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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 16/02/2023

A quebrar paradigmas.

Titica: “O kuduro tornou-me numa mulher empoderada e respeitada internacionalmente”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 16/02/2023

Nem todos os hérois usam capa. Alguns assumem outras formas. Apresentam-se temperados com doses generosas de irreverência, letras cómicas e movimentos corporais agitados. É o caso do kuduro. Tende a dar vida a muitas vidas que se julgavam perdidas, liberta numa sociedade que aprisiona.

Diretamente de Luanda para Lisboa e Porto, Titica — também conhecida por Ticny ou Pequena Sereia — vem relembrar-nos que Angola nunca foi órfã de referências. Que lá n’A Banda também nascem flores que despertam consciências e fazem-no criando refúgios sonoros.  Que melhor que ter a resiliência como meta a elogiar, é ainda melhor poder dar-se graças à calma que vem depois da tempestade: o descanso merecido de quem já não enfrenta uma batalha quando se olha ao espelho e se reconhece a si mesma.

Titica apresenta-se no Plano B, no Porto, dia 17 de Fevereiro e no Musicbox, em Lisboa, no dia 20 de Fevereiro, para comprovar o que acontece a quem se rege pela filosofia Nietzschiana de “que quem tem um porquê, aguenta qualquer como”.



És das artistas angolanas mais acarinhadas. Inclusive há quem te trate pela tua alcunha, o que por si só já representa um senso de proximidade que existe para contigo. De onde surgiu a alcunha Ticny? Foi-te dada pelos fãs ou já a tinhas?

Através da Própria Lixa. O meu nome de infância é Tica-Tica, depois veio o nome artístico Titica, mas a Própria Lixa tinha alguma dificuldade em dizê-lo. Aliás, o próprio nome Titica, no Brasil, significa “cocó de galinha”, e ainda assim nunca o mudei. E Ticny surge como uma homenagem à Própria Lixa que, infelizmente, já não está entre nós.

Quando dás por ti a olhar para o passado, viver o presente e prospetivar o futuro, como avalias o teu percurso?

Sinto-me realizada, sabes? Não me arrependo de todo o processo, todos os “não” que recebi. Venho de ser amiga das cantoras, depois bailarina delas e depois cantora. De bailarina a cantora, não foi fácil. Toda a gente sabe.

Há uns anos, a internacionalização para ti era só um sonho, agora concretizou-se e de forma bastante sólida. Sentes pressão pra te reinventar musicalmente?

Tenho. Repara, eu tenho de levantar a nossa bandeira do país como mulher angolana e, em simultâneo, quebrar paradigmas ao mesmo tempo que levanto a bandeira LGBTQIA+. Isto tudo acontece enquanto tenho de manter-me firme, com boa música, atual. E enquanto militante e voluntária, sem impôr de certo modo isto em alguém. Só o facto de eu, como mulher preta, estar onde estou já é uma vitória. Eu vim de baixo e sou um espelho para muita gente que veio do gueto. Inclusive esse é o motivo pelo qual uso a expressão “o gueto venceu”, semelhante à expressão brasileira “favela venceu”.

Optaste por fazer do kuduro o teu género musical de eleição, o que te fez apaixonar?

Nós cantamos o que vivemos, expressamos o que nos representa. A nossa água, a nossa ginguba, o nosso calão enquanto povo angolano. As pessoas reveem-se nas letras, na postura. Temos a linguagem e liberdade de expressão do povo.

Ainda assim, foi um ato de coragem começar pelo kuduro numa Angola que ainda o estigmatiza bastante, não?

É verdade. O kuduro não entra em qualquer lugar. Grandes galas e algumas festas, supostamente, não são espaços convidativos para kuduristas muitas vezes. Há vários tipos de kuduro e de kuduristas. Eu, Preto Show, Noite e Dia queremos elevar o kuduro a um outro nível, melhorar a produção e os videoclipes, colocar mais conteúdo nas letras. Penso que a estigmatização vem da nossa forma irreverente de nos apresentarmos, cabelo pintado, brincos, piercing nos lábios — são pouco comuns. Constato inúmeras vezes isto: tenho duas grandes lutas. Uma é quebrar os tabus ligados ao preconceito com a identidade/expressão de género e a outra ligada ao kuduro. Antigamente, aqueles que eram considerados marginais, desistiam da má vida através do kuduro. Era um refugio que mudou muitas vidas.

Revela-nos o teu segredo: onde aprendeste os teus toques de kuduro?

Eu invento os meus toques. Desde que era bailarina que procurava músicas internacionais africanas, desde o Congo à Costa do Marfim, passando pela Nigéria, e ia misturando com toques de hip hop para me expressar corporalmente. Os toques de kuduro têm uma vertente social, eles nascem no meio de momentos de convivência, freestyles ou até mesmo de “personagens” como o vizinho bêbedo que aparecia a dançar e de quem as pessoas se riam e nós aplicávamos esses mesmos toques no kuduro.

Embora já tenhas experimentado fazer outros géneros musicais e colaborado com diversos artistas, desde a Pablo Vittar à Ary, ainda sobram alguns géneros musicais que gostasses de experimentar?

Já fiz todos aqueles com os quais sonhei, desde semba ao kizomba. Inclusive, em 2015 ganhei um prémio de Melhor Semba do Ano com a música “Makongo” que fiz com o Paulo Flores. No geral, gosto de arriscar e mergulhar noutros meios.

Há uma passagem na tua música com o Paulo Flores, que diz “Na esquina, no escuro dos becos/De noite, nas luzes da disco/Quando chamas meu nome é Cinderela/Na tua vida eu vivo atrás do pano, atrás da janela” e que denunciava a hipocrisia que se vivia na sociedade angolana relativamente a pessoas transgénero. Algo mudou?

De 1 a 10, está um 6. Melhorou. Agora as pessoas já exprimem e lidam melhor com os seus sentimentos. Antigamente, ser amigo de alguém trans ou gay significava que só te cumprimentavam se estivessem sozinhos. Havia um medo do que os outros pensariam e vergonha. Hoje em dia essas diferenças já não existem tanto entre amigos, há uma maior aceitação. Os homens heterossexuais e cis tinham vergonha de dançar com os gays e hoje em dia já não existe tanto essa barreira.

Mencionas muitas vezes que houve um ponto de viragem no modo como olhavas para a tua música, após perceberes que representavas algo maior que tu, uma comunidade. Sentes que existe muita pressão a ser posta em ti?

Não. O meu público não me questiona. Não sou aquela militante que obriga a aceitar algo, mas tento ao máximo fazer perceber que ser diferente não é um problema. As pessoas julgam mas depois quando conhecem têm outra perspetiva. A minha imposição é silenciosa. Como gosto de dizer “o silencio vence”. A comunidade LGBTQIA+ sempre me apoiou.

E se não fosse a música, que caminho terias escolhido?

Cresci a ouvir que os gays em Angola não conseguiriam emprego fora de áreas como a decoração. Sempre sonhei alto e quis ser patroa de mim mesma. Talvez acabasse por ser empresária de moda. Sou muito vaidosa. Em pequena eu já vendia a roupa das minhas amigas.

A música renovou a tua auto-estima?

Eu era rocha [calão para podre/má musicalmente] quando comecei, não tinha sucesso, nem credibilidade. Quando me convidaram para cantar a primeira vez, nem aceitei. Fui para casa e pensei que só na dança que estava bem. O kuduro tornou-me numa mulher empoderada e respeitada internacionalmente, é de se louvar.

Se pudesses deixar umas palavras a outras mulheres trans que gostavas de ter ouvido no início da tua carreira, quais seriam?

Não tenham medo, arrisquem. Muitas vezes vão ter de engolir sapos porque a vida é feita de batalhas, muitas delas injustas. Mesmo assim, não deixem de ser vocês. Vão receber muitos “não”, mas interpretem-nos sempre como um “sim” noutro lugar. Se idealizaram algo para vocês, vão conseguir alcançá-lo.


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