O ano era 1995. O R&B estava em alta com TLC, Mariah Carey, Montell Jordan, Monica, Brandy e Boyz II Men. O rap também fazia barulho com as costas Leste e Oeste disputando o reinado, tendo The Notorious B.I.G. e Tupac na linha de frente. Pelas margens, no dia 04 de julho, D’Angelo surgiu com o álbum Brown Sugar, uma fusão entre o vigor da cultura hip hop, a intensidade da soul, a suavidade do gospel e a sensualidade do rhythm & blues. Quem encararia fazer a releitura de uma composição de Smokey Robinson logo na estreia? Ele aceitou e não decepcionou. Inesperadamente, e com urgência de mudança de estética naquele momento, ele deu início a um movimento batizado de neo-soul. Não seria uma blasfêmia afirmar que na música negra contemporânea existe uma linha que divide a textura do groove entre o antes e o depois de D’Angelo.
Essa originalidade foi construída a partir de influências da igreja, a qual seu pai, Luther Archer, era pastor, e onde aprendeu a tocar piano. Também inseriu as experiências que teve participando em grupos vocais e a imersão que fez no rap com o grupo I.D.U. (Intelligent, Deadly but Unique). Mas antes de conquistar o mundo com aquela voz encorpada, pujante e adocicada, Michael Eugene Archer (seu nome de batismo) já estava compondo. Aos 17 anos assinou com Jocelyn Cooper, que o contratou para a Midnight Songs LLC (parceira da Universal Music Publishing Group). Com essa porta aberta, ele preparou o terreno para construir o que seria um dos grandes clássicos da música, tornando hits a faixa-título “Brown Sugar” e “Lady”. Poucos conseguiram — talvez Ray Charles e Etta James sejam alguns exemplos — colocar o lado sensual e a espiritualidade no mesmo ambiente.
D’Angelo fez isso magistralmente no incrível Voodoo em 2000. Impossível colocar a tocar e não fechar os olhos e viajar, murmurar uma prece, louvar os deuses. Ao mesmo tempo que serve naqueles momentos em que as luzes se apagam e o jazz (aquele jass) acontece. Quem nunca fez isso, deveria. Tudo aquilo tem uma beleza que impressiona. É vívida, inclusive na forma orgânica com que foi construído. Não por acaso um dos co-pilotos da nave foi o baterista Ahmir “Questlove” Thompson, do The Roots [também presente no anterior]. Neste álbum, D’Angelo se aproxima ainda mais do rap e funk. Porém, a estrutura segue por uma linha bem diferente do convencional. Não é aquela coisa “quadrada”, certinha. Isso também muito por causa do time reunido no Electric Lady Studios, em Nova York, entre 1997 e 1999: membros do coletivo Soulquarians (formado por Erykah Badu, Bilal, Common, Roy Hargrove, Talib Kweli, Mos Def, Pino Palladino, James Poyser, Q-Tip, Questlove, J Dilla), Raphael Saadiq, Angie Stone, DJ Premier, Method Man, Q-Tip e Redman. Não se pode dizer que Voodoo foi (é) um disco experimental. Porém, D’Angelo fez alguns experimentos que provaram ser eficazes. Acertou em tudo.
Pela repercussão que o primeiro trabalho gerou, a expectativa pelo subsequente estava nas alturas. Surpreendeu ainda mais, fazendo uma segunda revolução. Novamente, estava bem à frente do seu tempo. Porém, logo depois de mexer com as estruturas da indústria, D’Angelo decidiu se recolher. Deu um tempo porque não se sentiu bem com o seu status de símbolo sexual após a “viralização” do videoclipe “Untitled (How Does It Feel)” (em qual aparecia nu). Além disso, teve outros problemas pessoais que o tiraram dos holofotes.
Quando poucos ainda tinham uma vaga expectativa do seu regresso, D’Angelo ressurge em 2014 com o mais político dos seus álbuns, Black Messiah. Mais uma vez, pegou todos de surpresa. Novamente, enveredou por caminhos “tortuosos”. Ainda mais espiritual, flertando com o gospel da sua infância, e apocalíptico, viu a necessidade de falar do racismo que continuava (e continua) vitimando pessoas negras nos Estados Unidos. Falar sobre aqueles assuntos era tão necessário que, dias depois do disco ganhar o mundo, o jovem Michael Brown, de 18 anos, foi assassinado pela polícia. Talvez o título fosse uma afirmação. O escolhido voltou para trazer a mensagem. Através da música, fez sua pregação. Conquistou fiéis. Tornou-se lenda. Assim como o Messias bíblico, este foi embora cedo. Deixou discípulos e construiu um legado. São raros os que conseguiram esse feito com apenas 3 álbuns relevantes e de qualidade extrema. Esse é um fenômeno que não acontece sempre na terra dos ímpios. Fomos abençoados.