De 12 a 21 de julho, Edimburgo acolhe o festival de Jazz e Blues, um evento que, após o êxodo estudantil, devolve vitalidade à cidade que tanto inspirou Conan Doyle como Peter Higgs, semanas antes do frenético mês de agosto que se segue com o Festival Fringe. Com um cartaz recheado de propostas interessantes que abrangem desde o swing e dixieland às vertentes contemporâneas do jazz, as numerosas tonalidades do blues, e ainda um carnaval Mardi Gras, o EBJF24 realiza-se em alguns dos spots mais emblemáticos da cidade, como o The Jazz Bar, a George Square ou o St. Bride’s Center.
Houve várias propostas que gostaríamos de ter visto mas não conseguimos, como o trio de doom-jazz AKU!, os afrofuturistas Onipa, a funky queen Nik West, o titã Soweto Kinch, a emergente trombonista Anoushka “Noushy” Nanguy ou as várias bandas de jazz da Chequia que estiveram em destaque nesta edição. Ainda assim, tivemos a oportunidade de assistir a excelentes concertos de Theo Croker e do projeto The Unfurrowed Field, dos quais aqui ficam as reportagens.
[The Unfurrowed Field – Terça-feira, 16 de Julho de 2024]
Concerto numa spiegeltent — uma tenda de circo, entenda-se — promete desde logo uma dose generosa de acrobacias. E a atuação de The Unfurrowed Field, projeto que une o trio de Fergus McCreadie ao quarteto de cordas Manchester Collective, foi certamente manancial de variados contorcionismos estilísticos que aproximaram o jazz à música folk. Esta não é uma fusão inédita para McCreadie, cuja música é, ela mesma, uma interpretação jazzística contemporânea do folclore escocês: das suas melodias, harmonias, ritmos, atitudes e costumes. Atestam-no a tríade de álbuns que o músico radicado em Glasgow lançou nos últimos anos — Cairn (2021), Forest Floor (2022) e Stream (2024) —, que, além de esteticamente aprazível, demonstra que o casamento entre o jazz e a folk é também comercialmente viável: há em todas estas edições selo da Editon Records, uma das mais fortes etiquetas de jazz britânicas.
A expectativa, portanto, era que as composições de McCreadie fossem simplesmente expandidas por arranjos do Manchester Collective. Fórmula óbvia e de sucesso garantido, principalmente quando se joga em casa. A bonomia matricialmente plasmada nas composições do pianista, veiculadora de uma certa joie de vivre bucólica à qual é difícil resistir, teria sido um excelente leito afetivo para uma caminhada musical coletiva pelas verdejantes Highlands escocesas. Surpreendentemente — ou não, para quem já tivesse presenciado concertos deste projeto, que esteve em digressão em março deste ano — os The Unfurrowed Field revelaram-se muito mais do que mera reimaginação dos escritos de McCreadie feita em contexto de ensemble alargado.
Apesar das surpresas que estavam por vir, começou-se pela receita original: plateia lotada, som cristalino e uma banda energizada a tocar “Cairn”. O quarteto de cordas — formado pelos violinistas Rakhi Singh e Donald Grant, violista Simone van der Giessen e violoncelista Christian Elliot — acrescentou complexidade harmónica ao tema, revestindo-o com ornamentações e texturas que bosquejaram a paisagem impressionista feita de prados, lagos e montanhas evocada pela composição. O trio de McCreadie esteve sempre seguro: o contrabaixista David Bowden e o baterista Stephen Henderson acompanham o pianista na estrada já há alguns anos, e juntos formam um grupo fluído em que a função melódica não se limita a McCreadie — Henderson, por exemplo, já o concerto ia a meio, protagonizou um belíssimo solo improvisado que pode perfeitamente ser transcrito para pauta com clave, tal a afinação e perfeita relação harmónica entre as várias ressonâncias produzidas pelas peles dos timbalões.
Seguiram-se vários segmentos em que ora o trio, ora o quarteto assumiram a dianteira, com dinâmicas coletivas a surgirem, maioritariamente, nos momentos de transição. Além de temas retirados dos vários trabalhos de McCreadie, ouviram-se composições tradicionais escocesas, um original do violinista Grant, interpretações neoclássicas e improvisacionais inspiradas em música de Haydn, canções folk do húngaro György Kurtág, e composições retiradas dos cancioneiros dos tuvanos e da Sardenha, estas últimas escritas por Christian Manson, precisamente para quarteto de cordas.
E tudo foi sempre tocado com exímio cuidado pelo Manchester Collective, que frequentemente emulou instrumentos tradicionais — de vozes humanas a gaitas de foles — através de técnicas extensivas. Foi, de facto, uma boa surpresa esta faceta de exploração sónica e improvisacional que o coletivo amiúde revelou. Ficou porventura a faltar um entrelaçamento maior entre o trio e o quarteto na fase intermédia do concerto — nota-se que ainda é um projeto recente com espaço para fazer o repertório conjunto crescer. Talvez por isso mesmo, o grupo tenha guardado para o fim o melhor momento coletivo: uma suíte em três partes, escrita por McCreadie tendo por base composições suas, e por ele muito bem arranjada para quarteto de cordas, que rematou o concerto com ânimo e sumptuosidade. Impossível não sair dali optimista e de coração cheio. Afinal, não estamos aqui para apreciar a beleza das pequenas coisas? Wim Wenders, cough, cough. É mesmo para aí que estamos virados…
[Theo Croker – Quarta-feira, 17 de Julho de 2024]
As qualidades de Theo Croker enquanto trompetista, compositor e líder de banda já nos eram conhecidas. Em 2022, assistimos a um dos concertos que o músico natural da Flórida deu pelo UK — local onde é bastante assíduo —, por altura do rescaldo de Blk2Life/A Future Past (2021) e poucos meses antes lançar o seu sucessor, Love Quantum (2022), ambos títulos editados pela Sony Masterworks. Na memória ficou uma noite de música cósmica, tocada para abrir consciências, e muitíssimo informada pelo hip hop, afrofuturismo e bases contemporâneas do jazz (nas quais Croker claramente se destaca — a título de exemplo, ouça-se as suas contribuições para os álbuns de Émile Parisien). À data, Croker sorvia o ar do tempo e juntava-lhe uma série de referências frequentemente citadas — de J Dilla a Sun Ra — para compreender esse dito jazznotjazz que tanta tinta tem feito correr. Recordamo-nos das longas tiradas do neto de Doc Cheatham em que este insistia que a música que fazia não era jazz, um termo, segundo ele, profundamente pejorativo. O grito de armas foi anunciar a morte do género: Croker juntou-se ao ideário panfletário de Adrian Younge e Ali Shaheed Muhammad e oficializou, também ele, o óbito do defunto — “JAZZ IS DEAD“ foi single e conta já com mais de 200 mil plays no Spotify.
Dado este contexto e a já notável forma que Croker apresentava ao vivo, era difícil prever o grau de refinamento que a sua música alcançaria passados apenas dois anos. Depois do concerto que o trompetista apresentou na spiegeltent da George Square, restam poucas dúvidas acerca do momento de carreira que atravessa. As suas ideias musicais são precisas, informadas e visionárias; a comunicação com o restante quarteto imaculada; a performance ao vivo cativante e envolvente. Um dos melhores concertos que presenciamos em 2024 — para quando Theo Croker em Portugal?
Com um novo álbum na calha intitulado DREAM MANIFEST, foram sendo revelados novos temas deste disco que será lançado em outubro. Ironia — ou não — Croker, mais do que nunca, está imerso no jazz. Jazz disruptivo, inquisitivo e fluido, que reconhece ser o único género com plasticidade funcional suficiente para captar com expressividade a multiplicidade de estímulos e ideias que caracterizam o espírito da época. Alternando entre o trompete modulado com efeitos e os samplers à sua disposição, Croker foi trazendo influências de mundos musicais distintos e fundindo tudo numa substância musical homogénea, dinâmica e vibrante, movida a groove.
Imagine-se um mundo onde A Tribe Called Quest, Frank Zappa e Donald Byrd se juntam para formar uma banda — é para esse tipo de sonho tresloucado que Croker nos transporta. E fá-lo acompanhado por um Miguel Marcel Russell (bateria) irrequieto e explosivo, um Eric Wheeler (contrabaixo) cheio de swing, e um Idris Frederick (teclas e piano) que não nos importaríamos de ouvir a solo durante horas a fio no Rhodes. Lá pelo meio, escutámos ainda “TO BE WE”, tema de LOVE QUANTUM que conta com a voz de Jill Scott, tendo o concerto terminado com uma longa composição de 30 minutos, um mashup esquizofrénico, repleto de informação, que soa como um binge de horas a fio a scrollar pelo Instagram. Ruído, dados, poluição. Ativismo, progressismo, ascensão espiritual. Política, racismo, capitalismo. É neste mundo que vivemos — e é exatamente isso que Croker faz questão de nos relembrar.