Em 2025, o MEO Kalorama antecipou a sua tripla jornada musical para Junho. Dias 19, 20 e 21, o Parque da Bela Vista acolheu a 4ª edição do festival organizado pela Live Nation, que logo à primeira vista denotava um descréscimo na ambição, ao reduzir o seu número de palcos de quatro para três.
Consequência directa da menor oferta musical foi o número de visitantes deste ano. O primeiro dia até fez alguma impressão, de tão despido que estava o recinto. Mas o que para a organização não foi certamente uma boa notícia, até que trouxe vantagens para o público: as longas filas para aceder a casas de banho, bancas de comida ou até para entrar no próprio festival foram praticamente inexistentes. Por outro lado, é estranho estar tantas horas dentro daquele espaço condicionados ao que se passa em apenas dois palcos, sendo que estes nunca tocam em simultâneo e a tenda da electrónica não é propriamente um refúgio que vai ao encontro dos gostos de toda a gente — muito menos o que motiva à compra de bilhetes.
Entre concertos que certamente ficarão na memória e outros que facilmente iremos esquecer, eis uma reflexão dividida em três pontos sobre a experiência de 2025 no grande certame que anualmente se tem instalado no Parque da Bela Vista.
[A política tem de ser tida em conta]
Num mundo cada vez mais polarizado, todos os nossos actos contam para fazer recair mais peso para um dos lados da balança. Na arte, mais especificamente, a política está sempre relacionada com o que se faz para alimentar a cultura de um determinado país, mesmo que de forma muito inconsciente. Assim como uma cantora não poderia assumir-se sexualmente emancipada numa canção no tempo da censura, também um rapper não conseguiria editar uma faixa a falar de drogas antes de gozarmos da liberdade que hoje auferimos. Qualquer lançamento pode ser político, nem que seja por se tratar de um reflexo do que as leis do seu país lhe permitem fazer naquela altura.
Tendo isto em conta, a política é algo com que qualquer evento cultural se deve preocupar. No caso do Kalorama, este factor foi completamente ignorado. Vamos falar de Azealia Banks. Num recinto às moscas onde uma grande fatia do público pertencia à comunidade LGBTQIA+, que sentido faz confrontar essas pessoas com uma artista no palco principal que ao longo da carreira tem vindo a tecer comentários homofóbicos e transfóbicos? E dadas as constantes manifestações pró-Palestina em Portugal, não faria sentido riscar da lista alguém que se assume com pró-Israel? São precisamente esses os motivos que têm gerado cancelamentos de concertos da artista norte-americana noutros pontos do globo, mas a Live Nation preferiu assobiar para o lado, como se a presença do nome de Azealia Banks no cartaz fosse decisiva na venda de bilhetes. A verdade é esta: por muito competente que seja a sua performance em cima do palco, ninguém se dirigiu ao segundo dia do certame de propósito para a ver, e quem esteve a assistir simplesmente não tinha nada de melhor para fazer àquela hora. De certeza que se encontrariam por aí milhentos nomes mais atractivos (até com um cachê bem mais barato) para aquele slot da programação.
O caso de Noga Erez foi ainda mais grave. Deu até ares de regime ditatorial durante o set, quando íamos vendo os seguranças a obrigar o público politicamente menos contido a baixar as suas bandeiras da Palestina. Durante cerca de uma hora, foi-nos cortada a liberdade de nos manifestarmos, tudo para receber a artista israelita com uma falsa cordialidade. E certamente que muitos daqueles que nos lêem pensam: “Quem é Noga Erez?” Essa era uma pergunta que também se escutava muitas vezes por entre o público daquele espectáculo, outro sinal de uma escolha duplamente mal feita por parte da organização — uma artista que ninguém tem especial interesse em ver e cuja nacionalidade causou comichão a muitos dos presentes.
“Não me consigo divertir da mesma forma agora que sei que ela é israelita,” escutámos a certa altura ao nosso redor por quem googlava para saber de quem se tratava a pessoa que estava em cima daquele palco. “Os israelitas não têm culpa das decisões do seu governo”, ouvia-se noutro lado, procurando uma desculpa para que Noga Erez nos tivesse sido colocada à frente. É verdade que a artista em nada contribuiu para os ataques que o seu país tem feito a outras nações, mas também é igualmente verdade que enquanto estes povos não se sentirem isolados do resto do mundo, nada mudará, pois a revolução nunca começará de dentro, como deve de ser. São duas faces sensíveis para a mesma moeda, mas jogando pelo seguro, há por aí alternativas melhores (nem que seja em termos de popularidade) e menos polémicas.
Lá do alto da sua posição de privilegiada, ainda nos rimos com dois comentários atirados por Noga Erez durante a actuação. Primeiro fez questão de frisar que a sua banda tem mais elementos e um espectáculo visual dinâmico, tendo apontado o dedo a quem lhe deu de comer (Kalorama) pela versão empobrecida do concerto que trouxe a Lisboa — além da MC, estiveram dois músicos em palco e uma imagem estática projectada do início ao fim. Depois, perante a multidão do dia com mais visitantes da edição deste ano do festival, atirou um “os meus concertos não são aborrecidos, são para dançar”, quando percebeu que todas aquelas pessoas paradas diante si só ali estavam por não terem mais lugar para onde ir.
[Contratações falhadas]
Aos dois nomes que mencionámos acima, soma-se mais um par de desilusões por entre as contratações deste ano do Kalorama. Os motivos aqui, no entanto, são puramente artísticos. Vamos começar pelos Pet Shop Boys: sim, há uma certa nostalgia no ar quando se escutam aquelas batidas electrónicas dos pioneiros da synth-pop, mas há também muito bocejo durante a árdua tarefa que é aguentar um concerto inteiro de uma dupla inglesa que ficou parada no tempo. Para quem já os viu, o caso torna-se ainda mais difícil de suportar, pois nem os cenários e visuais impressionam — são reciclados de digressões anteriores. Depois, novamente as mesmas questões: há alguém ainda realmente interessado em gastar dinheiro num dia completo de festival para ver Pet Shop Boys? Não existem por aí artistas mais relevantes nos dias de hoje e, provavelmente, até menos dispendiosos?
E foi também vindo de Inglaterra que nos chegou o outro fiasco, embora este mais difícil de prever. Jorja Smith até teve a vantagem de ter uma das plateias mais completas diante si — afinal de contas, era o penúltimo acto do palco principal, antes do muito aguardado Damiano David —, mas falhou redondamente na missão de nos manter a todos entusiasmados. O seu reputado repertório fazia prever que a sua actuação seria uma das melhores de todo o festival, só que os arranjos tornaram tudo aborrecido, evocando a ideia de um ensemble clássico da música soul e perdendo aquela nuance mais urbana e dançável que a sua arte consegue alcançar mais facilmente em disco. Não deixa de ser uma pena que alguém com uma prestação vocal tão bela e cirúrgica falhe em encantar aqueles que a quiseram ver, mas Smith terá de repensar melhor na forma como se quer apresentar em eventos destes, com características mais uplifting. Não seria uma má performance de se ver sentado numa cadeira ou num certame mais ligado ao jazz, mas naquele contexto foi praticamente unânime que estava a ser um vibe killer.
[Merecidos aplausos]
Durante três tardes e noites intensas, houve também espaço para muitos concertos que nos encheram as medidas, e se colocarmos tudo numa balança, o saldo musical é positivo. Logo no primeiro dia, os Cara de Espelho deram o mote perfeito para o arranque da nossa missão, no seu característico balanço que tanto puxa pelo rock como pela tradição portuguesa, capaz de tanto fazer dançar como pensar, de tão certeiros e urgentes que são os comentários sociais presentes nas suas letras. Depois, Sevdaliza até tinha toda a nossa atenção quando inaugurou o seu set ao som de “Human”, do seu belíssimo Ison (2017), mas rapidamente nos perdeu à medida que foi avançando para as adições mais recentes ao seu catálogo. Apesar da sua sonoridade hoje não ser tão interessante do ponto-de-vista da inventividade, a performance esteve sem num nível elevado e não desiludiu quem por ali foi abanar o esqueleto.
O grande momento da primeira jornada do Kalorama deste ano estava reservada para L’Impératrice, a cósmica banda francesa que tão bem tem sabido reavivar o funk. Seria interessante vê-los a ascender um destes dias a um palco principal, e pelos vários tiros ao lado que fomos referindo nesta peça, este ano teria sido perfeito. Mesmo que se destaquem temas como “Agitations Tropicales” ou “Danza Marilù”, a verdade é que o repertório e virtuosismo dos L’Impératrice não deixam ninguém indiferente e são capazes de fazer dançar mesmo aqueles que só os estão a escutar pela primeira vez. Infelizmente, a saída da vocalista Flore Benguigui fez descer um pouco a qualidade do espectáculo. Talvez a nova cantora Maud Ferron venha algum dia a conseguir equiparar-se à sua antecessora, mas mesmo que falhe em fazê-lo, a restante instrumentação do grupo é bem capaz de continuar a colmatar essa pequena lacuna.
O segundo dia do MEO Kalorama’25 quis mostrar-nos que o rock não está morto. Pelo palco secundário, passaram três bandas que foram capazes de confirmar o seu estatuto junto dos fãs, ao mesmo tempo que conseguiram captar uma audiência nova que ainda não os conhecia. A começar logo pelos MÁQUINA., que apesar do criminoso horário em que foram postos a tocar (18h40), sacudiram-nos o calor com os salpicos da imensa jarda que lhes flui nas veias. O tiro lisboeta continua a desfazer o mito de que um concerto de rock alimentado a uma linha de bombo four on the floor tem de ser uma seca e faz da cacofonia e da saturação sonora a sua maior arma, levando o público ao delírio e ao levantamento de poeiras, mesmo a condizer com o psicadelismo dos rasgos distorcidos da guitarra e do baixo. Apesar de muito mecânicos, a sua música soa sempre redonda ao vivo, e ganham pontos adicionais pela constante atitude “que se foda, eu faço o que eu quiser”, chegando mesmo a exibir uma bandeira da Palestina em pleno concerto — esta não teve nenhum segurança a boicotar, felizmente.
Mesmo sem mergulhar a fundo nas suas discografias, Model/Actriz e Boy Harsher eram dois dos nomes que não queríamos perder. A faísca sentida nas curiosas escutas via streaming virou labareda durante as performances de cada uma das bandas, sem dúvida as grandes surpresas da edição deste ano do Kalorama para quem ainda não estava a par. Ouvir Model/Actriz a seguir a MÁQUINA. foi das melhores experiências que tivemos, já que o dançável pós-punk com laivos de sonoridades industriais casa na perfeição com a banda portuguesa. Cole Haden, o vocalista dos americanos, faz o projecto ganhar camadas extra pelos poemas sinceros e uma componente performativa de voguing que não se costuma ver no rock. Também na senda desse rock mais dançável, Boy Harsher trouxeram o lado gótico para a equação, seduzindo-nos com uma estética noir que vai beber à cena dark wave.
A brilhar bem no alto no final do dia estiveram duas mulheres. Róisin Murphy foi a primeira a entrar em cena e nem estávamos propriamente mortinhos para a ver actuar, já que o seu nome costuma ser uma constante nos festivais portugueses ano após ano. Mas houve qualquer coisa de especial neste concerto no Kalorama. Apesar de não ter ainda dado um sucessor a Hit Parade (2023), soou-nos renovada de alguma forma, até mesmo mais alegre e segura em palco. Talvez tenha sido isso que a levou a não ter vergonha de se agarrar ao passado quando invocou “Sing It Back” para fechar o espectáculo em grande, não se limitando a reproduzir à letra esse enorme clássico dos Moloko, dos quais fez parte. Foram, talvez, mais de 10 minutos a recriar esse belíssimo tema, passando por fases mais despidas e solares — a fazer lembrar por vezes “Summer Madness” dos Kool & The Gang — e outras mais mexidas, ao estilo original desse êxito que incendiou pistas pelo mundo inteiro no final do milénio passado. Pelo meio, adornou a canção com novos e empoderadores versos, sinal de uma garra que parece no pico aos 51 anos de idade, e brincou com o sistema de projecção de imagem ao virar-se de costas para o público, mas de frente para uma câmera que lhe projectava a cara em grande tamanho diante dos nossos olhos. Causou arrepios.
Mas mais perto de verter a lágrima estivemos na despedida de FKA twigs, a fechar a noite ao som de “Cellophane”. Foi pura catarse depois daquela que foi a actuação mais completa de todo o certame. A irreverente artista inglesa, uma verdadeira polímata a operar na vanguarda da pop, não trouxe uma banda e socorreu-se várias vezes das backing tracks para lhe amparar o que era captado ao vivo, mas compensou isso com um cenário feito à medida, um farto número de bailarinos e uma série de coreografias que fazem corar de inveja muitos dos maiores nomes do mainstream. A digressão de EUSEXUA merece ser vista por todos e só nos deixa a imaginar o quão impactante poderá ser vê-la em contexto de um concerto em nome próprio, pois esta extravasa por completo o conceito a que mais facilmente associamos a performance de festival. Nas canções mais delicadas ao nível da prestação vocal, lá estava ela de microfone erguido para exibir os dotes das suas cordas. Nos momentos de maior frenesim, entregava-se de corpo e alma à dança, fazendo lembrar Michael Jackson — os movimentos corporais não eram apenas um complemento, mas sim uma arte que domina na perfeição, tal e qual o canto.
Infelizmente, não chegámos ao Parque da Bela Vista a tempo de apanhar os YAKUZA em acção no derradeiro dia, mas os BADBADNOTGOOD, que lhes seguiram no Palco San Miguel, garantiram-nos que o concerto foi bom, já que a meio do seu set revelaram ter ficado impressionados com os portugueses. Elogios são sempre bem-vindos, ainda para mais vindos de uma banda que, além de muito talentosa, é uma das pioneiras neste renovado movimento jazz que se tem feito sentir um pouco por todo o globo, sendo que Portugal tem estado especialmente participativo nesse campo, tendo desde logo os YAKUZA enquanto um dos principais rostos. Donos de um catálogo extenso, que tem vindo a ser construído ao longo de mais de uma década, os canadianos emanaram raios solares através de um espectáculo rico em cores — não só musicais, também imagéticos, graças à inclusão de Sylvain Chaussee ao leme de um projector de imagens em fita de 16mm que eram manipuladas de forma artesanal. Entre algumas das suas próprias composições, aproveitaram ainda o momento para celebrar os legados de Sly Stone e Roy Ayers (com “Family Affair” e “Everybody Loves the Sunshine”, respectivamente), dois nome gigantes da música negra norte-americana que tanto influencia o som dos BADBADNOTGOOD, eles que partiram este ano para outro plano.
Sem nada conhecer e com zero expectativas, saímos completamente rendidos a Royel Otis, o concerto que se seguiu no palco secundário. Apesar de destoarem por completo da banda anterior, evocando novamente as influências do rock e da new wave do dia anteior, meteram-nos a dançar ao som de vários originais interessantes — “Kool Aid” e “Oysters In My Pocket” foram directamente para os favoritos no streaming — e de um par de covers muito bem conseguidas — para “Linger” (dos The Cranberries) e “Murder On The Dancefloor” (de Sophie Ellis-Bextor). Ensonados pelo já referido momento de Jorja Smith e sem interesse em esperar para ver Damiano David, já só nos restou dançar um pouco ao som de Branko, que percorreu a sua incrível discografia num novo formato que o tem trazido a palco junto de uma banda, fazendo com que a sua “Nova Lisboa” seja celebrada com um swing mestiço, que funde a electrónica à instrumentação orgânica.