*Este artigo foi originalmente publicado em inglês no Bandcamp Daily
Ao longo das últimas duas décadas, Rodrigo Amado tem-se afirmado como uma figura-chave da cena jazzística europeia. Em particular, a sua discografia tem vindo gradualmente a tornar-se uma das mais significativas no âmbito da música criativa improvisada contemporânea. Possuidor de um sentido estético muito apurado, Amado não é apenas um saxofonista e improvisador notável, mas também um produtor discográfico brilhante; e, acima de tudo, um artista com uma visão extremamente clara e convincente.
A sua música é por vezes descrita como “free jazz”, mas tal rótulo, por si só, dificilmente lhe faz justiça. Nem tampouco “livre improvisação”, sobretudo quando referindo a música improvisada dita “não-idiomática”. Por certo, quer o free jazz quer a livre improvisação têm lugar na sua prática, mas é mais rigoroso caracterizarmos a arte de Amado como uma forma de “composição espontânea” que se serve primariamente da tradição jazzística. Por outras palavras, embora totalmente improvisada, a sua música é constituída por elementos inteiramente idiomáticos.
Um dos factores-chave para a sua obra se manter fresca e interessante tem que ver com o equilíbrio que consegue alcançar entre tradição e modernidade, sendo a sua abordagem marcada tanto pelos mestres do jazz clássico como pelos do jazz de vanguarda. E, embora o seu próprio discurso seja primariamente fraseado, com grande clareza de articulação, os seus grupos incluem muitas vezes músicos de pendor mais abstracto ou experimental, criando assim contrastes invulgares no seio do conjunto.
Amado lança discos com uma frequência significativa, mas fá-lo de um modo selectivo. Pensa com cuidado sobre aquilo que vale a pena editar e assegura tratar-se de algo que importa. Além disso, é particularmente lúcido a seleccionar momentos relevantes e a “compor” sequências coerentes a partir de material totalmente improvisado. Também se preocupa muito com o som e com a apresentação visual — pense-se na força das suas capas, que por certo não têm passado despercebidas. É, portanto, alguém que trata os álbuns como verdadeiras peças de arte. E, em última análise, é isso que o distingue de outros músicos admiráveis: tem vindo a construir uma discografia feita para durar.
É também um artista possuidor de uma profunda consciência histórica. Conhece (e admira) a grande tradição em que se insere como poucos outros músicos não-americanos. Alguns dos seus álbuns são, pois, pensados como manifestos específicos no âmbito de uma história específica: tanto homenageiam os grandes mestres como reivindicam um lugar entre eles. Só o tempo dirá se tal lugar lhe será concedido, mas, para já, as perspectivas parecem boas.
A lista que se segue é um guia pela discografia de Amado, centrado especificamente nos dois primeiros períodos identificáveis da sua produção criativa. Inclui também o álbum que marcou o início do seu terceiro período criativo, actualmente em curso, e que promete ser o mais frutífero até à data.
[Rodrigo Amado, Carlos Zíngaro & Ken Filiano] The Space Between (2003)
Amado tinha pouco menos de 40 anos quando começou a editar álbuns em nome próprio, o que poderá ajudar, em parte, a explicar o facto de praticamente não encontrarmos elos mais fracos na sua discografia — prova da sua integridade artística e auto-consciência. The Space Between é o seu primeiro manifesto substancial gravado e, ainda hoje, continua a ser um dos mais singulares. O título tanto pode ser lido como referindo o espaço entre o conhecido e desconhecido que os improvisadores procuram como o espaço entre o jazz e a música clássica contemporânea que estes três improvisadores — Amado, o violinista Carlos “Zíngaro” e o contrabaixista Ken Filiano — procuram nesta sessão em particular. Um pouco como Amado faz com o jazz, “Zíngaro”, outro improvisador europeu de referência, distingue-se por uma forma de composição espontânea que vai sobretudo beber a vocabulários da clássica contemporânea. Neste contexto, Filiano, possuidor quer de raízes jazzísticas profundas quer de uma técnica clássica assinalável, funciona como o elo de ligação perfeito entre eles. Timbricamente rica (e bem gravada), com Amado a utilizar dois instrumentos contrastantes (saxofones alto e barítono, com o segundo a fundir-se particularmente bem com o arco de Filiano), esta é também uma música de extraordinária contenção, resultando numa suite de câmara composta espontaneamente, com tanta sofisticação clássica quanto um ímpeto rítmico inequivocamente jazzístico. Cada uma das suas nove peças, entre os quatro e os sete minutos e meio, centra-se no desenvolvimento de uma ideia específica, com grande coerência formal. Mais de 20 anos depois do seu lançamento The Space Between continua a ser um marco da música improvisada europeia e a soar tão fresco e relevante como sempre.
[Rodrigo Amado, Kent Kessler & Paal Nilssen-Love] The Abstract Truth (2009)
Depois de inicialmente ligado à Clean Feed, da qual foi um dos fundadores, Amado criou a sua própria editora, European Echoes, que se manteve activa entre 2006 e 2009 (e viria entretanto a ser reactivada em 2025). O seu lançamento inaugural, Teatro (2006), é um álbum ao vivo com Kent Kessler e Paal Nilssen-Love, a primeira gravação em que Amado se apresenta naquele que viria a ser um dos seus formatos de eleição: o trio clássico de saxofone, contrabaixo e bateria. Foi também aqui que o ouvimos pela primeira vez, em disco, trocar o saxofone alto pelo tenor, o instrumento ao qual se viria mais tarde a dedicar por inteiro. O trio voltaria a gravar no Verão de 2008, desta feita em estúdio. O álbum daí resultante, The Abstract Truth, é mais uma obra de composição espontânea de grande foco, agora largamente dentro dos parâmetros do jazz. Ao contrário das explorações de maior duração que caracterizariam as gravações posteriores de Amado, as peças de The Abstract Truth são geralmente mais curtas, incluindo quer grooves potentes quer baladas líricas. Em particular, verifica-se uma forte ligação às raízes, mas também algo de camerístico. O título alude à honestidade radical exigida pelo processo da composição espontânea (ou “improvisação total”), sendo o próprio álbum um registo radicalmente honesto, evidenciando quem estes três músicos eram na altura em que foi gravado.
[Rodrigo Amado, Taylor Ho Bynum, John Hébert & Gerald Cleaver] Searching for Adam (2010)
Além do referido trio, o clássico quarteto ornettiano tem sido outro formato especialmente caro a Amado. A sua primeira incursão neste último deu-se em Spiritualized (2006), que juntou o seu colectivo Lisbon Improvisation Players ao trompetista Dennis González. A segunda, Searching for Adam, constitui a primeira tentativa do saxofonista em reunir um grupo internacional escolhido a dedo, com o trompetista Taylor Ho Bynum, o contrabaixista John Hébert e o baterista Gerald Cleaver. Gravado em 2008, este seria o primeiro lançamento internacional de Amado e o registo final do seu período inicial. Ao contrário dos seus álbuns de estúdio anteriores, Searching for Adam contém improvisações mais longas (algumas das quais excedendo os 20 minutos) e de direcção muitas vezes imprevisível, atravessando diferentes paisagens com níveis variáveis de intensidade.
Neste projecto em particular, Amado procurou uma ligação com a outra disciplina artística em que se tem notabilizado: a fotografia. Isto é, em vez de começar inteiramente sem rede, utilizou algumas fotografias suas, de uma série dedicada à cidade de Nova Iorque, como “partituras”, estimulando as criações colectivas do quarteto. Provavelmente, o aspecto mais curioso do grupo reside no contraste acentuado entre Amado, um músico maioritariamente melódico (ainda que robusto), e Ho Bynum, um explorador sonoro com um som cortante e um fraseado fortemente abstracto. Já Hébert e Cleaver formam uma secção rítmica tão sólida quanto criativa.
Amado serve-se de uma citação de Sam Rivers como mote deste álbum: “Liberdade não significa uma renúncia incondicional da melodia e do ritmo, mas liberdade para escolher o que quero tocar.” Estas palavras sintetizam, em grande medida, a própria abordagem de Amado: a liberdade musical a que aspira não é uma liberdade “de”, mas uma liberdade “para”.
[Rodrigo Amado Motion Trio] Desire & Freedom (2016)
O período intermédio de Amado começou oficialmente com o lançamento de Motion Trio, em 2009. Estávamos perante uma mudança radical. Dedicado agora em exclusivo ao saxofone tenor, nunca soara tão fluído e, ao mesmo tempo, com uma ligação tão profunda às raízes do jazz. Tinha também, pela primeira vez, encontrado uma verdadeira working band, com um som muito diferente de tudo o que se ouvira até então. Em particular, apresentava uma secção rítmica única, profundamente abstracta e, ao mesmo tempo, com uma enorme capacidade de propulsão. Servindo-se de um violoncelo afinado como um contrabaixo e desempenhando, em grande medida, o papel deste último, Miguel Mira conferia uma grande leveza e elasticidade ao conjunto. Já Gabriel Ferrandini (também membro do Wire Quartet, outro grupo importante deste período) destacava-se pela sua imensa gama dinâmica — capaz tanto de explosões de energia devastadores como das mais subtis explorações de som — ou pela sua total rejeição de padrões rítmicos convencionais. Juntos, formavam uma espécie de tapete mágico sobre o qual o discurso de Amado podia realmente fluir. Muito activo durante cerca de uma década, o trio funcionou como a unidade base do saxofonista, por vezes expandida pela adição de um convidado — destaque para as colaborações com o trombonista Jeb Bishop ou o trompetista Peter Evans, tendo gravado dois álbuns com cada um deles, entre os quais The Flame Alphabet (2013) e The Freedom Principle (2014). Foi após estas colaborações, no seu auge enquanto banda, que os músicos regressaram ao estúdio em trio e produziram aquela que é, muito provavelmente, a sua obra-prima: Desire & Freedom, composta por três longas improvisações plenas de ímpeto e subtileza. Riquíssimo nos detalhes, este é um daqueles álbuns que pede uma revisitação constante — a marca de um verdadeiro clássico.
[Rodrigo Amado, Joe McPhee, Kent Kessler & Chris Corsano] A History of Nothing (2018)
Outro grupo-chave do período intermédio de Amado, e possivelmente aquele que mais contribuiu para a grande afirmação internacional que alcançou nesta fase, foi o This Is Our Language Quartet, com o lendário multi-instrumentista Joe McPhee, o sempre fiável Kessler no contrabaixo e o efervescente Chris Corsano na bateria. A forma como Amado imaginou esta combinação foi em si mesma uma jogada de mestre: de certa maneira, este quarteto afigurava-se quase como uma síntese de todo o seu universo sonoro, com tanto de novo como de antigo. McPhee possuía quer uma ligação profunda às raízes, nomeadamente do blues, quer uma forte propensão experimental, alternando entre frases arrebatadas e gestos abstractos, de exploração sonora; Kessler cimentava o primeiro aspecto e Corsano alimentava o segundo. Os resultados variariam entre peças mais curtas e focadas e incursões mais longas e impetuosas. O seu álbum de estreia, This Is Our Language (2015), mais tradicional, continua a ser provavelmente o registo mais aclamado do quarteto, mas, a ter de escolher apenas um, optaria antes pelo seu sucessor, A History of Nothing, que se destaca pela sua estrutura singular: três longas faixas centrais, numa toada mais enérgica, enquadradas por duas peças extraordinariamente contidas e sugestivas. A abertura “Legacies” conta-se entre as mais finamente tecidas composições espontâneas da discografia de Amado, evocando os espíritos dos mestres do passado: ouvimos ecos do quarteto de Ornette na sua vertente mais lírica, suplementado por uma sofisticação sonora contemporânea. Já o final, ao qual o título “The Hidden Desert” se adequa na perfeição, inicia-se com uma atmosfera exploratória — sugerindo, de certa maneira, cactos, areias e ventos através do som — que se vai lentamente transformando numa magnífica balada. Mais uma obra-prima definitiva.
[Rodrigo Amado & Chris Corsano] No Place To Fall (2019)
No Place To Fall assinala o contributo de Amado à grande tradição de duos de saxofone e bateria inaugurada por Interstellar Space, de Coltrane. Algures entre a alquimia sonora abstracta de Ferrandini e a organicidade de Nilssen-Love, Corsano é um dos grandes mestres contemporâneos deste formato — pense-se, por exemplo, nos seus duos com Paul Flaherty ou Mette Rasmussen — e, portanto, um parceiro ideal. Ambos se destacam pela sua agilidade e controlo de dinâmicas, entrando geralmente em erupção apenas após uma série de subtis crescendos. E, embora este seja, por certo, um dos registos mais virulentos de Amado, aproximando-se das vertentes mais incendiárias do free jazz, as suas frases não deixam de apresentar uma definição invulgar. Nas primeiras quatro faixas, a maior parte da acção desenrola-se a um ritmo vertiginoso, pelo que os momentos de acalmia adquirem aí um valor acrescido: oiça-se a abertura lírica de “Don’t Take It Too Bad” ou a introdução a solo da faixa título, na qual o saxofonista alterna entre ataques bruscos e silêncios de cortar a respiração. Na faixa final, mais meditativa, passa-se o exacto o oposto: no âmbito de uma atmosfera de maior serenidade, uma breve explosão vê o seu impacto amplificado. É assim reafirmado algo já evidente no seu trabalho em quarteto: estes dois músicos podem ser tão sensíveis quanto explosivos.
[The Attic] Love Ghosts (2022)
Outro trio clássico, The Attic, cujo nome advém do título do seu álbum de estreia homónimo, tornou-se desde então uma das principais formações de Amado. Com o contrabaixista Gonçalo Almeida e o baterista Onno Govaert, o som deste grupo afigura-se um pouco mais denso e robusto do que o do Motion Trio, revelando, em todo o caso, grande flexibilidade e uma vertente experimental. Gravado no início de 2020, Love Ghosts é mais um marco na discografia do saxofonista — um novo pico em termos de fluidez discursiva. Trata-se também do mais fino destilar da linguagem do trio até à data. Apesar de todas as suas quatro faixas serem relativamente longas (entre os 12 e os 17 minutos), revelam um foco e uma coerência estrutural que diríamos mais facilmente alcançáveis quando se opera com formas mais curtas. Em suma, Amado introduz um fragmento ou motivo (um quase-tema) gerado espontaneamente, lançando-se, a partir daí, num longo desenvolvimento deste, torcendo-o nas mais variadas direcções, mas sem perder de vista o seu carácter original. Love Ghosts fecha o período intermédio de Amado com chave de ouro, prefigurando já um pouco daquilo que se seguiria.
[Rodrigo Amado] Refraction Solo (Live at Church of The Holy Ghost) (2022)
Quem quer que venha acompanhado o percurso de Amado ao longo dos anos terá notado uma evolução contínua em termos de capacidade técnica, domínio idiomático e profundidade espiritual, fruto da sua dedicação incondicional à sua arte e, em particular, ao seu instrumento. O salto mais notório deu-se, no entanto, durante o período de confinamento, no qual Amado elevou a sua rotina de estudo a todo um novo patamar e procurou aprofundar a sua relação com uma série de temas clássicos do jazz. Ao mesmo tempo, foi-se apercebendo gradualmente de algumas limitações inerentes ao instrumento que então usava, o que o levou a mudar para um novo e, com isso, a transformar por completo a sua abordagem. Refraction Solo regista uma actuação solitária numa igreja nas Caldas da Rainha durante o verão de 2021, no qual toda esta sua renovação transparece. Nunca o seu som fora tão cheio e quente, ao mesmo tempo mais rollinsiano e mais pessoal, nem a sua técnica tão fluída, a sua afinidade para com o vernáculo do jazz tão autêntica, a sua presença tão forte. Mérito também do técnico de som Ricardo Pimentel: não só Amado nunca soara tão bem como nunca fora tão bem gravado. O processo criativo, aqui, nomeadamente na longa suite “Sweet Freedom”, apresenta algumas semelhanças com o de Love Ghosts, só que, agora, os fragmentos básicos advêm de temas pre-existentes, uma prática sem precedentes na discografia do saxofonista. Talvez seja prematuro tomar este álbum com o seu melhor de sempre, mas poderá muito bem tratar-se, até hoje, da sua mais profunda expressão (gravada) da verdade abstracta.
Uma nota sobre os seus projectos recentes: The Bridge, The Attic + Eve Risser, Unity, etc.
Aparentemente no topo das suas capacidades, Amado tem enveredado por novos caminhos, começando a explorar outra formação clássica do jazz: o quarteto com saxofone e piano, com destaque para um novo grupo all-star internacional, The Bridge, com o pianista Alexander von Schlippenbach (que integrara o último registo do Motion Trio), o contrabaixista Ingebrigt Haker Flaten e o baterista Gerry Hemingway. O seu álbum de estreia, Beyond the Margins, foi, muito possivelmente, o mais aclamado da carreira do saxofonista até então, estando ainda a ser preparados mais dois álbuns do grupo. The Attic continua a dar cartas, tendo editado o extraordinário La Grande Crue, que juntou o trio base à compositora-pianista Eve Risser. Além disso, Amado formou recentemente uma nova working band lisboeta, de seu nome Unity, com o pianista Rodrigo Pinheiro, o contrabaixista Hernâni Faustino e, uma vez mais, Ferrandini — em suma, os membros do emblemático RED trio. Wrecks, um novo registo ao vivo com David Maranha (órgão eléctrico), no qual o free jazz e a música drone se fundem organicamente, é também digno de nota.