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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 11/02/2022

Uns dias melhores, outros piores, mas sempre com positividade.

Vado Más Ki Ás: “A primeira música que eu fiz foi para o meu irmão, quando ele faleceu. Desde então que a caneta é a minha terapeuta”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 11/02/2022

O rap crioulo tem gerado algumas super-estrelas, à escala portuguesa, nos últimos anos. Uma das grandes figuras desse grupo é Vado Más Ki Ás, rapper que acaba de lançar o seu mais recente projecto com o selo da Sony Music Portugal, Rosas e Espinhos.

Depois de Vitórias & Privilégios (2019) e Processo (2021), o novo EP é o artista a falar “da mulher e da resistência da mulher”, mas também de amor próprio e de depressão. Encontrámos um MC em estado de graça nos escritórios da major, onde falámos com ele sobre os valores que trouxe desde o início e que lhe permitiram chegar onde está agora: o “topo dos topos”. Conversa franca, aberta e longa com um artista focado na positividade e determinado a ir tão longe quanto possível.



Onde é que nasceste?

Eu nasci em São Jorge de Arroios. Cresci no Bairro 6 de Maio.

O que é que recordas dessa infância? As tuas memórias são doces? Amargas?

Ambas. Tanto doces como amargas. Aprendi muitas coisas. Aprendi a ser a pessoa que sou hoje. Cresci num ambiente turbulento, num bairro, mas dentro de uma família saudável.

A turbulência acontecia lá fora porque dentro de casa tinhas harmonia, é isso?

Exactamente.

Como é que descreves essa infância dentro de portas?

Dentro de casa havia muita educação. A minha mãe é uma mulher muito guerreira. Batalhou esses anos todos. Morreu, infelizmente, com 55 anos. Tinha eu 13 anos na altura. Tive uma infância muito próxima da minha família, mas afastei-me na adolescência, depois da morte dos meus entes queridos, a minha mãe e o meu irmão mais velho. Esse foi o momento mais difícil da minha vida. Na altura era uma criança e precisava de apoio, de ajuda, de uma família. Posso dizer-te que esse foi o momento mais amargo da minha vida.

Depois dessas perdas, tiveste algum tipo de amparo? A escola ou a rua ajudaram-te de alguma maneira ou tiveste de fazer por ti?

Sou grato à minha madrinha. Agradeço-lhe muito pela educação e pelo apoio que ela me deu na altura. Eu precisava de uma pessoa para cuidar de mim. Os meus irmãos já tinham a vida deles, eram crescidos. Um dos meus irmãos vive em França. O outro vive aqui mas nós nunca tivemos… Eu não cresci com ele dentro de casa. Ele já tem 40 anos. Depois da perda da minha mãe ainda vivi com a minha madrinha e aos 17 comecei a viver sozinho, novamente na casa da minha mãe, no Bairro 6 de Maio. Daí fiz o meu percurso até aqui.

E a rua também te ensinou alguma coisa?

A rua ensinou-me muita coisa. Tanto o bom como o mau. Na rua também aprendi que tenho amigos verdadeiros, para a vida. Os Más Ki Ás foi a família que encontrei na rua. Eles são os meus irmãos mais velhos. Acompanharam-me muito. Deram-me apoio familiar, de irmãos, na altura em que eu precisava. Eu via-os como um exemplo. São pessoas com vontade de fazer arte e que lutam por ela. Más Ki Ás foi a família que me recrutou na rua.

Como é que eras na escola? Tu hoje és um homem das palavras. Tinhas alguma área que te atraísse mais?

Na escola era bom aluno e gostava muito de inglês. Também gostava muito de informática e tirei um curso nessa área na Casa Pia, em Lisboa. Eu não fiz o secundário. Só tenho o 9º ano. Apesar de ser bom aluno, tinha algumas falhas, que vinham dessa minha experiência familiar. Eu não conseguia concentrar-me nas matérias e escrevia músicas durante as aulas. Eram o meu refúgio. Os professores percebiam que eu precisava dessa fuga, que precisava de apanhar outros ares para voltar a brilhar. A música foi a minha terapia. Conseguia desabafar na música coisas sobre as quais eu não falava. Isso deixou-me mais leve.

Se abríssemos agora os teus cadernos da escola, também encontraríamos lá rimas além dos apontamentos das matérias das aulas?

Exactamente. Eu comecei a rimar desde os meus 11 anos. A primeira música que eu fiz foi para o meu irmão, quando ele faleceu. Desde então que a caneta é a minha terapeuta.

Essa primeira letra chegou a ser gravada? Lembras-te de algumas das linhas que tinhas escrito?

Chegou a ser gravada mas não tenho as linhas presentes. Era criança. Foi a minha primeira experiência com uma letra. Depois de a gravar a música, não a conseguia ouvir. Aquilo era só algo que eu precisava de desabafar. Há vários temas meus — como o “Mãe” — que eu não consigo ouvir com frequência hoje em dia. Eu sinto esses temas. Eles tocam-me e fazem-me chorar. Sinto aquela dor da saudade e da perda.

Chegaste a mostrar alguma dessas rimas aos professores que tinhas na altura?

Muitos dos meus professores sabiam que eu cantava. Eles deixavam-me à vontade na sala. Às vezes também para eu não estar a perturbar. Nós éramos uma turma rebelde. Eu, para não perturbar, sentava numa cadeira à parte e escrevia as minhas músicas.

Nas escolas onde tu andaste, havia aqueles espectáculos em que os alunos subiam ao palco para apresentar alguma coisa?

Havia. E eu cheguei a participar em alguns. Nos da Casa Pia participei uma vez enquanto ainda lá estava a estudar e outra já quando a minha vida já era só fazer música, em que fui convidado a cantar na escola. Foi um sucesso [risos].

Já aconteceu algum dos professores que se cruzaram contigo na tua adolescência ter vindo falar contigo, mais recentemente, sobre o teu percurso na música? Já alguém manifestou o seu orgulho em relação ao teu sucesso?

Por acaso, não. Mas outras pessoas já o fizeram.

A vida no bairro — e o “bairro” aqui é uma metáfora para o círculo dentro do qual cada um de nós cresce — pode ter essa característica de bolha protectora. Como é que foram as tuas primeiras aventuras para lá do bairro? Quando é que tu começaste a ver como era a vida fora daquele ambiente em que cresceste?

Eu sempre vi o exterior do bairro como uma aventura, uma descoberta, uma nova forma de aprender e adquirir conhecimento. Sair do bairro é ganhar conhecimento.

Sair do bairro podia ser desconfortável, no início?

Para mim, nunca foi. Sempre foi normal sair e lidar com outras pessoas. Já no bairro eu lidava com diferentes tipos de pessoas. Em casa, tive uma educação rígida e exemplar, baseada no respeito e no amor para com os outros. Eu via isso na forma como a minha mãe falava com as pessoas. Via isso na forma como ela lidava, amava e respeitava as outras pessoas. O exemplo da minha mãe está muito presente.

Essa é a forma como tu aprendeste a lidar com as outras pessoas. E as outras pessoas, como é que elas lidavam contigo?

As pessoas tratam-me da mesma forma como eu lido com elas.

Dás respeito, recebes respeito.

Exactamente. Quando se tem muita positividade, recebe-se muita positividade. Aprendi isso no bairro. Quando existe muita negatividade à volta, nós vamos sempre parar à negatividade. Das drogas ao álcool, o crime, a violência: tudo isso é negativo. Eu aprendi que, mesmo dentro de um ambiente negativo, tenho de ser positivo. Se for preciso, tenho de fazer 10 vezes mais. Assim sou bem visto e consigo ser aceite, não apenas dentro do bairro mas também fora dele. Temos de ter essa ética e essa postura.

Sempre soubeste que era a música a tua direcção?

Não. Antes da música era piloto de motas. Fazia corridas de motas. Tinha o Miguel Oliveira e o Ivo Lopes como colegas em Mini GP, na altura. Em 2004 eu já fazia corridas. Autódromo do Estoril, até Espanha.

Tinhas o quê, uns 10 anos?

Tinha seis. Comecei bué cedo. Saí de lá com 11, quando o meu irmão morreu.

Porque é que essa via não teve continuação?

Não continuou mesmo por causa da falta desse apoio familiar.

Era esse irmão que perdeste quem mais te empurrava para isso?

Não, não. Esse era o meu irmão do meio. Foi ele quem me deu essa possibilidade de ir fazer corridas e patrocinava tudo. Depois, aconteceu um desastre na vida dele. Entre outros desastres na nossa família, como a perda de pessoas que a gente amava muito. Tive de escolher outra posição. Essa posição foi a música.

Porque te permitia canalizar aquilo que sentias depois dessas perdas?

Foi a minha terapia. Eu tive apoio psicológico durante cinco anos. Depois disso foi mesmo a música. Eu meti na minha cabeça que ia ser a música e que ia fazer tudo, desse ou não desse. Porque me fazia bem.

Há pouco falaste no teu irmão que foi para França. Alguma vez foste visitá-lo? Imaginaste que a tua vida noutro país poderia ter sido um bocadinho diferente?

Pensei nisso. Mas a minha forma de lidar com as coisas… O meu percurso na adolescência, eu fi-lo um pouco sozinho. Sempre continuei a fazer a minha vida. Aos 17 morava sozinho. Aos 19 tive a minha filha. Aos 20 estava a trabalhar na Telepizza. Aos 21 tive a minha segunda filha. Aos 22 já estava a trabalhar na Domino’s. Aos 23 ainda estava a trabalhar. Foi aos 24 que eu parei. A partir daí foi só música, música, música. E a coisa explodiu. Continuei a fazer mais música, a receber dinheiro da música, a alimentar as minha filhas da música, sustentar a minha família da música e da minha arte. Eu tive um percurso diferente. Os meus irmãos fazem cada um a vida deles. Eu fui visitar o meu irmão a França. Uma vez até tive lá show e fiz-lhe aquela visita, normal. Mas continuo sempre aqui.

Vamos agora focar-nos na música, que é a parte que mais interessa. Tu nasceste em ’95. O primeiro álbum de hip hop tuga é de ’94. Quais foram as figuras que te inspiraram ao longo do teu crescimento?

Quando saía da escola, por volta do 4º ou do 5º ano, já consumia MTV em casa. Na altura a minha mãe meteu a TV Cabo e eu ficava lá, viciado, a ver as músicas americanas. Mas as minhas influências vêm mesmo do meu bairro. É Más Ki Ás. Eu cresci a ouvi-los e inspirei-me muito neles, no Babydog e no Niggaz Fuzz. Eles eram os meus ídolos, desde criança. Apanhei essa força porque, na altura, o Niggaz Fuzz fez uma música para o bairro e para as pessoas que tinham falecido. Era música de peace e de love, de harmonia, mas também garra e esperança. Essa música foi uma daquelas que me inspiraram muito e continua a ser o hino da Más Ki Ás. O nome da música é “Mamã Querida”. Quando ouço essa música, lembro a minha infância, as minhas vivências. Vem de onde eu vim. Sinto que aquela é a minha história. Então, as minhas inspirações foram mesmo eles, os Más Ki Ás.

É muito curioso. Quando lemos sobre rap americano, por vezes encontramos referências a esse tipo de músicas, que são clássicos dentro de bairros mas que mais ninguém, no resto do mundo, ouviu. Representam algo gigante dentro daquela comunidade. Esse sentido de comunidade é uma coisa que nós por vezes nem temos noção da força que tem, porque é essa comunidade que empurra para cima.

Exactamente. Isso faz parte da cultura do hip hop. Cada cassete, cada música, cada instrumento tem a sua sinfonia e a sua qualidade.

Falaste em cassete. Era assim que a música circulava dentro do bairro? Que formatos é que tu usavas?

Na altura era o CD. Houve um dia em que eu levei 100 CDs para casa do Niggaz Fuzz — eu tinha uns 10 anos — para ele fazer 100 cópias. Eu levei-as para a escola e ofereci aos meus amigos, para cantarmos as músicas. Foi também daí que veio a minha inspiração para ser cantor.



Hoje em dia falamos tanto em fenómenos virais. Naquela altura, o viral acontecia nos recreios das escolas.

E nos bairros. Na altura, o meu primo tinha um café lá no bairro. Eu ia para lá, metia a música a tocar no café e toda a gente ficava a ouvir a música, eu ficava a cantar. Havia essa vontade de fazer com que o pessoal do meu bairro, os meus ídolos, me conhecessem. Eles já cantavam as coisas do bairro e da nossa vida. Eu tinha a vontade de fazer com que eles me conhecessem antes de eu fazer parte da família. Hoje faço parte da família e estamos a carregar o mesmo legado. Vem da cultura do hip hop.

Indo agora ao encontro do teu novo projecto: Rosas e Espinhos. Esta é uma dualidade que tu já exploravas no Vitórias & Privilégios. Cada face tem um reverso, não é?

O Rosas e Espinhos sou eu a falar mais sobre a parte feminina, mas também falo da parte masculina, porque é a minha vida. É a vida de um homem que passa por certas relações de rosas e espinhos.

As Rosas são as filhas?

Exactamente. Os Espinhos são os obstáculos. Sou eu a percorrer o trilho e a deparar-me com as dificuldades que temos de ultrapassar. Há certas coisas que temos de fazer, mesmo que estejamos a morrer. As Rosas representam o bem, os Espinhos a dificuldade. Rosas são o conforto, o amor, representam o que é lindo. Os Espinhos são as dificuldades, é a resistência, é a luta e a garra. Falo da mulher e da resistência da mulher. E não há uma coisa sem a outra: onde tem o bem, tem mal. Umas vezes o bem vem pelo mal, outras o mal vem pelo bem. Eu fala um bocado sobre essas duas coisas.

Escolheres o “Super Star” para primeiro single foi algo que me deixou curioso. É um som em que exploras uma cadência diferentes daquelas a que nos foste habituando. O que é que te inspirou a chegar a essa nova vibe?

O “Super Star” é a super estrelas. Aquela estrela que brilha muito, que não tem medo e vai em frente. É uma estrela capaz. Eu falo disso na música, que um homem não enche muito o peito, um homem respeita. Somos as super stars. Aquele pessoal que viaja por Barcelona, Madrid… Somos essas super stars. Não temos medo de ir para o trilho. No trilho ainda estamos a brilhar. Tive de dar esse tema primeiro para as pessoas ficarem “wow! Não tem nada a ver com rosas e espinhos mas tem tudo a ver.”

Isso tudo ao nível da letra. E que sonoridade é esta que exploras?

É uma vibe diferente, uma cadência diferente. É uma métrica que não é igual às outras métricas que eu já usei. Tentei dar uma vibe diferente. Uma aura diferente. Puxar também pelo estilo que se ouve por aqui, aquela nova febre do afro com o trap e o drill. Trouxe um bocado dessa mistura.

Quando estás a escolher o material com o qual vais trabalhar — e podes dar exemplos do Rosas e Espinhos — o que é que o beat tem de ter para tu sentires, “este é meu”? O que é que te agarra mais numa música?

Para mim, um beat tem de ter ritmo e melodia. Depois, tem a ver com a forma como o “designer” fez o beat. Por vezes, para mim, o “design” do beat tem mais importância do que um bom kick ou um bom snare. A forma do beat e a mestria que ele tem é que me puxam para fazer a música.

E tu crias a letras e só depois é que vais à procura do beat ou é o próprio beat que te puxa a escrever?

É o próprio beat que me vai puxar a fazer aquela letra. Vou ouvir o beat, sentir a nostalgia do beat e vou entrar dentro da nostalgia do beat. Se o beat não mostrar nostalgia ou não me conseguir fazer ir ao encontro dessa nostalgia, fica mais difícil cantar naquele beat. Tenho de escolher outro beat.

A tua vida na estrada tem sido muito agitada.

É verdade. Foram quatro meses muito agitados.

Tu gostas dessa parte da carreira?

Eu amo essa parte. É a parte que me deixa mais no pico da felicidade, o estar em palco.

Nós temos visto todos as tuas redes e tu tens andado a viajar bastante — Estados Unidos, França, Suíça, Luxemburgo, Londres… O que é que tu tens sentido ao ir ao encontro dessas comunidades?

Vou fazer-te um resumo daquilo que aconteceu — e que ainda está a acontecer — durante a minha caminhada na estrada. É tudo luz divina. Tudo vem de forma natural. Daí eu falar de Rosas e Espinhos: tudo tem o seu sacrifício, para que tu possas ver o brilho. Para a rosa crescer, tens de a semear bem e tens de lhe dar água, sol, carinho. Uma rosa sem a água e sem a luz não vai crescer. Isso reflecte-se na nossa carreira e na forma como nos pregamos a fé. A minha primeira mixtape foi a Longa Caminhada, porque naquela altura pensei “ainda tenho uma longa caminhada por percorrer e por mais voltas que eu dê ao mundo nunca vai ser suficiente”. Vai sempre existir algo que eu vou querer descobrir. Eu vou conseguir o mundo e depois vou querer a Lua, Neptuno, o Sol… Vou querer chegar ao infinito com a música. Do Longa Caminhada chego ao Lições da Vida. Depois do Lições da Vida, Vitórias & Privilégios. A seguir o Processo — tudo tem o seu processo — até chegar ao Rosas e Espinhos. É como nos concertos: o meu primeiro concerto foi por 150 euros, a 10 minutos de minha casa; hoje já consigo fazer 1000 euros e vou tocar a milhas de casa. Isso é incrível. É a benção de Deus e é a benção da música.

Algum desses países que visitaste te fez pensar, “se calhar estou no país errado”? Depois de já teres visto tantos locais diferentes, nunca pensaste em montar a tua base noutro sítio?

Não. Nunca pensaria isso, porque a minha base está aqui, em Portugal. Eu cresci aqui. É aqui que eu tenho o suporte todo para conseguir mostrar a esse mundo fora que nós temos boas bases em Portugal. Portugal dá-nos uma melhor base para fazer as coisas acontecer. Dá-me as ferramentas que eu preciso para trabalhar. E eu quero mostrar ao mundo o trabalho que conseguimos alcançar com estas nossas ferramentas. Sejam muitas ou poucas, com mais ou menos condições: nós temos o potencial para chegar e fazer acontecer. Esse sempre foi o nosso pensamento, dentro de Más Ki Ás. A nossa força vai fazer-nos chegar lá. O nosso nome vai chegar lá. Quando eu vou à Guiné, a Cabo Verde, aos Estados Unidos — tudo sítios onde eu achava que nunca ia chegar — sinto… “Eu cheguei aqui. É possível!”

A ideia de puxar pelo amor próprio que este disco carrega é resultante dessa tal terapia que tiveste e sobre a qual falaste há bocado? De teres de te conhecer a ti próprio primeiro, de reconheceres as qualidades que tens e que te vão ajudar no futuro?

É isso. É sobre amor próprio. Ama-te a ti mesmo. Tu tens de ter amor próprio. Tens de te amar a ti e tens que saber amar o próximo. Tens de deixar de seguir o mais banal. Por vezes, se calhar, seguimos sugestões que nos dão mas que nem vão ao encontro da nossa pessoa. Coisa que não representam a nossa face. Temos de não nos deixarmos influenciar por certas coisas que não fazem sentido para nós. No bairro, eu podia seguir muitas coisas que para mim não faziam sentido. Eu ia sair mal e se calhar nem ia conseguir estar envolvido na música. É preciso amor próprio para tomarmos as nossas próprias decisões. Eu tenho de ser eu e não posso deixar as pessoas interferirem no meu caminho. Isso é amor próprio.

Quem te segue sabe que o teu respeito pelas mulheres é gigante e o “Mudjer Africana” é um sinal disso. Essa “receita” volta a ser importante para este novo disco, não é?

Eu quis relatar aquilo que poucas pessoas fazem. No rap, em Portugal, são poucos os artistas que vais ouvir a falar da mulher com respeito. Eu cresci com uma mulher em casa que me deu educação. Eu vi a força da mulher. Vi-lhe a resistência, a luta. Vi o desagrado, vi a depressão. Vi a doença… Tudo isso me fez escrever para que a mulher se possa sentir livre e forte. Para que não tenha nenhum complexo ou sinta algum tipo de preconceito. Eu vi muita depressão nas mulheres durante a quarentena. Os homens, se calhar, têm mais força e adaptam-se melhor às coisas difíceis. Por outro lado, as mulheres aguentam mais do que os homens. Tive de relatar isso no Rosas e Espinhos. Tenho temas no disco, como o “Segredo”, em que falo da depressão da mulher, da resistência da mulher, da superação da mulher… Também falo da superação do homem, quando está em depressão. Acho que esses temas são importantes. Nós, enquanto rappers, temos de relatar mais as coisas que acontecem ao nosso redor e ao redor das mulheres, que são quem nos dá forças. Muitas vezes nós vamos buscar a nossa força na mulher para podermos fazer aquilo que precisamos de fazer. Eu não quero apontar o dedo, até porque não sou ninguém para julgar, mas vejo muitos rappers a falar mal da mulher e a dirigirem-se à mulher de forma muita negativa. Eu quis mesmo trazer esse tema, para ter o respeito e a consideração da mulher.

Tu hoje sentes que, quando escreves, estás a escrever para as mulheres que as tuas filhas vão ser também no futuro? Estás a mandar recados para o futuro?

Exactamente. Eu estou a mandar recados para elas, para que elas sejam as melhores mulheres possíveis, tal como a minha mãe foi. Mulheres de respeito, de resistência, educadas. Todas as mulheres têm de sentir essa força dentro delas. Posso dizer-te que sou o primeiro no mundo inteiro a admitir que sem mulheres não somos nada.

Estamos aqui sentados na casa da Sony por causa daquele que é o teu segundo projecto editado por eles. Como é que tem sido navegar no universo da música com este “colchão de ar” por baixo?

Eu vi a malta do rap crioulo e pessoal dos bairros a sofrer. Muitos deles, se calhar, nem querem assinar com uma label. Não querem fazer parte. Para mim, isto é uma vitória, um orgulho. Isto é chegar ao topo dos topos. É eu sentir que o meu trabalho está a ser valorizado.

Houve ali um momento — e o Rimas e Batidas assinalou isso mesmo — em que sentimos que o crioulo podia ser quase uma espécie de novo esperanto. O crioulo é a língua do bairro e Portugal, até uma certa altura, não a estava a conseguir entender. De repente, tornou-se numa força cultural incrível. Tu sonhavas que algum dia isto poderia acontecer?

Imaginava e não imaginava. Imaginava porque sabia era algo que tinha muita força. As pessoas só precisavam de compreender e, depois, sentir. Quando as pessoas percebem melhor a coisa, vão entender melhor a história e os seu significado. Eu comecei a misturar o português com o crioulo para que as pessoas percebessem melhor o significado do meu crioulo. E quando as coisas são ditas de forma explícita, sensível e saudável, as pessoas percebem. Se expomos as coisas de forma muito rude, as pessoas não vão perceber e fica mais difícil fazer com que elas queiram sequer perceber. Tive de fazer uma jogada, que foi essa transformação para o crioulo ser percebido e ser aceite da melhor forma. Com isso senti uma explosão enorme. As pessoas começaram a perceber-me. Não só comigo mas também com outros, como o Julinho KSD, o Rafa G, o Apollo G, o Ghoya, o Baby Dog, o Sebeyks, os Nigga Poison, TWA, o Loreta, o Né Jah, o Landim… Todos acrescentaram o seu ponto para que o crioulo pudesse ser visto e aceite. Nós todos fizemos esse trabalho.

Quando pensamos nos Estados Unidos, eles têm, por exemplo, o espanhol no seu programa escolar, não porque seja uma das línguas oficiais do país mas sim por causa das muitas comunidades latinas que por lá se instalaram. Consegues imaginar um Portugal em que, um dia, o crioulo possa ser ensinado nas escolas públicas?

Eu acho que sim. Ainda tenho essa esperança, como o Dino D’Santiago. O Dino é uma fonte de inspiração. A forma como ele leva o crioulo para a televisão, para o mainstream, tal como nós também estamos a levar. Eu sinto que isso, um dia, será possível.

Isso ajudaria a mudar o país na dificuldade que tem em lidar com as questões do nosso passado? Achas que este rap crioulo pode ser uma ferramenta de transformação de mentalidades e de evolução do nosso país?

Vai ser! Eu sou um dos que vai fazer muita força para que isso aconteça. Com o pouco ou muito que eu tenha, vou fazer a minha parte. E sei que muitos dos meus colegas que estão a fazer música também vão lutar para que isso possa acontecer futuramente. Nós temos de pensar no agora mas sem esquecer que o futuro está muito próximo. Às vezes as coisas até já estão a acontecer e nós apenas não estamos a conseguir notar. Até porque eu vejo, nas várias comunidades que existem pelos diferentes bairros, muitos portugueses que já conseguem perceber e até falar crioulo. Há gente que consegue dialogar comigo e sentir a minha emoção. Nós estamos a mudar isso tudo. Não interessa se é num dia, num mês ou num ano. A cada dia que passa há uma mudança.

Estamos a viver este período politicamente mais conturbado com eleições à porta. Há quem diga que todos os nossos gestos são políticos. Até mesmo o estar calado pode ser interpretado como uma atitude política. Sentes que a tua música também tem esse vector político?

Tem. Isso parte muito da nossa mensagem. Essa parte é mesmo muito importante. Porque é aí que começa a mudança. A mudança começa na forma de estar e na forma de como as pessoas se sentem seguras, a aprender e a adquirir conhecimento. Quem escreve vai querer sempre mudar algo. Só que é difícil, porque temos de ser todos juntos. A união faz a força. Quando tivermos a união, vamos conseguir. Se formos trabalhar individualmente, vai ser mais difícil de alcançar isso e vai demorar mais tempo. O egoísmo e a forma como cada um vê as coisas à sua maneira são factores que provocam muito choque. Mas quando as pessoas trabalham juntas e têm esse espírito de mudança, acho que a música consegue ter esse efeito de mudar as coisas de uma forma política.

Há uns anos, no Parlamento, a propósito das gravuras de Foz Côa, citou-se uma canção de rap — “As gravuras não sabem nadar”, inspirado nos Black Company. Imaginas, um dia, um deputado ou deputada dirigirem-se ao país com uma frase em crioulo?

Isso seria lindo mas ia depender muito da frase. Tinha de ser uma frase de esperança, de reconciliação, harmonia, amor e mudança. Acho que fazia muito sentido, porque ia ajudar muitos jovens a acreditarem que é possível e levar muitos adultos a querer contribuir para fazer a diferença nem que fosse em coisas mínimas.

Relativamente ao resto do ano, que mais planos tens para 2022?

As expectativas são boas. Tenho recebido algumas propostas boas e inéditas. Propostas que vão mudar a nossa caminhada e vão fazer a nossa caminhada crescer mais. Todos os dias crescem planos na nossa cabeça. Nós temos não só de ter os planos como temos de os concretizar. Essa é a nossa função: levar a coisa alem do plano e coloca-la em prática. É fazer acontecer. No ano passado, durante a quarentena, decidi fazer o meu EP Processo. Senti que o plano estava na mesa e eu tive de concretizar esse plano. Graças a Deus, estamos a correr para outro plano, que é o plano do Rosas e Espinhos. É um plano que eu quero muito que dê certo e nós estamos a fazer tudo para dar certo. Estamos a investir para fazer vídeos. Com o apoio da Sony na distribuição e no licenciamento, acho que vamos ter uma visibilidade maior no mercado. Tudo está a ser feito para que o nosso trabalho tenha sucesso, basicamente [risos]. Sinto orgulho. Sinto-me grato por acordar todos os dias e o meu foco ser a música. É família e música. Se eu não estiver a fazer música, estou com a família. Se eu não estiver com a família, estou a fazer música.

Esses planos alastram-se para cima do palco? Estás a pensar apresentar-te ao vivo de alguma maneira diferente?

A esse nível, quero agora preparar uma banda, para tornar o meu espectáculo diferente. Isso vai dar-nos mais calibre na hora de estar em palco à frente das pessoas que nos querem ver. Principalmente em Portugal. Lá fora já temos aquele público, já fiz essa tour e mesmo antes disso eu já tinha andado mais vezes fora, por países na Europa e África. Não foi a primeira vez que nós fizemos isso. Eu já tenho essa experiência. Tenho ganho muita experiência de palco. O estar, o actuar, as condições em palco, a forma de lidar com o público, a mensagem que eu quero dizer… Eu sei qual é o formato do meu show. Já fizemos algumas coisas até aqui e eu agora quero conquistar a outra parte, como os festivais. Agora é lançar este projecto e rezar para que tudo dê certo.

Para terminar: nós estamos a 26 de Janeiro de 2022. Como é que tu imaginas que vai estar o Vado precisamente neste dia mas em 2032?

Daqui a 10 anos? Vejo-me a cuidar das minhas filhas. Vejo-me na música. Vejo-me com contratos gigantes, nacionais e mundiais. Vejo um homem com mais maturidade e com maior conhecimento. Um homem com uma empresa. É isso que eu vejo no Osvaldo Miguel Sanches Landim.


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