pub

Publicado a: 10/08/2015

Tyler & Earl: o futuro é estranho

Publicado a: 10/08/2015

[FOTO] Direitos Reservados

 

Uma sessão de zapping entre os canais disponíveis num quarto de hotel de aeroporto numa capital financeira europeia, já a noite vai avançada, revela apenas a CNN como janela sobre o mundo disponível numa língua compreensível. E na CNN mostra-se a cobertura da influente conferência Code/Media onde se discute o futuro dos meios de comunicação e novos modelos de negócio. Coisa séria, claro, com representantes de marcas gigantes como Twitter ou o New York Times a discutirem estratégias de sobrevivência num universo povoado de tablets e smartphones. E, de repente, ladeado por dois brancos de blazer e entradas pronunciadas sobre o couro cabeludo, eis que surge um jovem negro, com um hoodie branco, um chapéu com a palavra Golf e Vans nos pés. A única razão para que um skater apareça numa conferencia tão séria como a Code/Media é esse skater responder ao nome de Tyler, The Creator.

Tyler passou pela Code/Media para juntamente com manda-chuvas da Whalerock Industries revelar ao mundo que pode estar prestes a lançar a sua própria rede social (afinal de contas, na faixa de abertura de Cherry Bomb, o seu novo álbum, uma das primeiras frases que atira para o ar é “fuck your snapchat”…). A primeira vez que abre a boca, Tyler refere o quão estranho é estar num evento assim: “Toda a gente é muito mais velha, provavelmente não temos os mesmos interesses, mas é bem cool”. E depois prossegue: “Não quero ser aquele tipo, mas tenho que dizer que parecem ser só homens e mulheres caucasianas com mais idade. Alguns negros no público?”, pergunta o rapper, antes de exultar por contar dois ou três – “dois e meio, na verdade, tu és mulato”, ironiza. Depois, o CEO da Whalerock Lloyd Braun entra no modo business e faz uma introdução apoiada em termos muito técnicos que Tyler interrompe para esclarecer quais as suas reais intenções: “o que nós queremos é eliminar o intermediário e chegar directamente às pessoas”.

Tyler pode parecer um miúdo, vestir-se como um skater acabado de sair do liceu, mas percebeu, antes de todos os tubarões desta indústria, que a internet lhe dá todas as ferramentas necessárias à construção do seu próprio império. Primeiro com o Tumblr e depois com o Twitter, Tyler construiu uma sólida base de fãs que lhe permitiu, no final de 2009, estrear-se com Bastard, eliminando de facto os intermediários e indo directamente à jugular dos fãs. E enquanto a indústria ainda se debatia a discutir se os downloads eram ou não o futuro, como castigar quem descarregava música ilegalmente da net, etc, Tyler, que então contava apenas 18 anos, parecia dizer “ignorem-nos a todos e sigam-me”. E as pessoas seguiram-no: actualmente, o rapper conta com quase dois milhões e meio de seguidores no Twitter (conta @fucktyler) e começa também a perguntar-se se realmente precisa dessa plataforma, argumentando que os tweets que vai disponibilizando, que já são quase 40 mil, são conteúdo que está a oferecer a uma plataforma alheia. No Code/Media revelou que poderá em breve convidar os milhões que o seguem em plataformas como o Twitter ou Tumblr para o acompanharem para uma nova rede. Fuck Tyler? Isto é mais a sério do que vocês pensam… “Fuck your snapchat” adquire logo outro peso.

 


 


Tyler, The Creator, quando não está a vestir a pele de orador em conferencias decisivas para o futuro dos media, quando não está a desenhar roupa (é a isso que se refere a palavra Golf estampada no seu chapéu ou no hoodie branco com que apareceu na Code/Media), a pensar em séries de televisão, a Tweetar para milhões ou a skatar no parque mais próximo de casa, também faz música. E aos 24 anos já conta uns impressionantes quatro álbuns – Bastard, Goblin, Wolf e agora Cherry Bomb – que se juntam ao trabalho adicional que vai fazendo no seio do colectivo Odd Future que surgiu quando Tyler contava apenas 15 anos, em 2006. Em 2010, Earl Sweatshirt juntou-se ao colectivo. Tinha apenas 16 anos, mas ajudou a solidificar uma força em que se contavam já os talentos de Tyler e Hodgy Beats e a que se juntariam igualmente os de Domo Genesis ou Frank Ocean.

Em 2015, quando já quase se cumpriu uma década sobre os primeiros passos de um colectivo que no início não parecia mais do que um bando de arruaceiros à solta no Tumblr, é impossível não ler na quase sintonia da edição de Cherry Bomb e de I Don’t Like Shit, I Don’t Go Outside as marcas de uma estratégia de dominação qualquer. Até a dicotomia extrema das capas parece esconder uma mensagem: Tyler, The Creator apresentou não um, mas cinco designs diferentes para Cherry Bomb, todos, de alguma forma, a oscilarem entre o berrante e o chocante, todos a apresentarem Tyler como uma espécie de figura demente. E depois há I Don’t Like Shit, I Don’t Go Outside: capa completamente negra, grafismo anódino. Uma ruidosa orgia gráfica de um lado, silêncio completo do outro. O que não significa que o rapper que editou Doris após finalmente regressar do internato para onde a mãe o tinha enviado (esse álbum data de 2013) seja um elemento mais fraco neste duplo assalto a 2015. Pelo contrário. Artisticamente, Earl é superior a Tyler e provavelmente tem que ser medido com a mesma régua que se reserva para tentar perceber o alcance de gente como Kendrick Lamar ou Kanye West, mas o rapper sabe que a sua força é também a força do colectivo: “Niggas, my team is magician/We think of the shit that we want then we get it“, exclama ele em “DNA”, um dos mais fortes temas de um álbum que, na verdade, não tem momentos menores.

 


 


A palavra chave na frase de Earl é, muito claramente, think. O que parece ser uma estética baseada num imediatismo desmiolado – Tyler a fingir que se enforcava ou Earl a arrancar uma unha nos seus primeiros vídeos – parece ser, afinal de contas, o resultado de uma estratégia com pés e cabeça. Tyler, The Creator, Earl Sweatshirt e os restantes companheiros viram algo neste mundo da internet antes de todos os outros. E a partir de um cruzamento de referencias ininteligíveis para os caucasianos brancos mais velhos com quem Tyler se meteu durante a Code/Media – Vans e Supreme, MF Doom e Wacka Flocka, James Pants e Six Flags – ambos construíram um universo que capturou a imaginação de uma geração inteira.

Os próximos episódios desta história vão certamente incluir o novo álbum de Frank Ocean, que se projecta para o próximo Verão e que viverá de produções do próprio Tyler, de Danger Mouse e daquele que parece ser a eminência parda de Cherry Bomb, Pharrell Williams. O homem dos N.E.R.D. é, de facto, e musicalmente, uma inspiração para Tyler, The Creator que no novo trabalho parece assumir mais a sua condição de produtor, assinando todos os beats, mas recrutando gente como Dâm-Funk, Roy Ayers ou até uma secção de cordas para gravar no estúdio de Hans Zimmer, o premiado compositor de bandas sonoras.

Tal como acontece no disco de Earl, também auto-produzido, o jazz é uma inspiração, o que significa que há por aqui uma clara ambição artística que ecoa a complexidade já demonstrada em To Pimp a Butterfly de Kendrick Lamar e que antecipa a bomba que Kanye West pretende certamente assinar com SWISH. Kanye, surge aliás, em “Smuckers”, um dos mais fortes temas de Cherry Bomb, ao lado de Lil Wayne. Nesse tema, ele tem uma rima brilhante que o posiciona na pole position para esta intensa corrida rap de 2015. Pergunta Kanye “Why don’t they like me?” antes de apontar uma possível resposta: “Richer than white people with black kids/Scarier than black people with ideas“. A frase é o resultado da observação da imagem que Yeezy tem diante do espelho, mas poderia bem descrever o próprio Tyler. Ele é uma black person with ideas. E ter uma ideia, neste futuro estranho que se transformou em presente, é bem mais importante do que ter dinheiro ou fama ou o que seja. E a ideia de Tyler é simples: cortar o intermediário e falar directamente com as pessoas. Parece simples não parece?

*Texto originalmente publicado na Blitz.

pub

Últimos da categoria: Ensaios

RBTV

Últimos artigos