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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 05/08/2019

A dupla galesa actua esta semana no NEOPOP.

Underworld: nascidos para escorregar sob um hino

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 05/08/2019

Para muitos, é praticamente impossível desassociar os Underworld (parelha de Gales responsável por uma extensa discografia no ramo do house, breakbeat e techno que se prolonga por mais de 30 anos) do duro retrato dos filhos da droga escoceses de Danny Boyle, sob a forma de Trainspotting, filme de culto lançado em 1996 que conta com uma paisagem sónica escolhida a dedo e da qual fazem parte criações de Karl Hyde e Rick Smith. É dado, inclusive, um pódio especial ao imediatamente reconhecível “Born Slippy”, single do ano anterior, que serve de moldura para a estranhamente esperançosa cena final: como esquecer Renton, interpretado até ao tutano por um jovem Ewan McGregor, a levantar-se da cama, calçar os sapatos e a trair e a abandonar os companheiros ao som dos melancólicos sintetizadores e da voz monocórdica e autoritária de Karl Hyde a começar a perder-se no ritmo crescente dos baixos e tarolas? “The truth is I’m a bad person. But that’s going to change. […] I’m going to be just like you”. Com um sorriso parvo que espelha fé convicta que raramente acaba bem, despedimo-nos de Renton sem saber muito bem o que dele achar. Mas os Underworld e a sua “Born Slippy” não nos saem da memória, e entrelaçam-se para sempre na recordação da agridoce despedida.

Podia-se só escrever sobre a “Born Slippy”, faixa explosiva que apresentou Karl Hyde e Rick Smith, que juntos, mais ou menos acompanhados, fazem Underworld acontecer ao planeta quase inteiro. E que a ela o planeta quase inteiro se agarrou como a única resma de conhecimento que os liga à banda de Gales. É um tema gigante dentro do qual encontramos uma epopeia lírica e sónica sob a qual nos poderíamos desdobrar num role de dicionário de adjectivos e considerações, daquelas músicas-hino que reconhecemos ao primeiro microssegundo de som. Há factóides que cheguem, certamente: originalmente, foi lançada enquanto Lado B de um single também ele baptizado “Born Slippy” (a versão que conhecemos chama-se, na verdade, “Born Slippy .NUXX”) completamente diferente — um tema bem mais agressivo, no qual o jogo rítmico frenético ofusca qualquer tentativa de narrativa emocional — que os fãs acérrimos dizem da boca para fora ser “melhor do que a outra versão”. Em 2004, quase dez anos após o seu lançamento original, foi votada a quarta melhor faixa de música de dança pela revista Mixmag. Em 2014, encontrava-se dentro das 300 melhores canções de sempre, segundo a NME. Andrew Gaerig, da Pitchfork, nomeou-a como a trigésima primeira melhor música da década de 90, perdendo-se em elogios a Rick Smith e Karl Hyde, que, segundo o jornalista, teriam aberto uma caixinha de pandora musical: uma canção que continha toda a fúria animalesca do techno, apresentada com uma postura rock‘n’roll, uma espécie de cruzamento raro que originara uma espécie exótica fascinante. “Born Slippy” foi um êxito e continua a sê-lo todas as formas que uma canção o pode ser, e teria certamente sobrevivido sem o auxílio de Trainspotting: mas seria difícil imaginar um filme igual sem ela.



Antes de desvendarem a fórmula que encantou a crítica e o público, a mistura sedutora entre dois mundos que, afinal, complementam-se mais do que se contrariam, os Underworld tiveram de descobrir por que lado precisavam de começar. Surpreendentemente, olhando para o resto do seu catálogo, que se encontra maioritariamente confinado às (largas) paredes do mundo da música electrónica, Hyde e Smith iniciaram uma parceria musical sob os signos do new-wave e synth pop com um projecto musical bastante diferente chamado Freur. Treparam timidamente o topo das tabelas britânicas com um simpático single, um orgasmo de sintetizadores que apenas poderia ter sido cozinhado em 1983, “Doot Doot”, e o seu homónimo recebeu alguma atenção da crítica e do público. Mas Underworld começava a borbulhar, fruto das ideias mais ambiciosas de Hyde e Smith, dois rapazes de Gales que só queriam tocar nas estrelas. Mesmo antes de um segundo disco, Freur são repentinamente abortados a favor de uma nova direcção que não seria ainda a mais acertada — um som mais agressivamente pop, pontuado por baixos pujantes e guitarras orelhudas, sob um nome mais fácil de decorar: Underworld. É debaixo deste novo mantra à la Depeche Mode que lançam dos primeiros discos – Underneath the World, de 1988, e Get Us Out Of Here, de 1989. Uma banda de Gales novinha em folha, prestes a aquecer as discotecas com canções para dançar e cantar debaixo das luzes coloridas. As canções são boas e o dinheiro entra a pouco custo para os bolsos dos músicos, mas Hyde e Smith continuam a farejar uma mina de ouro que ainda não encontraram.

Darren Emerson foi essa mina de ouro. Apaixonado pelo distante mundo do hip hop, do outro lado do oceano, e pela arte do scratch e DJing desde adolescente, a figura completamente alienígena para Hyde e Smith, à época, enterrados no mundo das canções escritas ao teclado à guitarra, foi ele que inspirou uma revolução no conjunto galês no virar da década. Quando Dubnobasswithmyheadman foi lançado, em 1994, ouvíamos uns Underworld completamente diferentes: mais demorados a chegar ao final das músicas, que se arrastavam muitas vezes para lá dos sete minutos de duração, envoltos num paciente nevoeiro de ambiência focado não na chegada ao refrão de rádio mas na viagem da qual nem damos conta. Resumidamente, a era negra de Underworld, banda de new-wave prestes a ser esquecida pelas marés do tempo a favor de quem o faria melhor, havia terminado com a descoberta de um tipo de música novo que irritava os conservadores e delirava a juventude: a sua versão do techno, ou, pelo menos, uma interpretação ainda bebé e mansinha de um rebento que passariam o resto da carreira a criar e a ensinar.

De Dubnomasswithmyheadman até aqui, já lá foram oito discos, cada um deles batendo insistentemente na mesma fórmula que Hyde e Smith encontraram no álbum de 1994, com melhores ou piores efeitos, mas nunca chegando com a força do impacto inicial. Entretanto, Hyde e Smith foram ficando para sempre fiéis ao primeiro projecto que os juntou, enquanto os restantes membros da banda foram ficando pelo caminho, incluindo Darren Emerson, que abandonou oficialmente ainda antes do século XXI. O seu último álbum, Drift, será a conclusão de um ciclo de quase um ano com Drift Songs, reunindo os frutos de um esforço contínuo que reúne os resultados de um ano de música feita exaustivamente. É uma ideia que parte, segundo os próprios, de um olhar para trás, olhar esse que calculamos difícil, para um disco que já completou 20 primaveras e continua a ser a recordação mais forte que imprimiram na psique do público britânico e mundial. A outra é, claro, “Born Slippy”. O pugilismo com o sucesso tremendo é uma luta difícil e injusta. Mas Karl Hyde e Rick Smith já não têm idade para lutar em 2019: o mais fácil é aceitar e, acima de tudo, aproveitar. Foi “Born Slippy” que os fez amassar uma horda de fãs fiéis que ouvem cada disco que lançam com toda a atenção, que os permite viajar pelo mundo tocando essa e outras canções, que deixou o seu nome plantado nos lábios de qualquer DJ britânico nascido depois do seu lançamento, e que até os levou aos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012. “Born Slippy” é um hino, e os hinos só sobrevivem de uma maneira: cantam-se para sempre.


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