É um dos eventos que mais promete agitar este final de 2023 através de uma proposta musical arrojada que se vai estender ao longo de 5 noites, entre os dias 15 e 19 de Novembro. Senhoras e senhores, vem aí o Vale Perdido.
Para quem realmente gosta da música pela música, não há nada melhor do que ser surpreendido por nomes que não se conhecem dentro de um cartaz de um evento, sem pensar no alcance, no número de fãs ou no mediatismo que cada um deles possa ter. Pensado e executado por três mentes conhecedoras daquilo é a realidade e o potencial da cultura nocturna de Lisboa, o Vale Perdido estreia-se no próximo mês com um alinhamento fora do comum e tecido ao mínimo detalhe, que certamente não desiludirá os melómanos mais aventureiros, tal é a urgência das sonoridades que cada um destes artistas representa.
Do batuque de Cabo Verde à electrónica mais disruptiva, este será um line-up que inclui tudo o que de mais possa existir entre estes dois polos tão distintos: FUJI||||||||||TA, Polido, Joanna Sternberg, Maria Reis, Patrícia Brito, Nihiloxica, Batucadeiras das Olaias, Kléo, Ricardo Grüssl & Tadas Quazar, DJ Caring, Luke Vibert, Violet, Gabriel Ferrandini & Xavier Paes e A:DI são os nomes convocados para esta primeira incursão pelo Vale Perdido, que se desdobrará por diferentes salas da capital portuguesa — Igreja St. George, B.Leza, LISA e o novo complexo multidisciplinar 8 Marvila são os espaços que acolherão esta programação tão vasta quanto singular.
O Rimas e Batidas falou com os criadores do projecto, Sérgio Hydalgo (programador cultural independente), Joaquim Quadros (programador do VAGO e LISA) e Gustavo Blanco (Sónar Lisboa), que nos anteciparam o que pode oferecer esta “edição-génese” de um festival que quer quebrar barreiras, desbravar caminho e ir além do óbvio.
O Vale Perdido nasce de um esforço colaborativo entre três cabeças que, à partida, poderíamos não achar que estivessem assim tão alinhadas quanto o demonstram. Começo por vos perguntar como é que surge este projecto e se foi fácil conciliarem as vossas preferências para programar um cartaz que sentem que vos representa a todos?
O Vale Perdido foi sendo congeminado ao longo de alguns anos, mas só agora teve espaço para acontecer. Ele resulta de um desejo de partilha de música nova ou por descobrir; de uma vontade de criar um evento agregador, diverso e plural, com espaço para o formato canção, a tradição, propostas mais expansivas e exploratórias. A programação é o resultado da diversidade dos nossos interesses: quando há respeito e confiança, a colaboração permite-nos fazer melhor.
Poucos eventos têm a audácia de se auto-rotularem enquanto “ecléticos” ou “aventureiros”, algo que vocês fazem questão de frisar através do comunicado enviado à imprensa. O que vos levou à escolha destes dois adjectivos e de que forma eles se reflectem na programação que escolheram?
Música aventureira pressupõe criatividade e risco, destemidez formal. O Vale Perdido é um lugar de descoberta, aberto à pluralidade formal e estética. As Batucadeiras são uma forma de expressão cultural de Lisboa e faz sentido que toquem, destacadas, sucedendo à dança furiosa dos Nihiloxica e antes da electrónica expansiva da Kléo. Entusiasma-nos desconstruir expectativas em todos os sentidos: nos alinhamentos que propomos, mas também nos locais de apresentação, na cenografia, no desenho de luz e design dos nossos materiais de comunicação.
Pegando ainda na questão das palavras e no seu poder de definir as coisas: quando decidiram criar esta iniciativa, rubricaram algum tipo de manifesto que vos ajudasse a guiar daí para a frente? Há algum traço no ADN do Vale Perdido que tenham deixado explícito desde logo e com o qual não vão querer romper por nada deste mundo?
O Vale Perdido é um evento especificamente pensado para Lisboa e que se quer aberto à cidade, com diversos espaços de apresentação – tradicionais e inusitados – sugerindo circulação de públicos. O nosso grande foco é a música, mas há espaço para podermos incluir outras manifestações artísticas. A programação quer-se eclética, diversa e desafiante, com atenção às propostas nacionais e às estreias internacionais.
Falemos dos artistas aqui envolvidos. Foi fácil fechar este line-up? Há aqui algum nome que fizessem mesmo muita questão de ter nesta primeira edição? E, por outro lado, existe algum artista que vos tenha escapado e que vocês sentem que encaixaria na perfeição no plano que tinham delineado?
FUJI||||||||||TA foi o primeiro nome fechado e alguém que há muito queríamos trazer a Portugal pela primeira vez. Joanna Sternberg lançou um dos discos de canções do ano e virá a Lisboa na sua primeira digressão europeia. O Luke Vibert é um herói da música electrónica e os Nihiloxica representam simultaneamente tradição e contemporaneidade da música de dança mais arrebatadora. Estamos muito felizes com todo o alinhamento. São os nossos melhores!
Se tivessem de destacar dois ou três concertos desta vossa proposta cultural — seja por que motivo for — quais seriam? E, particularmente, quais são os nomes que cada um de vocês está mais entusiasmado para poder ver em acção?
A construção do cartaz parte duma premissa muito romântica e fantasiosa de juntarmos um conjunto de propostas artísticas que tínhamos uma enorme vontade de proporcionar a uma intesecção de audiências mas que, acima de tudo, queríamos muito ver. Foi, na verdade, um dos principais critérios. No entanto, tendo que escolher, não há como fugir ao FUJI||||||||||TA. Cruza muitas características que nos entusiasmam. Toda a parafernália instrumental, criada por si, de raíz, e a originalidade da combinação do som com a cenografia, traduz-se num resultado muito único. Traz também uma contemporaneidade muito importante para o cartaz. Por outro lado, as Batucadeiras das Olaias são das mais acutilantes amostras da cultura PALOP diluída em Lisboa. Neste caso, além de querermos muito assistir à performance, há uma intenção de as enaltecer e amplificar-lhes a mensagem, lado a lado com qualquer outra actuação que faça sentido num contexto clássico de festival. Por fim, porque traz um enorme contraste para os dois primeiros nomes referidos, o Luke Vibert. Pela instituição que é, com 30 anos de carreira sem nunca esmorecer, mantendo-se sempre um dos mais visionários. E há um lado muito simplista na forma com que se encara como produtor-pioneiro e selectivo em como se apresenta ao vivo. Afinal de contas, é um dos maiores colaboradores de Aphex Twin e com bastantes mais heterónimos do que Fernando Pessoa. É um rei. A última vez que cá tocou foi há 12 anos, o que também torna entusiasmaste fazer a ponte para este regresso. Ainda para mais fizemos questão de criar um line-up para este noite em que todos os DJs locais são enormes fãs e influenciados por ele. É um artista muito unânime, lá está.
O Vale Perdido tem ainda a particularidade de se desdobrar por diferentes espaços da cidade — neste caso a Igreja St. George, B.Leza, LISA e o 8 Marvila. Houve também um cuidado especial na escolha de cada uma destas salas? O que vos levou a querer montar este evento nestas quatro venues?
A intenção sempre assentou em que o Vale Perdido reflectisse esta nova amplitude de Lisboa e que com ela trouxesse uma ideia de circulação, de movimento por vários espaços. O público poder ter a liberdade de escolher o artista e de se mover para espaços que o atraiam. A Igreja de St. George é um sítio especial onde já vimos vários concertos acontecer com boas condições, há também um lado místico da entrada ser feita através do Cemitério dos Ingleseses. A Lisa e o B.Leza pelo simples facto de nos serem próximas, com as quais alguns dos membros do Vale Perdido trabalham diariamente e, acima de tudo, por se situarem em áreas nobres da cidade, o rio Tejo e a Rua das Gaivotas, que há dias celebrou 10 anos do seu Polo Cultural, espaço que celebrou e deu voz a centenas de artistas e espectáculos durante a sua década de actividade. O 8 Marvila é um novo espaço cultural que traz vida a um lado menos central da cidade, onde estão entidades como a Galeria Zé dos Bois ou um novo clube chamado Outra Cena. Curiosamente, o anteriormente conhecido como Armazém Abel Pereira da Fonseca, agora 8 Marvila, foi palco das primeiras raves clandestinas dos anos 90. Receber o Luke Vibert num sítio onde o fenómeno rave do Reino Unido, do qual fez parte, se alastrou na altura primordial da coisa, acaba por ligar ciclos, o que é sempre interessante.
Presumo que o verdadeiro balanço só será feito no final desta primeira edição. Mas, na vossa cabeça, este é um projecto criado já a pensar numa continuidade ou está a ser tratado como acontecimento único e sem perspectivas quanto ao futuro?
Todos olhamos para esta primeira edição do Vale Perdido como um ponto de partida. A ideia será construir uma narrativa que se vá contextualizando e acompanhando a nossa visão de programação. O foco é envolver outras disciplinas artísticas, diferentes espaços e movimentos. Não lhe chamemos a edição zero, porque tem muito valor e riqueza de talento a ser apresentada para ser considerada como tal, mas sim uma edição-génese para muitas que estejam por vir. No decorrer do desenho do cartaz e das escolhas de salas, foram aparecendo ideias que não conseguimos concretizar mas que, garantidamente, queremos pôr em prática para a edição de 2024.