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Fotografia: Vanni Cremasco
Publicado a: 07/12/2022

Entre Itália e os Estados Unidos da América.

Tommaso Cappellato: “Amo mais a música do que a bateria”

Fotografia: Vanni Cremasco
Publicado a: 07/12/2022

Tommaso Cappellato é um daqueles músicos que por vezes se movimentam nas sombras, assumindo um segundo plano que não traz visibilidade, mas que deriva do respeito de pares que fazem questão de os convocarem para as suas sessões. Olhando para a (certamente incompleta) lista de participações suas em trabalhos alheios disponível no Discogs, percebe-se imediatamente que este baterista italiano é um corredor de fundo capaz de ir de Nicola Conte a Mark de Clive-Lowe enquanto o diabo esfrega um olho. Por isso mesmo, quando foi anunciada a estreia do seu Collettivo Immaginario, a excitação deste lado foi significativa.

Numa ligação Zoom Portugal-Itália, conversou-se sobre referências e mestres, sobre library music e jazz-funk do Brasil, sobre a construção de uma identidade e o peso da memória televisiva, recolhendo-se aí dados importantes que ajudam a compreender melhor Transforma, o belíssimo álbum recentemente lançado com selo da Domanda, uma etiqueta gerida pelo próprio Tommaso Cappellato.



Gostava de começar por te perguntar onde estudaste música. Isto se é que tiveste algum tipo de educação musical mais formal, claro.

Sim, tive. Comecei a tocar bateria aos 11 anos. Apaixonei-me pelo jazz à volta dos 15. E apesar de sempre ter querido ter aulas de bateria, só me foi possível ingressar nelas aos 17 anos. Senti imediatamente que tinha de estudar com os mestres. O facto de eu ser italiano… Há muitos músicos a surgir na Europa, mas acabam por não crescer tanto. Isto deve-se ao facto de o circuito não ser tão grande e por não existir uma cultura africana muito presente. Por alguma razão, eu tive esta intuição de que deveria ir para uma das capitais do jazz na América. Tive muita sorte em conseguir fazê-lo aos 21 anos, em 1996. Comecei por ir para uma escola de bateria e tive lá durante uns meses. Candidatei-me a uma bolsa na The New School e recebi o valor mais alto que um aluno estrangeiro poderia conseguir naquela altura.

Isso é em Nova Iorque, certo?

É em Nova Iorque, sim. Foi lá que terminei a minha formação, em 2001. Foram quatro anos incríveis, com professores espantosos — verdadeiras lendas — e colegas que se tornaram verdadeiras estrelas da cena jazz actual, tanto no domínio mais vanguardista como nos do mainstream ou do r&b. Estamos a falar do Bilal, do Robert Glasper, do Marcus Strickland, da Mary Halvorson

Quem dirias que foram os teus mestres? Quem foram as tuas referências naquilo que é a forma como tu abordas o instrumento?

Eu tenho sido sempre um aprendiz daquilo que é a história do jazz e ainda hoje há discos e personagens que eu não conheço assim tão bem. Lembro-me de, muito no início, ter sido muito influenciado pelo Papa Jo Jones. Havia também todos aqueles bateristas das big bands — o Baby Dodds, o Sonny Greer ou o Sonny Payne. Lentamente, chego ao Kenny Clarke, ao Max Roach… Está tudo interligado. Se tivesse de dizer os que mais me marcaram, diria o Papa Jo Jones, o Roy Haynes, o Max Roach, Philly Joe, Elvin Jones, até mesmo o Billy Higgins [risos]. Quero dizer, existem tantos… O Jack DeJohnette é, sem dúvida, uma enorme referência para mim, enquanto músico e artista. O Tony Williams, de alguma forma, não me senti assim tão ligado a ele, embora eu adore a forma dele tocar e o seu estilo. Depois, também há os bateristas contemporâneos, como são os casos do Bill Stewart e do Brian Blade. Até já tive a oportunidade de conhecer pessoalmente o Brian. No que toca a influências mais directas, eu tive aulas particulares com o Joe Chambers, o Jimmy Cobb, o Billy Hart ou o Victor Lewis. O professor que tive durante mais tempo e com o qual ainda mantenho contacto é o Michael Carvin. Ele não é um baterista tão conhecido mas participou numa data de discos, como o Elevation, do Pharoah Sanders, que nos deixou recentemente. Tocou com o Jackie McLean e também com uma data de artistas da Motown. O Michael é, sem dúvida, uma grande influência.

Antes de começarmos a falar sobre o teu novo disco, eu gostava de saber qual é a tua opinião sobre esta nova geração de bateristas ultra-técnicos que têm surgido. O seus estilos dão ênfase a notas muito rápidas e a padrões rítmicos muito complexos. O que é que tu pensas disso?

Diria que é uma evolução natural. Acho que, enquanto seres humanos, estamos sempre abertos ao desafio da mudança e do melhoramento. Eu revejo-me nisso, totalmente. Acho que, quando te tornas num músico adulto, podes ter uma técnica incrível, mas aí escolhes não tocar certas notas. Começas a ver a beleza nessas coisas. Há músicos jovens com muita destreza. Penso que o seu talento vem de uma destreza muito grande. E tu sentes isso quando os vês a tocar. Eu tive de estudar e praticar muito para atingir um pedaço dessa destreza. Eu tenho-a. Mas o meu foco nunca foi o de exibi-la. Amo mais a música do que a bateria. Quando toco, “como é que eu posso servir esta música?” Há alturas em que servir a música é optar por não tocar. Há vezes em que a direcção é essa. Existem outros bateristas que conseguem usar sempre essa destreza e, ainda assim, fazer com que a música soe bem. E não é fácil, tu conseguires tocar muitas notas e deixares a música respirar. Mas, claro, é divertido e impressionante. A indústria musical tem diversos segmentos. Um deles é, certamente, o do entretenimento. Eu não quero ofender ninguém, mas há vezes em que tu estás num concerto e parece que foste ver acrobática. Entendes? Há outras vezes em que tens uma experiência mais profunda. A música nem sempre surge de forma fácil e tu tens de estar muito concentrado. Também podes optar por outro tipo de experiência. Acho que tudo isso é bonito e faz parte de uma mesma coisa.

Qual foi o impulso que te levou à formação do Collettivo Immaginario. Já tinhas o conceito em mente antes de te juntares a estes músicos?

Tenho um longo historial de projectos em meu nome, como líder ou co-líder. Nessa altura eu ainda vivia em Itália. Já tinha estado em Nova Iorque, durante nove anos, quando fui para estudar. Por motivos pessoais, voltei para Itália, embora tenha continuado a visitar os Estados Unidos, até por questões de imigração. Em Itália, por não existir propriamente uma cena, precisei de coleccionar — no verdadeiro sentido da palavra — algumas pessoas e tê-las à minha volta. Em 2018, o meu estatuto enquanto músico estava a subir ligeiramente. O meu agente disse-me, “por favor, não podes mesmo aceitar esses concertos pequenos na tua zona que estavas habituado a dar em troca de uma quantia qualquer. Tens mesmo de aguentar e, depois, fazes uma digressão assim que as datas certas surjam”. Eu disse “ok, mas preciso de tocar. Amo tocar. É a minha vida”. Então, aluguei um estúdio perto da minha casa, em Padua, que foi onde cresci. Há toda uma nova geração de músicos incríveis a surgir na cena italiana, e eu comecei a reparar no Nicolò e no Alberto. A combinação entre os nossos sons surgiu naturalmente e foi muito mágico. Eu perguntei-lhes, “vocês querem tocar só por tocar?” E eles, “sim”. Então fizemos isso durante uns seis meses. O nosso primeiro concerto foi no início de Janeiro e foi em Los Angeles — uma cena completamente aleatória. Apesar disso tudo, eu ainda não sabia que ia existir um projecto. Se tu olhares para a minha discografia, que é bastante extensa neste momento, vês que eu vou desde o jazz mais directo ao mais vanguardista, ou do jazz espiritual ao jazz com electrónica. E vai ser sempre assim, porque eu gosto de todo o tipo de música e adoro brincar com os diferentes géneros que foram influenciados pelo jazz. Com o Collettivo, queria que o projecto fosse profundo e pleno de significado, mas que fosse mais acessível, ao mesmo tempo. O mais importante era criamos o nosso som e não estarmos a imitar outros trios que se possam encaixar na mesma atmosfera. Nós não queremos imitar Yussef Kamaal ou assim. Queremos pegar num pouco da nossa identidade, da cultura italiana. A nossa música foi informada pelo jazz, que é uma forma de arte afro-americana, bem como pela música brasileira. Não há como escaparmos a isso. Ao mesmo tempo, tentamos desenvolver o nosso próprio som. Sem dúvida.



Uma das coordenadas para as quais vocês apontam é o da library music italiana, que é algo que me desperta muito interesse. Estas vagas de reedições a que temos assistido permitiram que pessoas como eu pudessem investigá-la já que até aqui os preços eram muito altos. Essa música esteve guardada em segredo durante muito tempo, os arquivos estão agora a abrir-se e eu acho isso espantoso. Qual é a tua relação com a library music italiana? Lembras-te de escutá-la no cinema ou na TV?

É muito interessante, porque nós, italianos, crescemos a escutá-la nos filmes, na televisão. Às vezes, até mesmo nos filmes mais parvos, daqueles que nem escolheria sequer ver. Bastava estares à frente da televisão e era impossível escapares à banda sonora. Quando era mais novo, nunca pensei muito nisso. Até que vejo que se começa a apontar para a tal library music italiana e eu, “claro que sim! Escutei isto a minha infância toda!” Foi preciso alguém começar a dizer que aquilo era fixe [risos]. “Realmente, eu sempre achei isto fixe.” A música dos filmes dos anos 70 é incrível. Tu conheces o Mndsgn, um produtor de Los Angeles?

Claro.

Conheci-o pessoalmente e ele inclusive esteve no meu aniversário, em minha casa, no passado mês de Abril. Já estivemos juntos algumas vezes, mas houve um dia em que fomos à praia, em Los Angeles, e ficámos a trocar impressões sobre os nossos gostos musicais e as nossas ideias. Ele perguntou-me, “tu conheces esta banda sonora do Piero Piccioni?” Era de um filme que eu conhecia mas que nunca tinha prestado atenção à música. Fui procurar no Spotify e descubro lá uma faixa que está ao nível do Head Hunters, do Herbie Hancock. É realmente incrível. E tem piada, porque foi preciso eu ir para L.A. para me aperceber disto [risos]. Isto aconteceu há dois meses. Com os Collettivo Immaginario, temos feito as nossas pesquisas. Temos andado a coleccionar e a ouvir esse tipo de coisas — Piero Umiliani, Piero Piccioni… Também andámos a reinterpretar a música de um grupo muito obscuro, do qual o Ennio Morricone fez parte.

O Gruppo di Improvvisazione Nuova Consonanza?

Esse mesmo. É uma cena mais hardcore e vanguardista, dentro da improvisação. Nós já temos o Collettivo há quatro anos e, por isso, temos um vasto leque de registos que fomos captando em estúdio. Estamos até a preparar o segundo álbum, que será mais experimental e abstracto. É fantástico, depois de tantos anos a ser influenciado pela cultura americana, especialmente a afro-americana, que me é muito querida e com a qual eu cresci. Mas é importante, ainda para mais com tudo o que está a acontecer agora, pensarmos na nossa identidade e encontrarmos pequenas coisas com as quais nos consigamos identificar.

Nas notas do Trasforma, falas no Herbie Hacock e no Lonnie Liston Smith como referências, mas eu tenho especial curiosidade em perceber como é que te relacionas com o som dos Azymuth, até porque é um nome que eu vejo poucas vezes a ser mencionado por outros artistas. Eles ainda hoje são uma banda espantosa.

É engraçado, porque isso também remonta à televisão italiana. Havia um programa que esteve no ar durante, se calhar, uns 20 anos. Chamava-se Mixer e passava na televisão nacional, para aí na Rai 1 ou Rai 2. A banda sonora desse programa era o “Jazz Carnival“, dos Azymuth. Talvez para o Alberto e o Nicolò isto não tenha o mesmo peso, mas eu cresci a ouvir esse tema na televisão. Quando descobri que eles eram um trio brasileiro de jazz-funk, perdi a cabeça [risos]. A dada altura até conheci o Joe Davis, da Far Out Recordings, e já falámos sobre isto. Também os conheci a eles, aqui em L.A.. Eu vivo a dois quarteirões do Large Room, que foi onde eles tocaram recentemente. Há uma cena curiosa da qual só me apercebi há umas semanas: um amigo meu que cresceu exactamente na mesma zona que eu, o Paolo Andriolo, passou os últimos 30 anos a viajar para o Brasil; integrou-se na cena musical do Rio de Janeiro, conheceu todos esses músicos e, em 2010, convidou-me para tocar em algumas das faixas do seu álbum a solo, Rio Funk; ele fez uns overdubs e, basicamente, eu acabei por estar a tocar bateria numa faixa em que o Ivan Conti está a tocar percussão e o Kiko Continentino está na teclas [risos]. Estar num disco desse género, com todos esses tipos… Tenho estudado o som deles, a sua criatividade. São incríveis e uma grande inspiração. Todos nós, nos trio, adoramos o material deles.

Qual é o vosso plano neste momento? Vão andar a tocar este material ao vivo?

Já andamos a tocar ao vivo há algum tempo. O alinhamento dos espectáculos tem sido exactamente o mesmo do disco. Para tornar as coisas um bocado mais interessantes, temos tocado a “Tudo o Que Você Podia Ser“, do Milton Nascimento, e incluímos uma peça que adoramos tocar, do Kaidi Tatham, intitulada “He Laughs She Cries“. Talvez omitamos algumas das partes mais lentas do disco em prol da performance. Já fizemos uma digressão de seis datas, que terminou há umas semanas e nos levou a andar por Itália e Suíça. Tenho um agente muito bom em Itália e outro na Suíça. Ando à procura de maior representação na Europa e isso só acontece com uma maior exposição do disco. ‘Tou a fazer tudo por mim mesmo na editora, da curadoria à assessoria de imprensa. Estou literalmente a fazer tudo sozinho. Ainda ontem enviei uma data de discos que me encomendaram da América. Para a Europa, tenho quem me ajude com isso. Ao estar aqui em L.A., interajo com mais artistas e mais pessoas da indústria. Tento usar isso a meu favor ao expor o disco. Tentar criar aquele hype. Tudo se resume a isso, sinceramente.

Eu diria que está a funcionar. Tenho de te dizer que o teu nome até já me tinha surgido ainda antes de saber que tinhas os Collettivo Immaginario — já trabalhaste com o Kaidi Tatham e com o Mark De Clive-Lowe, nomes que costumo passar no meu programa para a rádio nacional, Notas Azuis. Por isso, mal soube do teu envolvimento neste trio, fiquei instantaneamente interessado. Queres falar-me sobre o teu envolvimento nesta cena jazz mais dançável?

A minha experiência em Nova Iorque foi maioritariamente focada num jazz mais directo ou moderno/mainstream. Embora eu, desde o início da minha estadia lá, tenha lidado ainda com uma cena mais funk/acid jazz, porque era amigo de vários membros dos Groove Collective, uma banda de acid jazz lendária de Nova Iorque. Desde o início do milénio que tenho um trio muito firme com o vibrafonista Bill Ware e o baixista Brad Jones. Infelizmente, nunca chegámos a editar um disco mas tocámos imenso juntos. Durante esse período, eu também ia a festas de dança, em Nova Iorque, e até comecei a tocar ao lado de DJs, no Nublu — lidei muitos anos com essa cena. Então, o tocar ao vivo e o DJing sempre foram aspectos que se interligaram na minha vida. Quando regresso a Itália, conheço um DJ/produtor libanês de quem me tornei muito amigo. Uma vez perguntou-me, “o que andaste a fazer por Nova Iorque? Com quem tocaste? Quem eram os teus mentores?” Disse-lhe que toquei com “este” e “aquele”, mas que o meu grande amigo era o Harry Whitaker, que à data ainda era vivo. O Harry foi como um mentor para muitos dos músicos da comunidade jazz de Nova Iorque. Nos anos 70, foi director musical para o Roy Ayers, compôs o “We Live In Brooklyn, Baby“, trabalhou com a Roberta Flack e compôs um álbum incrível intitulado Black Renaissance, de 1976. O Harry era um tesouro escondido. Eu não conseguia acreditar que aquele meu amigo libanês sabia quem o Harry Whitaker era. “Mas, espera. Como é que tu o conheces?” E ele explicou que, “nós, DJs, somos quem compra os discos . Nós estamos mesmo a estudar quem é quem.” Mostrou-me a colecção dele. Ele considera-se um DJ de techno, mas os discos que ele tem são de Sun Ra, Pharoah Sanders… Ele tinha tudo o que fosse música negra americana. E os nomes que eu via naqueles discos, era tudo de pessoas com quem eu estudei, toquei ou me cruzei em Nova Iorque. Fiquei, “isto é de doidos! Então são os DJs quem andam realmente a investigar o legado do jazz. Os músicos não estão a investir para comprar música, só querem estar em cima do palco”. Há muito ego e os músicos não estão a criar realmente uma comunidade. Comecei a olhar mais para o mundo dos DJs e produtores, mais do que a focar-me nos músicos. Anos mais tarde, esse libanês abriu um clube incrível mas que só durou um ano. Chamava-se Elefante Rosso. Em apenas um ano de programação, o gajo conseguiu o William Parker, o Hamid Drake, DJs incríveis de toda a Europa e América, músicos de jazz locais — eu meio que fui director artístico para a cena do jazz. A dado ponto, ele agenda o Mark De Clive-Lowe e faltava-lhe um baterista. Eu fui-lhe obviamente recomendado e nós entrosámo-nos imediatamente. Desde esse momento que colaboro com ele sempre que vem à Europa. Eu comecei um outro projecto de jazz cósmico/espiritual que era dedicado ao Harry Whitaker, quando ele faleceu. O projecto chamava-se Astral Travel e era um quinteto de músicos locais. Abrimos para o Kaidi Tatham, em Verona, e eles ouviram-nos. A gravação desse concerto foi parar aos gajos da Jazz Re:freshed, em Londres, mas eles perderam-na. Como queriam o disco, nós gravámo-lo em estúdio e eu passei a estar afiliado na cena de Londres. O Gilles Peterson reparou em mim, entrei nos radares de jazz e acho que, desde esse momento, passei a estar mais envolvido com a cena deles. Eu e o Mark começámos a trabalhar mais e mais. Ele trouxe-me para L.A. e pensei, “ok, isto é bestial”. Mudei-me em definitivo há um par de anos.


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