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Publicado a: 18/09/2015

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Globalização má: as mesmas lojas, os mesmos toldos pretos e os mesmos logos a inundarem ruas de diferentes cidades em diferentes continentes obrigando todos a consumir o mesmo, a provar o mesmo, e, desejavelmente – pelo menos para as grandes corporações – a pensar o mesmo.

Globalização boa: as mesmas ferramentas, os mesmos controladores MIDI e as mesmas maçãs luminosas a inundarem quartos de diferentes cidades em diferentes continentes sugerindo que todos podemos ouvir algo de diferente, dançar algo de diferente e , desejavelmente – pelo menos para as pequenas editoras – sentirmos o mesmo.

Como uma pedra arremessada com força para o centro de um lago, também a revolução hip hop/house dos anos 80 não tem parado de criar círculos cada vez mais abrangentes no planeta electrónico. Ao contrário do que pretendem as McDonald’s deste mundo, no entanto, essa revolução não nos pôs todos a comer o mesmo: o Big Mac pode saber igual em qualquer ponto do mundo, mas Halloween, Marfox, ou Sam The Kid são singulares apesar de usarem as mesmas ferramentas que MF Doom, Diplo ou Kanye West. Difere a língua, difere o balanço e diferem as memórias que qualquer um deles convoca na hora de criar algo de novo com as tais ferramentas.

Peru Boom: Bass, Bleeps & Bumps from Peru’s Electronic Underground é o perfeito exemplo deste retrato desenhado nos dois parágrafos anteriores. A Tiger’s Milk começou, como de resto a Soundway, por investigar o passado do Peru com as compilações Peru Maravilloso: Vintage Latin, Tropical and Cumbia e ainda Peru Bravo: Funk, Soul and Psych from Peru’s Radical Decade (ambas de 2014). A arqueologia de vinil que tem injectado passado no presente e transformado a memória em património vivo graças à actividade de incríveis editoras como a já citada Soundway, mas também, Now Again, Light In The Attic ou, entre tantas outras, Finders Keepers, para citar alguns exemplos com abordagens muito diferentes a essa atitude de redescoberta, levou a Tiger’s Milk a traçar o mapa da identidade musical peruana. Esse gesto ecoava, precisamente, o que se passava nas cabines de DJ e nas pistas mais informadas do Peru, onde DJs e colectivos como os Dengue Dengue Dengue (que têm ligações à portuguesa Enchufada) faziam o que sempre se fez: usavam vinil da sua própria história para desenhar identidade no tecido musical erguido à custa de computadores, controladores MIDI, samplers. Martin Morales, um dos homens do leme da Tiger’s Milk, presenciou uma das festas organizadas pelos Dengue Dengue Dengue e não teve dificuldade em identificar no som essencialmente electrónico debitado nessas festas o mesmo pulsar que se desprende das tais clássicas rodelas de vinil: a mesma história, a mesma identidade, os mesmos padrões rítmicos, mas com outras ferramentas, com outros instrumentos.

E nesta extraordinária compilação, o trabalho dos já citados Dengue Dengue Dengue, mas também de Deltatron, Piraña Sound System, Rolovo ou Tribilín Sound curva-se perante o poder do baixo, pinta de néon as melodias, mas socorre-se dos padrões da cumbia e de outras sonoridades regionais para impor a festa, sempre com arranjos e ideias de produção que demonstram que estes criadores modernos tanto conhecem os sons vintage de Los Holys ou Los Texao, para citar dois nomes do passado mais funky do Peru, como as mais modernas estratégias do trap ou do footwork. “Sonido Chichero” de Chakruna é um bom exemplo: guitarra eléctrica ácida, samples de voz que incitam à dança em castelhano, sirenes globais, cadências locais e muito fumo. Festa a sério nesta rica cumbia que só podia ter sido criada no presente num quarto escondido de Lima. O som não tem nada a ver com o da Batida de Lisboa, mas não é preciso puxar muito pela imaginação para adivinhar os pontos de ligação entre ambas as histórias que conduziram até ao presente.

 

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