As copas das tílias pintam verde sobre os azuis, vermelhos e amarelos dos prédios esguios. Ainda o crepúsculo não trouxe a noite a este pequeno éden urbano, algures na zona dos Anjos, quando recebemos a segunda chamada de Ailton José Matavela em cinco minutos. “Acho que aconteceu uma coisa horrível”, anuncia o músico de Maputo que responde por TRKZ(pronunciado “tricks”). O caminho em escalada trouxe-nos até um ominoso boneco, com cartão em vez de tecido vital e CDs no lugar de olhos, guardador de uma escadaria que subimos até meio. Num corte à esquerda, descemos para a origem; pela saída sobranceira, adivinha-se outro curso. Procura-se Matavela, quando o próprio nos telefona para nos notificar de um imenso horror: “Subiste demasiado!”
Não é a calma esperada do homem de 25 anos que compôs, cantou e desenhou o seu álbum de estreia, Storytellers, um enredo sensorial que é um dos mais bem guardados segredos de 2019. Menos imprevisto é o trato simpático, simples, com que nos abre as portas para o seu mundo — que, a estas horas, se resume a um modesto apartamento onde está hospedado para actuar no Festival Iminente, em que é repetente (tocou no palco principal em 2017); mais tarde, o seu cosmos será a habitual sala de ensaios da sua conterrânea Selma Uamusse. No epicentro do bulício, está o longa-duração que enrijece o talento de Matavela em todas as frentes de trabalho (no estúdio e no palco), e lhe dá prova substantiva de ser uma promessa maior da música moçambicana — a seu tempo.
“Tudo vem a seu tempo e nunca fui impaciente”— quando este adágio sai dos seus lábios, a lembrança é instantânea: passam cinco meses desde que Matavela surgiu na nossa caixa de entrada do Twitter, o seu perfil envolto em promoção independente e os seus números de audição no Spotify na casa das centenas. Apesar da estratégia ser flagrante, alinhada com todos os artistas de quarto — bem-intencionados, a padecer severamente de revisões e masterização —, a redenção é imediata. À primeira escuta, Storytellers desarma com a qualidade técnica: a abertura de “Hell in Paradise / Ying Yang” seduz com a instrumentação táctil e a voz de Matavela, desdobrada, que flui em estéreo, em jeito compassado, a descortinar um amor talvez unilateral, absolutamente impreterível. Cada faixa desvela uma cascata de melodias sencientes, livres para instalar o seu compasso, confundindo-se com uma natureza reconstituída em som; o canto de pássaro é omnipresente, parecendo simultaneamente mimetizado e extraído da biosfera.
Agora, essa voz deixou de ser apenas matéria sonora para estar sentada à nossa beira, nas vésperas da sua segunda actuação em Portugal. Maputo conseguiu encontrar uma maneira de marcar presença — “há coincidências fantásticas”, diz a sua agente sobre o panorama que adorna a parede atrás do sofá: uma fotografia estilizada da capital de Moçambique, interceptando a rua onde Matavela continua a viver. Nasceu em Fevereiro de 1994 e cresceu nessa cidade pequena, uma rede de pessoas em permanente ligação e convivência, mas “que não dorme”: é longo o inventário de projectos artísticos a decorrer, potenciando uma cena musical próspera que o músico narra na primeira pessoa.
Em 2016, por via da associação cultural Kulungwana, juntou-se como barítono à orquestra juvenil de canto lírico do projecto Xiquitsi, cuja proposta consistia na instituição de uma temporada de música clássica em Maputo. No ano seguinte, por convite do Centro Cultural Franco Moçambicano — rampa vital para os jovens criadores, através de apoios e residências artísticas —, uniu-se ao profícuo Tiago Correia-Paulo para formar os Continuadores. Um duo com eco internacional, foi igualmente a interface para outro colectivo, o Cantinho das Cores, dinamizado por Matavela, ao lado do instrumentista tradicional May Mbira — perito da mbira e da xigovia — e o “excepcional” Nandele, beatmaker de serviço, sem “papas na língua”.
Face à marrabenta que ribomba nas rádios e o hip hop omnipresente (entre um foco do marketing na “forma como as pessoas vendem a imagem” e a crueza do rap do “semi-deus” Azagaia, uma referência sua), está a música alternativa de Moçambique. Preside-lhe uma lógica de colaboração a que Matavela não se evade, mas, fora de associações, ele mesmo foi uma semente, tendo encontrado pasto fértil junto de amigos que começaram a emular em gravações caseiras o rap português, nos píncaros de Serviço Público, (Pratica)mente e A Árvore Kriminal. “Era uma explosão de informação. Eu antes não conseguia perceber [todas as] mensagens que eles transmitiam”. A Valete, Sam The Kid e Allen Halloween, além de Azagaia, pediu emprestado o cunho confidencial e a ambição intemporal. “Podes falar de uma coisa íntima tua e, de repente”, prossegue, “a situação ocorre e [é] a realização dessa profecia que te dá a parte espiritual dessa jornada, que te fortalece.”
Descobriu-se a solo em 2016, após ingressar na faculdade de psicologia, na transição da sua adolescência para a idade adulta: “Dramatizamos e moldamos aquilo de tal maneira que a tua vida vira um filme, uma novela.” A de Matavela valeu-lhe um EP: o frontal e consciente Filhos da Terra era o produto tanto de influências do hip hop importado de Lisboa como de uma Maputo electrizada por insónias, sob uma ogiva orgânica de som (com laivos de The Stepkids e Toro y Moi). Foi o projecto (promovido em terras lusas pela Rádio Oxigénio) que o conduziu à sua estreia no Iminente de 2017, abrindo o palco principal para Allen Halloween. “Fui ter com ele e disse ‘eu escuto a tua música desde que eu tenho 11 anos de idade’ e ele responde [imita a voz grave de Halloween] ‘Ya, boa cena, meu, fixe’. Tão indiferente, tão vazio. Eu adorei”, recorda com uma gargalhada.
É nas sessões de Continuadores, aboletado em casa de Tiago Correia Paulo, que Matavela forma a ideia para um novo projecto: Storytellers. A “bolha” que os envolvia estendia-se para lá das paredes de casa, erigindo uma redoma sonora com a sinfonia dos pássaros. “Comecei a pensar em diferentes habitats e espécies”, teoriza, “como os vários elementos da natureza se combinam entre si e criam uma harmonia. Ali, cada pássaro tinha o seu assobio, como se contassem histórias uns aos outros”. Percebeu de chofre que poderia haver uma relação entre o som da ave e a palavra, um verbo sui generis como um primeiro degrau conceptual. Daí, remeteu-o à essência: a música, talhada no design que é agora a sua marca. “Idealizei um escape sonoro em que cada música é uma árvore”: da raiz que considera ser o ritmo (produto da sua costela africana) até aos vários ramos, os instrumentos (aprendidos em regime autodidacta, como com o inglês que ouvia no Cartoon Network) a emitirem frequências díspares ou homogéneas, alinhados como suporte à folhagem da voz, cuja posição secundária na mistura tem a ver com esse contexto doméstico de partida. Tinha de a gravar de madrugada, obrigando-o a adoptar um registo “como se contasse uma história de embalar”, derivando novas propriedades terapêuticas da sua arte.
As ideias procederam quase invariavelmente de Matavela, que recebeu apenas feedback técnico de colegas, e que as descortina connosco de uma forma cerebral e equilibrada. Na sala de estar em que nos recebe, o artista reflecte extensivamente sobre a sua música, cidade, até de identidade. Fala-nos da sua terra natal como uma sociedade de “vidas traçadas desde o início”: de um padrão advêm exigências sociais — mas a satisfação dos deveres permite ganhar tempo a quem sonha mais alto. Como se situa Matavela nisto? “Acho que já quebrei o molde. Consegui tornar-me a minha própria pessoa, [mas] ainda há dificuldades. A vida de artista não é fácil em lugar nenhum”. Nem aquele que o viu crescer: minutos depois do retrato vibrante que traça de Maputo, opõe-lhe outra panorâmica. “Fazes um espectáculo no [Centro Cultural Franco-Moçambicano] e meio que perguntas ‘onde vou fazer o próximo?’”. De um primeiro mergulho que traz um artista à superfície com êxito, poucas correntes conseguem transportá-lo para mais longe. Um certo par de ouvidos poderá dar-lhe asas, mas é fácil bater no “telhado” de um país cujas coordenadas muitos desconhecem, e que no passado mês de Abril viu várias cidades serem devastadas por dois ciclones. “Nós estamos na esquina do mundo, percebes?”
Há outra pergunta incontornável: sair de Maputo é uma possibilidade? Para nossa surpresa, a resposta vem na ponta da língua. “Definitivamente a melhor opção”, diz, já sem vestígios do seu sorriso. “Tenho muito amor pela minha nação e Maputo é um lugar onde eu adoro estar” — e onde, de facto, vai permanecer nos próximos tempos. Reconhece a necessidade de fazer estrada pelos vários continentes, tal como vê que este desejo colide com os preços proibitivos dos voos a partir de Moçambique. Sobre a sua vinda para Lisboa, a propósito do Iminente, esmiúça que um músico compatriota não reúne “capital suficiente para isso — eu, pelo menos, não o fiz, para poder ter o meu voo em avanço. Tive que criar créditos para estar aqui. Não é fácil.”
E vale a pena? Essa resposta já não lha retiramos em verbo, mas num olhar, a meio do aguardado concerto no Panorâmico de Monsanto. A cave recebe-nos com recordações vídeo do extinto bairro da Pedreira dos Húngaros; os portadores de bilhete que tendem a circular livremente, por uma hora, interrompem o fluxo. Todos se deixam subordinar à aura de TRKZ — de outras entidades, já não falamos: a dimensão espiritual é deixada ao critério de cada um; a divindade com que falava em Filhos da Terra não ficou para Storytellers, onde o nexo é da interpretação pessoal, da “interacção entre luz e sombra”, de um jogo entre melodias e harmonias que cria um pêndulo entre dúvida e segurança.
Vemo-lo nesse intervalo quando se agacha, examinando cada membro da banda (incluindo o percussionista Natalian Melo, emprestado de Uamusse) a traduzir a franca e florescente linguagem que escreveu. O seu olhar é generoso, trémulo, disponível. E paciente — porque cada capítulo da sua história é ainda folheado aos fragmentos. Se as raízes estão fixadas e os pássaros já chilreiam à sua volta, só falta a TRKZ água, luz e tempo. Sejamos pacientes também. “Acho que se chegássemos logo no fim e tivéssemos as coisas que precisamos, não teria graça passar pela jornada e criar a tua história. Acho que estou num caminho bom, sinto-me aceite, sinto que as pessoas cada vez mais vão ouvindo e que o leque de fãs e pessoas que admiram a música vai crescendo: tudo é gradual, as coisas não vêm do acaso e cada coisa leva o seu tempo.”