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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 15/01/2023

Só sobraram as cavilhas.

usof, Nayela e Nazar no Titanic Sur Mer: do céu à cova

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 15/01/2023

As boas memórias acumulam-se neste arranque de 2023. Ao chegarmos ao Titanic Sur Mer, na passada quinta-feira (12 de Janeiro), saltam desde logo à vista as remodelações da sala. Talvez agora menos espaçosa, mas sem dúvida muito mais acolhedora, com um som mais acutilante e um jogo de luzes bem catita, à imagem do seu criador. E o que dizer da nova linha de programação, que nos quis brindar com a estreia de Nazar em Lisboa? Bem, já lá iremos.

A fintar a típica despontualidade portuguesa, quisemos chegar com alguma margem para ter a certeza de que não perderíamos pitada da acção — e claro, para sorver a primeira com a calma de um mestre zen, aproveitando para contemplar o Tejo, a ponte que o atravessa e o Cristo Rei que nos acena do outro lado, uma regalia que poucas esplanadas têm. Antes que o frio se entranhasse por entre a roupa, o chamamento de usof puxava-nos de volta para dentro de portas. Atrás do DJ e produtor — mais conhecido por Rochinha entre os seus pares da Rotten \ Fresh — uma projecção de vídeo captava especial atenção da nossa parte, tal era a forma como a imagem em movimento sobre a tela se casava com a variação dos sons que saiam dos speakers.

E se lá fora o céu desimpedido nos permitia ver as estrelas, a música fazia parecer que as nuvens se tinham acumulado todas debaixo do tecto do Titanic. Por vezes celestiais, noutras pareciam estar carregadinhas de chuva, com um ou outro relâmpago pelo meio. Havia texturas para todos os gostos e, em certas alturas, parecíamos estar prestes a chegar a um meltdown com uma batida qualquer. Nunca passou da ameaça e não cremos que alguém se tenha importado com isso, até porque não há lei que obrigue à presença de bombo e tarola em tudo aquilo que classificamos como sendo música.

Se achámos que estávamos quase sozinhos naquela festa, o intervalo entre actuações fez-nos perceber que já havia bastante mais gente presente do lado de fora do edifício, misturando conversas com álcool, tabaco e ganza num compasso que era de espera por Nayela. Quando a cantora subiu ao palco, quase todos quiseram presenciar o momento.

Com mira de sniper, matou-nos só com o olhar na entrada, mas ressuscitou-nos de seguida mal fez soltar as primeiras notas das cordas vocais. Apesar de munida de um computador, um sequenciador, um conjunto de pads e alguns efeitos, a artista de ascendência angolana e nascida na Bélgica focou-se essencialmente no único instrumento que é apenas seu. Do lado de cá, a expectativa era muita, embora só lhe conhecêssemos nem uma mão cheia de faixas. E escutámo-las todas: “469“, “Perda“, “Calor” (uma colaboração com Vanyfox para o quinto volume das SMS for Location) e “Nha Kodê” (interpretou também a parte de Dino D’Santiago na canção que integrou BADIU), algumas delas a dobrar, dada a força que vinha da plateia para que Nayela não abandonasse o palco sem um encore.

A actuação, porém, não se ficou pelos registos acima mencionados. A cantora e produtora mostrou ao seu público que o parco catálogo discográfico pessoal pode muito bem somar novas edições a qualquer momento, tendo em conta a quantidade de inéditos com que nos presenteou, sinónimo de que se mantém focada a cozinhar mais temas em estúdio. E aqui, Nayela joga em todas as frentes: há músicas cantadas em português, outras em francês (a língua com que aprendeu a expressar-se na Bélgica) ou até mesmo em crioulo (aqui influenciada pelo considerável trajecto que trilhou ao lado do autor de Mundo Nóbu). Entre canções, fez questão de nos oferecer algum contexto e de deixar algumas mensagens aos que ali se encontravam perante ela — a mais importante terá sido o incentivo que deu às mulheres artistas, usando o seu próprio exemplo para deixar claro que qualquer uma pode ser auto-suficiente durante o acto da criação.

Já na recta final desta sua passagem pelo Titanic, um ilustre fã, cujo nome até já surgiu aqui referido, rompia por entre os demais para se chegar bem à frente e filmá-la a cantar. A dar o exemplo, Dino D’Santiago mostrou que não basta cantar sobre esta “Nova Lisboa” para se estar eternamente num pedestal — é preciso presencia-la, vivê-la, fazer parte da engrenagem que a faz continuar a subir degraus e, acima de tudo, dar “sangue” aos que só agora estão a começar, esses cujos talentos terão um profundo impacto naquilo que será o futuro cultural desta nossa cidade menina e moça. E o r&b sofisticado de Nayela — que facilmente enquadramos nesse vibrante caldeirão sonoro pan-africano muito em voga e que vive debaixo do tecto que tem sido apontado como afropop — tem tudo para vir a ser uma peça fulcral naquilo que é o cancioneiro português.

Depois de termos estado com a cabeça no paraíso, descemos novamente à terra dos comuns mortais, pontos para enfrentar a electrónica de fusão criada pelo DJ e produtor que dá pelo nome de Nazar. A envergar um colete ao estilo bulletproof, o semblante do homem que se estava a estrear pela primeira vez na nossa capital desvanecia à medida que a luminosidade da sala caminhava para um registo de serviços mínimos. Musicalmente, os primeiros minutos foram de reconhecimento do território, quase como se andasse de catana em riste a desbravar a vegetação até encontrar um lugar seguro para pousar o seu arsenal e, a partir dali, começar a disparar em todos os sentidos.

Não foi preciso muito até que começasse a gritar palavras de ordem ao microfone, umas vezes em inglês, outras em português, fazendo lembrar aquilo que poderia ser o avistamento de um corpo inimigo em plena guerra civil angolana — “Xé! Se Controla! Fica calmo!” E bastava conhecermos apenas alguns dos títulos das faixas que já compilou para a Hyperdub — “Warning Shots“, “Airstrike“, “Arms Deal“, “FIM-92 Stinger“, “UN Sanctions“… — para termos uma ideia daquilo que nos esperava: um clima bélico, desconcertante e intimidador mascarado de música de dança de cariz cerebral.

A passagem entre os diferentes temas colocava-nos no meio de um fogo cruzado e era obrigatório darmos movimento ao corpo para fugir à chuva de pólvora sob a forma de glitches auditivos. Da trincheira que tinha montada atrás dos decks e do microfone, Nazar lançava granadas sob a forma de synths. Já o chão da pista parecia estar minado e era preciso ter cuidado com o local que se escolhia para meter os pés, dando origem a passos de dança mais ousados e que iam ao encontro do kuduro abrasivo do homem que é irmão de Nayela.

No final, só sobraram as cavilhas e coube a DJ Nervoso, um dos pais desta porra toda, sepultar os cadáveres e recuperar os que tinham ficado feridos em acção. Infelizmente, a hora tardia não ajudava nos compromissos que tínhamos para o dia seguinte. Ainda meio coxos, vimo-nos forçados a abandonar o regimento e deixar que fossem os mais fortes a assumir o resto da batalha.


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