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Publicado a: 11/10/2018

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[TEXTO] Miguel Santos

No passado dia 6 de Outubro, o segundo episódio da 44ª temporada da série Saturday Night Live teve como convidado musical Travis Scott. O rapper de Houston foi acompanhado por uma banda de luxo: Kevin Parker no baixo, embaixador do rock psicadélico australiano que ultimamente tem mostrado os seus dotes na música pop, John Mayer na guitarra, instrumentista dotado e um dos nomes mais populares na arte das seis cordas, e Mike Dean nas teclas, um dos homens que mais mão tem no hip hop do Sul dos Estados Unidos, e um mentor e colaborador frequente de Kanye West. Esta mistura ecléctica de colaboradores está directamente ligada uma frase extremamente relevante de “SICKO MODE”, um dos temas de destaque do novo álbum de Scott, ASTROWORLD:

“Who put this shit together? I’m the glue”

Isto são mais do que barras fanfarronas: é o manifesto da música de Travis Scott que atinge o seu auge neste terceiro longa-duração do rapper americano. A sua ascensão estratosférica — há cinco anos era assim — que era um concerto de Travis Scott — não é fruto do acaso: o seu trap soa mais expansivo que o de outros artistas do género, mais ambicioso. Há uma aura comum a outros rappers na sua música, um mundo de niilismo e de descontrolo toxicómano e alucinogénico, mas Scott mostra-se assertivo e minucioso ao leme da produção e estética do álbum. Rodeo foi a definitiva prova disso: no primeiro álbum de Travis Scott, as canções tinham mudanças de batidas bem orquestradas, elementos progressivos e desvairados, e um uso criativo do Auto-Tune, uma ferramenta sonora cada vez mais saturada. Todos estes elementos unidos resultaram num trap distinto de Scott. Depois de um desvio sonolento com a sequela Birds in the Trap Sing McKnight, ASTROWORLD continua a caminhada principiada por Rodeo.

A melhoria é clara em todos os aspectos que caracterizam a música de Travis Scott: bangers potentes como o single “BUTTERFLY EFFECT”, “HOUSTONFORNICATION” ou “NO BYSTANDERS” garantem que La Flame tem novos sons para manter as suas potentes performances ao vivo e a atmosfera psicadélica e cósmica que caracteriza a sua música transparece mais do que nunca, especialmente em temas como “CAROUSEL”, que conta com um hook confortável de Frank Ocean a unir um turbilhão de momentos que confluem entre si, ou a arrepiante “CAN’T SAY”, um acto de rebeldia, de jovens que fazem o que querem quando querem e com querem, um tema intoxicante com uma participação efusiva de Don Toliver e com um hook que fica facilmente alojado no local da mente que alocamos para bangers. Há espaço também para momentos mais calmos como “R.I.P. SCREW”, uma homenagem sentida a DJ Screw, músico de Houston falecido em 2000 que popularizou chopped and screwed e que influenciou incontáveis artistas. Este não é o único tributo de Scott à terra que o viu crescer e tornar-se uma super estrela. Ao longo de ASTROWORLD ouvem-se samples de temas de proeminentes músicas da comunidade texana, bem como interpolações de letras, mostrando que, apesar de ser um dos maiores nomes do hip hop do momento, Scott tem uma outra missão em mente: “Make Houston Hip Hop Great Again”.

La Flame conta com um batalhão de produtores e colaboradores que tornam a sua visão sonora e estética em realidade. À semelhança de Kanye West, Scott rodeou-se de talentosos músicos e artistas para engendrar o melhor plano musical possível, sem nunca esquecer que o tema principal é ele mesmo, tudo gira à volta dele. Em temas como “STARGAZING”, a potente trip que arranca o álbum, ouvimo-lo falar brevemente sobre o seu passado como motivo para actualmente se perder nas drogas, e “ASTROTHUNDER” é especialmente confessional, uma faixa que junta uma linha de baixo melancólica do baixista prodígio Thundercat e uma guitarra ambígua de John Mayer a barras introspectivas de Scott sobre o que o assola e alguns dos seus problemas:

“Hands up, why they tryna reach? I can’t even get that deep
Told you I don’t teach, yeah
Practice, oh, no, never preach”

“COFFEE BEAN” vai mais longe e com uma batida atípica de se ouvir numa música de Travis Scott e teclados intermitentes termina o álbum em grande e deixa um sabor agridoce na boca. A voz de Scott é seca, desprovida de auto-tune e encharcada no seu próprio eco, mostrando um homem vulnerável. A faixa tem todo o ar de uma confissão nocturna depois de horas e horas a fio no estúdio. É um de vários momentos em que as emoções de Scott estão descobertas, e nota-se uma maturação do artista e um explorar mais profundo da sua psique em ASTROWORLD.

Mas onde Scott se destaca mesmo é no seu papel de curador, de “organizador de jogo”. Como produtor executivo de ASTROWORLD — além do já referido Mike Dean — o rapper não deixa nada ao acaso e, através de junções pouco ortodoxas, consegue mostrar algumas das melhores músicas da sua carreira. Em “STOP TRYING TO BE GOD”, um dos pontos altos do projecto, Scott junta a uma batida trap os solos fenomenais de harmónica, cortesia do mítico Stevie Wonder, um murmurar pensativo de Kid Cudi e um outro de ponderação cantado por James Blake, numa canção de aconselhamento, de confronto suave. Em “SKELETONS”, cospe barras interestelares e celebrativas por cima de uma batida produzida por Kevin Parker. É a banda sonora de um foguetão inaudível a descolar da Terra e apesar do curto tema destoar do resto do álbum não deixa de ser um grande contributo com os seus sintetizadores leves e abrangentes, característicos da música de Parker, e que transita de forma orgânica para “WAKE UP”, o passeio romântico na Lua, uma música amorosa com um refrão pouco inspirado.

Ainda que o projecto seja o trabalho mais conciso de Travis Scott até à data, há alguns momentos em ASTROWORLD que certamente beneficiariam de mais tempo de maturação. Faixas como “YOSEMITE” ou “5% TINT” são pouco desenvolvidas, ideias esparsas que são produzidas de forma competente mas que nunca deixam uma impressão duradoura no contexto do álbum e da música que Scott faz. Ainda assim, essas músicas não deixam de contribuir para uma fluidez inerente ao projecto, um deslizar sem espinhas entre as várias canções que o compõem. Mas temas como “NC-17” e “WHO? WHAT!” — esta última quase parece roubar o hook a “BUTTERFLY EFFECT” — são temas que engordam uma tracklist que certamente não sentiria a sua falta.

ASTROWORLD é o mundo de Travis Scott. É o culminar das habilidades do rapper enquanto organizador de ideias e o apogeu de uma sonoridade cada vez mais individual. É a declaração musical de um dos mais recentes e mais interessantes players do trap, um que talhou o seu caminho pela indústria esforçando-se sempre para inovar. O álbum mostra que a estética de um álbum é tão importante como o som que emana, e Travis Scott sabe-o melhor do que muitos, provando definitivamente que a sua música é trap de autor.

 


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