solana não trazer aquela escrita transparente e descomplexada que a caracteriza, K.Dot resolve dar pérolas a porcos: “You can bring a bullet, bring a sword, bring a morgue/ But you can’t bring the truth to me”.

As talking drums que Goransson resgatou em África para a música que acompanha T’Challa, o protagonista do filme, surgem a espaços no alinhamento de Black Panther The Album: atentem à passagem de “X“, canção embebida em esteróides — Schoolboy Q (“Not even Kendrick can humble me” leva o prémio de linha mais corajosa do projecto) e 2 Chainz causaram estragos ao lado de Saudi, o Travis Scott sul-africano –, para “The Ways“, a balada guiada pelas vozes contrastantes de Khalid e Swae Lee, secundadas pela produção de Sounwave e BadBadNotGood. Nem sabíamos que precisávamos tanto disto…

Opps” é a faixa mais afrofuturista que vão encontrar nos cerca de 50 minutos desta BSO. Coadjuvados por K. Dot, Vince Staples e Yugen Blakrok recuperam a ligação perdida entre o país mais poderoso do mundo e o continente africano. Para este tema, o rapper de Long Beach, Califórnia, parece ter cedido um instrumental que ficou de fora de Big Fish Theory — os elementos musicais são indissociáveis do que fez no seu segundo disco de originais. Apesar de estar ao lado de dois gigantes do rap norte-americano, Blakrok, a MC sul-africana, não se deixou intimidar e mostrou aí sólidas credenciais: “Flowers on my mind, but the rhyme style sinister/ Stand behind my own bars, like a seasoned criminal”. É aqui que repetimos o fire emoji até não dar mais?

20 anos, zero álbuns e colaborações com Drake, Kendrick Lamar e Stormzy: o currículo de Jorja Smith poderia falar por si mesmo, mas a voz dela é bem maior do que isso. Num instrumental lânguido a pedir uma entrega pouco exuberante, a artista correspondeu com um descaramento — no bom sentido — que nos empurra para Rihanna. A secção final de “I Am” com Jorja, K.Dot e o arranjo de cordas é de uma elegância irresistível.

Só para quem viu o filme: “Paramedic!” deveria ser a faixa de Killmonger, a personagem interpretada por Michael B. Jordan. O colectivo da Califórnia, SOB x RBE, pegou no beat, que teve mão de DJ Dahi, Cubeatz e Sounwave, sem medos e torceu-o à sua maneira. Se o início é doce — cortesia de Zacari –, os versos de Slimmy B, Lul G, DaBoii e Yhung T.O. são duros e falam de uma realidade que poderia encontrar-se numa qualquer guerra num local “esquecido por Deus”, mas que, infelizmente, ocorre num estado norte-americano.

E começamos a segunda metade do disco com o trio mais improvável: James Blake, Anderson .Paak e Ab-Soul. O rapper da TDE apresenta-se na sua melhor forma. Pegou na temática da canção anterior e, como é seu costume, tornou tudo muito mais complexo e críptico — e agora estão todoso a reler as letras no Genius. Na era da velocidade e do descartável, também precisamos de rappers que não estão preocupados com caminhos fáceis. E se estas “Bloody Waters” têm correntes quentes e frias, .Paak e Blake são inteiramente responsáveis por essa ambiguidade boa. Podem mergulhar aqui, mas ninguém vos garante que vão emergir os mesmos.

 



“King’s Dead” quase se resumiu a um verso totalmente desajustado por Future. Apesar daqueles 12 segundos de puro terror — o “sunken place” da canção –, tem que se falar do beat massivo e industrial construído a quatro mãos por Mike WiLL Made-It e Teddy Walton e da segunda parte da música. Num exercício de técnica pura e dura, Kendrick Lamar muda, pelo menos, três vezes de flow e cria uma dinâmica avassaladora que só pára quando se esgota o tempo. No entanto, fica a ideia que o rapper terá ficado mais 50 minutos a explorar todas as “velocidades” possíveis e imaginárias. Sobre-humano.

Depois de acelerações e desacelerações em tempo recorde, a voz quente de Zacari coloca-nos no canto da festa para descansarmos um pouco. Uma paragem breve: “Redemption”, com Babes Wodumo, é afrobeat à americana. DJs, não se esqueçam deste tema: vai-vos dar jeito no verão…

E por falar em estações, “Seasons” é mais uma belíssima canção, começando pela intro — de quem é esta voz que não está creditada em lado nenhum? –, passando pela instrumentação que é tudo menos monótona — a parte final do terceiro verso remete-nos para “1-800-273-8255”, de Logic –, e a escrita bastante visual dos três protagonistas, que conseguem colocar-nos no centro da acção, bem ao seu lado.

Travis Scott (“Big Shot“) e The Weeknd (“Pray For Me“) ajudam Kendrick Lamar a encerrar o alinhamento. As duas “peças” encaixam, mas o hype não corresponde ao resultado final. No caso de Scott e Lamar, o termo de comparação é injusto, mas difícil de desviar do pensamento: “Goosebumps” é uma das grandes faixas de 2016. La Flame e Kung-Fu Kenny deixaram a fasquia lá bem no alto.

 



A banda sonora cumpriu a sua função: soube dar espaço a vozes alternativas (especial destaque para os vários sul-africanos que brilharam na primeira vez que tiveram a audiência internacional à sua mercê), conseguiu ligar-se umbilicalmente ao filme e, mesmo assim, agrupar um conjunto de histórias pessoais que sobrevivem sozinhas e, para finalizar, juntou uma série de nomes que dificilmente colaborariam em condições normais (ênfase nas músicas que juntam Anderson .Paak, James Blake e Ab-Soul ou Vince Staples e Yugen Blakrok).

Não se resolvem as desigualdades que existem (e sempre existiram) com um filme e música, mas a oportunidade de imaginar um equilíbrio de forças e colocá-lo num formato credível e rentável é algo que raramente sucede.

 


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