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Fotografia: Pedro Mkk
Publicado a: 22/12/2018

Um conto de Natal Marginal com KESO e Chullage no Pérola Negra

Fotografia: Pedro Mkk
Publicado a: 22/12/2018

Nuno Guimarães é pasteleiro. À porta do Pérola Negra, já depois das 22h30, enquanto aguarda para entrar, explica que esta será uma noite de directa: “Começo a bulir às cinco. A fazer pão de ló, mas não faz mal, já avisei o chefe que vou chegar todo estoirado”.

O Nuno está no Pérola Negra por militância e devoção, por admiração genuína e sincera de gente como Pibxis ou KESO, que conhece e segue há muito. Com ele estão mais 400 almas que esgotaram a capacidade do renovado espaço que promete argumentos extra para a noite do Porto.

Durante a tarde, quando se testava o som e se calibravam as Funktion One para a função de acomodar agudos, médios e graves mais tarde, Lowrasta, MC que acompanha Chullage, maravilhado com a decoração da antiga casa de strip, sugeria, certeiramente, que parecia cenário de Scarface. Só faltou mesmo Tony Montana, de corrente de ouro condizente com todos aqueles estofos vermelhos. Carisma, de facto, sobra no Pérola Negra.

Poucos parecem importar-se com isso, no entanto, quando DJ Spot começa a debitar batidas gordas, percorrendo o caminho que não separa mas une Sean Price a Sam The Kid, cortando onde há que cortar, repetindo quando quer fazer suas as palavras dos MCs que vai alinhando: “Fuck Donald Trump! Fuck Donald Trump! Fuck Donald Trump..” O hip hop consegue resistir e fazer a festa ao mesmo tempo.

Quando Pibxis pisa o palco, os seus já o amparam. O MC da Invicta, “rei do rap” como entoam em coro os que o seguem, desfila temas de Esquizografia, o EP produzido por Keso em que aborda as suas lutas interiores, para rapazes-homens que continuam a vestir calças largas como se 2003 continuasse aí e se celebrasse a chegada das férias depois de um dia de aulas. Afinal de contas, esta é noite de Natal do Marginal, certo? Com as batidas pesadas que ecoam as agruras da vida e as palavras a funcionarem como as alavancas com que se tiram obstáculos do caminho. O rap também é isto. E “palhaçada”, como relembra um Pibxis visivelmente feliz, antes de se atirar a “Brownshuga”…

Numa sala na penumbra — deveria rever-se esse pormenor… —, Chullage chega com as palavras de José Mário Branco a relembrarem-nos que nada somos sem os nossos companheiros, antes de desfiar, com a ajuda de Tayob, certeiro nos pratos, e Lowrasta, seguro nas dobras, um alinhamento forte, que só evidencia o seu tremendo carisma e o poder das suas cortantes palavras: “Já Não Dá”, “Fechar os olhos para não ver”, “Da Hype”, “Montar um quilombo”, “Só fica a raiva” (um par de novidades com carimbos de Sam The Kid e Tayob J), “Niggas” e, claro, os hinos “Rhymeshit Que Abala” e “National Ghettographik”, canções de protesto eternas e prementes, sem coletes amarelos, mas cheias de nervo e urgência. Tayob foi imperial na forma como geriu as batidas, sabendo complementar o seu MC com subtis toques de classe no prato ou na mesa de mistura. Como deve ser. E Lowrasta também nos mostrou o seu “Mind Power”, perante a entrega sem reservas da multidão que por esta altura já lotava o espaço.

Quando KESO finalmente se chegou à frente, o Natal estava ganho, claro. Este homem é um gigante. Não há outra crónica dos dias doridos da austeridade, aqueles que forçaram tanta gente a correr para fora em busca de trabalho, como Ksx2016. Que KESO continue a dar-nos esses temas é uma eficaz forma de nos relembrar, mesmo quando parecemos ofuscados pelas luzes da quadra que nos empurra para o consumismo que Chullage denuncia nas suas letras, que o abismo está sempre próximo. Mas onde cabem corpos cabem sonhos, e certamente que ontem no Pérola Negra não faltaram sonhos nas cabeças daquelas pessoas. São elas que dão ao rap esta espessura de cancioneiro, repetindo as rimas significantes que importa inscrever na memória. “E façam barulho para Almada Negreiros”, insta o Marginal. Com DJ Spot e Minus ou Kapataz em palco, com as palavras certas na ponta de uma língua que cospe imaginação, KESO tem razão quando reclama “I’m a clássico”. É pois. E os clássicos não cansam. Não se cansam. São eles que correm por nós.

O pasteleiro Nuno ainda nos acena. “O meu Natal está mesmo ganho…” Percebo-o, mas não consigo deixar de pensar que na verdade ainda tem muitas horas de trabalho pela frente para realmente o poder ganhar. É para ele, e para outros e outras como ele, que as palavras de KESO e Chulla servem. Para lhes dar o ânimo que precisam para picar o ponto.

Até já, Pérola Negra.


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