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Fotografia: José Félix da Costa
Publicado a: 15/06/2022

Destacaram-se este ano as cantoras Lorena Izquierdo e Patrícia Domingues e o clarinetista Luiz Rocha, este último num feliz regresso ao festival.

Uma grande festa, a Oeste, chamada MIA

Fotografia: José Félix da Costa
Publicado a: 15/06/2022

Foi em ambiente comemorativo – e o que se comemorou foi a possibilidade de voltar a tocar ao vivo – que decorreu o Encontro de Música Improvisada de Atouguia da Baleia de 2022. Regra geral, e muito curiosamente, por meio de intervenções musicais (muitas delas dançadas) que preferiram o detalhe e a suavidade, apenas com alguns momentos de catarse pelo meio.

O MIA também é isto: às 3h da madrugada de sábado 11 de Junho para domingo, no local onde se dormia e jantava, o Conde Távora, Luiz Rocha tocava as Suites para Violoncelo de Bach em clarinete baixo, enquanto Nuno Rebelo e Paulo Pimentel dançavam com baldes enfiados na cabeça. Pouco depois, eram quatro os músicos que rodeavam o teclado de um piano, os mesmos Rebelo e Pimentel e ombros com ombros Tiago Varela e Maria do Mar, cada um com a sua nesga de notas, improvisando. Não estava agendada qualquer jam session, mas esta aconteceu, e com moldes que nada tiveram que ver com os do jazz. A música é algo que está sempre presente no Encontro de Música Improvisada de Atouguia da Baleia, em qualquer momento, mas funcionando como a ponte para o convívio entre artistas provenientes de várias latitudes. É a linguagem comum entre pessoas que falam várias línguas.

Foram quatro os dias de trabalho naquela vila do concelho de Peniche, iniciando-se a 9. O Rimas e Batidas acompanhou os no fim-de-semana e, à chegada, deparou-se com um mood muito particular: uma abordagem à improvisação particularmente pausada, detalhística e introspectiva. Ninguém estava com pressa, querendo tocar tudo de uma vez ou impressionar os demais com tecnicismos egotistas. Não era preciso provar coisa alguma, só entrar no estado de espírito geral. De manhã tinha havido um Banho de Gongos, dirigido por Carlos Cañao, e esse estado meditativo instalou-se nos quatro grupos random que se apresentaram ao longo da tarde.



Logo então, na Sociedade Filarmónica, fizemos uma descoberta: presente estava uma delegação de bailarinas da Áustria. Se no ano passado um workshop conduzido por Maria Radich e Maria do Mar instalara uma dimensão performativa no todo do festival (ou “congresso dos improvisadores”, como vem sendo designado), eis que na edição de 2022 ela esteve ainda mais presente, contaminando a música e os músicos, alguns havendo que colocaram os instrumentos de lado para dançar. Foi o caso, em especial, de Maurizio Matteucci, flautista que na maior parte do concerto esteve a interagir com os movimentos de Olivia Mitterhuemer. Na formação estavam ainda Nuno Rebelo, Alvaro Rosso, Lorena Izquierdo e Jerome Fouquet e a sua prestação acrescentou humor e non-sense aos procedimentos, para gáudio da plateia. Às tantas, tínhamos Rebelo a arrastar a guitarra pelas tábuas do palco, como se fora um carrinho de mão, produzindo um drone suave.

A ocasião serviu para identificar uma das figuras mais relevantes deste MIA, a cantora espanhola Lorena Izquierdo. Com um alcance vocal e uma projecção impressionantes, a todos entusiasmou com as suas expressividade e performatividade. Nunca tinha participado no MIA, tendo sido esta uma estreia, em consequência já da inclusão do festival, e da organização que o promove, a Zpoluras, na Share, uma federação recém-constituída que junta várias organizações europeias de improvisadores.

Muito bem esteve igualmente o grupo constituído por Julian Davis Percy, Maria do Mar, Maria Dybbroe, Mário Rua, Noel Taylor e Uygur Vural, este mais centrado numa criação especificamente musical. Percy tinha ao seu dispor uma parafernália de dispositivos electrónicos e de objectos amplificados, para além da guitarra, e de todos esses recursos poderia ter tirado uma avalanche de sons que cobririam tudo o mais, mas o seu desempenho foi de uma contenção admirável. Foi essencial para as construções conjuntas, mas de forma civicamente comedida. Comprovou que um agrupamento de improvisação é, hoje, como que a célula anunciadora de uma sociedade futura que possa distinguir-se pela igualdade e pela responsabilidade social. O mesmo fez o baterista Mário Rua, sustentando os fraseios e as texturas ora elegantes, ora desconstrucionistas, de Mar no violino, Taylor no clarinete, Dybbroe no saxofone alto (por momentos dobrando também em clarinete) e Vural no violoncelo. 



No final da matiné esperava-nos, no Conde Távora, um “concerto-aperitivo” protagonizado por Luís Guerreiro, Marco Olivieri e Samuel Hallkvist, trio que se desdobrou em timbres e meios, Guerreiro entre o trompete, a voz e a electrónica, Olivieri entre o piano e a declamação poética e Hallkvist tocando com a guitarra eléctrica desligada ou fazendo uso de uma multiplicidade de efeitos. A actuação foi exemplarmente trans-idiomática, com pinceladas milesianas, disrupções punk, articulações que pareciam vindas do folclore italiano e guitarrismos de uma moldagem quase de escultura, muito plásticos. Resultou num dos momentos mais galvanizantes do MIA deste ano e o entusiasmo de quem ouvia fez-se sentir.

À noite, depois do jantar, rumou-se para a Igreja de S. José, onde nos esperavam dois concertos em formato de quarteto. O primeiro juntava dois clarinetes baixo, os de João Pedro Viegas e Luiz Rocha, a flauta e o saxofone alto de Paulo Chagas e a guitarra eléctrica preparada com utensílios metálicos de Abdul Moimême. Muito depressa se estabeleceu um jogo entre material melódico, introduzido por Viegas, e construções mais abstractas, definidas por Rocha, com Chagas a articular essas duas dimensões e Moimême a envolvê-las como se estivesse a distribuir argamassa pelas fendas. Viegas e Rocha trocavam de papéis volta e meia e Chagas furava pelo meio, mas sempre criando espaços e, sobretudo, deixando ouvir o espaço em que nos encontrávamos, o modo como os sons reverberavam na igreja, esta acabando por funcionar como o quinto interveniente.



Já o segundo quarteto não funcionou. Em cena estavam três guitarras acústicas, as de Fernando Guiomar, Jorge Nuno e Manuel Guimarães, e o violoncelo de Miguel Mira. Este tomou a posição do estruturador de serviço, utilizando o seu instrumento como um contrabaixo, mas as suas deixas não foram pegadas pelos demais. A actuação soou descosida e desarticulada, com os participantes – e sobretudo Guiomar e Nuno – a cingirem-se às suas respectivas zonas de conforto, sem ouvirem os outros. Às tantas Guimarães procurou salvar a situação, propondo soluções a que os outros guitarristas pudessem agarrar-se, mas o esforço não resultou. A improvisação também pode ter este tipo de desfecho: o insucesso.

No domingo, a labuta começou logo pela manhã, na galeria de exposições da Igreja de S. José, com um concerto para crianças coordenado pela cantora Elisabetta Lanfredini e por Uygur Vural, no qual participaram Carlo Mascolo, Luiz Rocha (decididamente uma das figuras com mais realce neste MIA, vindo do Brasil e marcando um regresso ao festival, depois de vários anos de ausência) e as bailarinas Elena Waclawiczek, Olivia Mitterhuemer, Agnes Distelberger e Anna Adensamer. Foi especialmente bonito e os miúdos aderiram depois dos primeiros minutos de timidez, pois o objectivo era, precisamente, que existisse uma interacção. Se musicalmente os instrumentos começaram por mimetizar falas e interjeições, houve mais adiante a possibilidade de ouvir uma canção de embalar turca (país de origem de Vural) e ritmos de marcha, com uma fila dançante envolvendo artistas e público a deslocar-se pela sala em ambiente de alegria.

A tarde iniciou-se de novo na Filarmónica com outro dos grandes concertos do evento, o do Trio Pente Atómico, também ele muito feito de subtilezas e de fluxos em onda e seccionamentos. João Godinho em piano preparado, Patrícia Domingues na voz e Maria do Mar enquadraram-se num âmbito muito camerístico, mas também performativo, com apontamentos orientalizantes por via de um santoor que era accionado por bolas de pinguepongue. A intervenção apresentou outra das personagens-chave do festival, Patrícia Domingues, cantora de formação lírica com capacidades e recursos que causaram a admiração geral. Godinho actuou com pequenos elementos, sempre oportunos, agindo directamente sobre as cordas, Domingues focou-se nos harmónicos e Mar explorou metódica e inventivamente as possibilidades que o violino lhe oferecia.

Depois, bom, depois a suavidade e a poesia que vinham marcando as sessões transfiguraram-se. Subiu ao palco o Phonogram Unit 5tet, com José Lencastre, Jorge Nuno, Rodrigo Pinheiro, Hernâni Faustino e Vasco Furtado, para uma apresentação alinhada com o free jazz, intensa e barulhenta. Foi um corte abrupto com o que tinha acontecido antes, mas serviu para uma bem-vinda catarse. O registo foi colectivo, sem partições solísticas, mas porque era o único instrumento melódico o primeiro plano foi coberto pelo saxofone tenor de Lencastre. E em que boa fase do seu percurso o reencontrámos, atirando-nos com cascatas de notas.

A seguir veio um quarteto formado por três sopradores, Yedo Gibson, Luís Vicente e Ziv Taubenfeld, mais o violinista Carlos “Zíngaro”. O receio que tal formação inspirava confirmou-se. Um saxofone (ora soprano, ora alto), um trompete e um clarinete baixo tocados por músicos disruptivos traziam consigo a ameaça de que o cordofone seria obliterado, e quase assim aconteceu. Parecendo adivinhar o que iria acontecer, “Zíngaro” pediu aos técnicos de som para baixar o volume do violino – assim, terá previsto, não contribuiria para a confusão. Esta terá sido menor, em consequência, mas instalou-se. Foi interessante, mas também uma demonstração de como até a junção de improvisadores de primeira água pode não resultar numa música de alto risco como a improvisada.

Já um ex-libris do MIA, chegou finalmente o momento para a repartição dos músicos presentes em dois grandes ensembles, conduzidos por outros através de gestualismos definidos no “aqui e agora” das situações. O primeiro Ensemble MIA teve como “maestro” Fernando Simões, mas não houve entrosamento, tudo soando algo atabalhoado. Maria Dybbroe dirigiu o outro e, este sim, foi uma maravilha. Em grande parte devido a uma Patrícia Domingues que, com por exemplo Elisabetta Lanfredini e Maria Radich, iria cantar, mas acabou sobretudo por desenvolver uma coreografia espontânea com um inesperado domínio do corpo. O edifício que se levantou fez-se de delicadezas, dinâmicas vivas e combinações inusitadas de cores e timbres, com o bandolim de Aleksandar Caric a marcar os níveis sonoros. Atmosférico, filigranado, este terá sido um dos ensembles mais felizes de toda a história do festival.

Houve mais no MIA que foi impossível ao Rimas e Batidas acompanhar. Um workshop de Pedro Carneiro, um debate sobre a precariedade dos músicos, mais apresentações de grupos random, articulações concertantes de Elisabetta Lanfredini, Noel Taylor e Paulo Pimentel, entre Carlo Mascolo, Maria Dybbroe, Nuno Rebelo e Uygur Vural, e entre Bruno Goncalves, Carlos Cañao, Jerome Fouquet e Maria Radich, mais Manuel Guimarães, Maurizio Matteucci e Tiago Varela, com um grand finale em formato de jam que entrou pela madrugada de segunda-feira. Uma grande festa, em suma, ali para Oeste.


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