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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 20/06/2022

A primeira mulher trans a cantar kuduro.

Titica: “A minha música tem de falar mais alto e proporcionar o que eu mais quero: respeito”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 20/06/2022

Se o nome Titica não faz mexer pernas e rabos onde quer que possam estar a ler este texto, é porque o kuduro não vos entrou nos ouvidos, no coração e na vida (tudo elementos importantes para caracterizar o género por excelência da electrónica angolana). Titica começou a carreira como bailarina de kizomba, de semba e de kuduro até que reclamou por si, a pulso, o trono de kudurista-rainha, num percurso em que se revelou não apenas enquanto MC talentosa, mas também enquanto figura-mor da cultura LGBTQIA+ mwangolé. E Titica não é só mulher-rainha-kudurista, Titica é também uma mulher transgénero que rompeu com os preconceitos em Angola para se afirmar enquanto artista e para conquistar o seu lugar enquanto pessoa na sociedade desse país africano.

Numa carreira que já ultrapassa a década, enquanto MC e cantora Titica colaborou com Pabllo Vittar, BaianaSystem, Pongo e Paulo Flores, para além de, enquanto bailarina, ter incendiado palcos com Puto Português e Noite & Dia. Aos supramencionados juntam-se muitos outros nomes incontornáveis da cena musical angolana, numa carreira pioneira, celebrada por audiências nacionais e internacionais e validada com vários galardões e distinções, para a sua faceta de artista, mas também de ativista.

Prestes a lançar o seu quarto álbum, que sucede a Pra quê julgar? (2018), que serve de mote para actuações em Lisboa, no Rock in Rio – e serviu também em Leiria, no sempre incontornável festival A Porta –, a cantora angolana libertou um pouco do seu tempo para falar com o Rimas e Batidas, revelando alguns convidados e detalhes do novo longa-duração e mergulhando connosco na sua ascensão como estrela do kuduro. Importante notar que o fez com a alegria, abertura e simpatia que lhe são tão características, e que permitiram ser uma das figuras principais da comunidade LGBT do continente africano.



Lançaste o single “Waya” há pouco [entretanto saiu “Vai Pegar Fogo”], antecipando o teu quarto disco de longa-duração. Começando pelo mais básico, o que significa “waya”?

Significa “esquivar”. Decidi fazer “Waya” porque é uma brincadeira. Quando eu era mais pequena, eu e os meus amigos usávamos sempre essa palavra quando fazíamos jogos como a “garrafinha”, ou assim. Qualquer tipo de jogo. Quando nos esquivávamos todo o mundo gritava “waya”. E também tem muito a ver com a minha história. Toda a gente sabe que eu sou uma mulher trans. A minha vida sempre foi uma batalha, mas eu nunca fui de bater de frente com ninguém. Tudo o que é problema, eu esquivo. Tudo o que é problema, eu faço “waya”.

E deste disco novo o que se pode esperar, a nível de colaborações, da produção?

Vai ter muitas participações internacionais, de pessoas da Europa, de África, da América. Eu ainda estou a trabalhar nesta quarta obra discográfica. Estou há três anos a trabalhar nela, por causa da COVID-19 — fecha, abre, fecha, abre com os espectáculos. Eu trabalho praticamente sozinha, sem empresário, então estou nessa. Tenho o material promocional, tenho algumas músicas, mas eu estou sempre a reabrir o álbum porque, para mim, fazer música é isso, estar sempre a inovar. Espero que as pessoas gostem, porque este disco está a ser gravado com muito carinho, com três anos de trabalho e músicas escolhidas a dedo. Já tenho 20 músicas gravadas com vários produtores de todo o mundo, dos Países Baixos ao Brasil e, claro, de Angola.

E já podemos saber quem são os convidados do disco?

Ainda é segredo. Estou a guardar essas novidades para mais tarde.

Vou perguntar de outra maneira, se não te importares. Já tocaste com BaianaSystem, com a Pablo Vittar, foste colaborada do Puto Português, da Noite & Dia, do Paulo Flores, da Yola Semedo… quem é que gostarias de ter neste novo disco? Ou já estás num ponto da carreira em que te procuram para colaborações?

Eu acho que nessa vida de arte, de música, é sempre um intercâmbio. É um troca de energias, troca de culturas, troca de sabedorias. Não me importava de parceria com artistas locais, como a Anna Joyce, o Puto Português, o Yuri da Cunha, o Matias Damásio, Alcione… música é isso: é uma forma de trocar conhecimentos e culturas. E eu procuro sempre fazer estas colaborações com os meus colegas de profissão, porque é bom para a minha carreira e para o meu crescimento musical.

Em algumas entrevistas que tens dado mencionas as colaborações como forma de aprenderes e teres novas perspectivas sobre a tua arte…

É isso, mas também é uma troca de fãs, para mim. É uma permuta, em que os meus fãs passam a ser fãs do artista com quem colaboro, e os deles passam a ser meus. Isso para mim é um conhecimento mútuo.

E de que forma é que esta forma de ver as colaborações reflecte a tua forma que sempre encaraste a tua vida?

Vou-te dar um exemplo: a música que eu fiz com o Paulo Flores deu-me um respeito enorme, em relação à minha identidade de género. Tem pessoas que ficaram meus fãs através da música que eu fiz com o Paulo e é uma música que fala da mulher trans, da sua sexualidade. Estas colaborações são importantes para o nosso posicionamento. Eu sempre fui fã do Paulo como artista e como cantor. Desde pequena que eu ouço Paulo Flores. Ele é um ícone da música angolana.

Eu frequentava a casa do Paulo Flores, a Casa 70, primeiro como bailarina e, depois, enquanto cantora. O Paulo via muito bullying em relação à minha pessoa e admirava a minha coragem e como eu encarava a vida em Angola, não só sendo vaiada, atacada pela Internet, etc. Eu pedi-lhe para participar no meu segundo álbum e ele disse-me que aceitava por eu ser uma mulher guerreira, corajosa. Aprendi muito com o mestre, foi um grande impulso que deu à minha carreira.


https://www.youtube.com/watch?v=80a4JoOa4VQ

Foi uma forma da Titica kudurista crescer para outros meios, não achas? O Paulo Flores não é conhecido pelo kuduro, mas pelo semba e pela kizomba.

Tanto que eu tive dúvidas sobre a música. Eu já tinha feito uma kizomba, mas os fãs de kuduro são muito fiéis. Eu disse: “ai meu Deus, eu não posso cantar semba com o Paulo”. Mas ele deu-me um conselho. Disse-me que música é arte e que se eu tiver de fazer um estilo fora da minha área de conforto, para fazer e fazer bem. Aí não dou motivo. Disse-me que eu tinha de fazer todas as músicas com o mesmo amor e o mesmo carinho, que assim pega. Daí fizemos a música, ganhámos o melhor semba do ano e foi uma das músicas mais tocadas em 2015 em Angola.

E tiveste a oportunidade de tocar essa música com o Paulo?

Tive oportunidade de cantar algumas vezes. A primeira foi na Casa 70, quando o Paulo veio a Luanda fazer um show. Eu agradeço sempre a oportunidade que ele me deu de tocar com ele num concerto dele e espero dividir o palco com ele mais vezes para cantar esta história.

Sentiste que fez diferença na tua carreira, esta música? O kuduro é um estilo de música de jovens, disruptivo. Os kotas não ouvem kuduro…

O kuduro ainda é estigmatizado aqui. Não se toca em todas as casas, em todos os shows, por causa do preconceito, mas é o estilo mais internacional de Angola, lamento dizer! [Risos] É a música que mais representa este país mundialmente.

E quando o Paulo vai buscar uma kudurista, a rainha do kuduro, sentiste que abriu portas ao estilo?

Sim, sem dúvida. Houve mais abertura e respeito para com o estilo. Isso fixou-me como artista para toda a gente, e como artista versátil para quem já me conhecia. Deu-me respeito a mim, enquanto pessoa, e às kuduristas enquanto artistas. Eu sou representativa deste estilo também. E enquanto pessoa, esta música conta a história de um homem que se apaixonou por uma mulher trans e fala do dia a dia de se ser como eu aqui. Os homens desdenham-nos, mas à noite procuram-nos… Por isso é que eu canto:

“Na esquina, no escuro dos becos
De noite, nas luzes da disco
Quando chamas meu nome é Cinderela
Na tua vida eu vivo atrás do pano, atrás da janela

Quer dizer, é tudo uma hipocrisia na nossa sociedade, mas é a realidade que vivemos. É uma provocação à sociedade também.

E por ser um género estigmatizado e transgressor, como explicaste, que até traz uma forma de dançar diferente para os angolanos…

Sem dúvida, o semba e a kizomba dançam-se em pares, mas o kuduro é ímpar.

Sentiste que o kuduro era a forma de expressão certa para tu te afirmares enquanto mulher?

De certa forma, sim. Eu posicionei-me e marquei o meu lugar, mas foi algo que aconteceu naturalmente. Eu comecei como bailarina de muitos artistas de renome em Angola, e as coisas foram fluindo porque eu sempre fui carismática. Antes de começar a dançar, eu já cantava, mas foi quando surgiu a primeira mulher kudurista, a Fofandó, que eu percebi que podia ser a primeira, também, a primeira pessoa gay, a primeira mulher trans a cantar kuduro. Na altura eu comecei com um nome masculino e não tinha visibilidade nenhuma. Era rocha. Um dia, eu fui ao festival do kuduro, no CineÁfrica, e estavam lá todos os reis e rainhas do kuduro e tive oportunidade de cantar e de começar a dançar com alguns dos artistas que estavam a começar no género. Foi aí que surgiu um convite para começar a cantar e as oportunidades foram-se seguindo, e foi aí que eu comecei a levar isto mais a sério, e também porque percebi que estava a representar a comunidade LGBT. Desde então que canto, que o faço com muita responsabilidade e com muito amor.

Vi numa entrevista que por dentro sempre soubeste quem eras, mas que estavas incubada. Como estás agora?

Agora já sou por fora quem sempre fui por dentro também. Quando eu dizia isso é na forma de eu me expressar e de me posicionar, enquanto mulher, pessoa, e de saber quem eu sou e quem quero, que é como uma mulher trans. Eu também quero que haja uma separação e que as pessoas que me ouvem não estejam a pensar no meu género e na minha sexualidade. A minha música é o que tem de falar mais alto e proporcionar-me o que eu mais quero: respeito.

E a tua carreira enquanto kudurista aconteceu de forma paralela à tua afirmação enquanto mulher. Eu não deixo de notar que a tua evolução do primeiro disco para o último que lançaste é enorme e notória. E parece-me que isso também vive de mãos dadas, não concordas?

Isso faz todo o sentido. Eu quero fazer carreira e não fama. Quero aprender mais sobre música, mais técnicas vocais, a inovar mais nas minhas produções.



Em relação à tua carreira internacional, este concerto no Rock in Rio e no festival A Porta não são a tua primeira vez em Portugal, pois não?

Não, não é. E no Rock in Rio será a segunda vez. A primeira foi com BaianaSystem, no Rio, no papel de suporte. Mas agora é no papel principal. É um sonho realizado. É a prova de que o meu trabalho está a ser ouvido e de que tenho uma grande responsabilidade de representar os kuduristas num contexto desses.

Como foste recebida no Brasil?

Eu sempre disse que tenho uma costela brasileira. Sempre me identifiquei com a cultura de lá, e sempre foi o meu país de sonho. Foi o primeiro país que eu conheci além de Angola. Só Deus sabe o quanto eu adoro aquele país. Os meus maiores subscritores no YouTube e seguidores no Instagram, que mais engajam comigo, são brasileiros. É a minha segunda casa e os concertos foram óptimos. Eu lá sou reconhecida na rua, pedem-me para tirar fotografias e tudo devido ao trabalho que eu tenho vindo a fazer.

E notas muito a diferença entre estar fora do país e regressar a Angola? Quando regressas, sentes que muda muita coisa?

Antigamente, notava. Agora está tudo igual. Antes, no Brasil, por exemplo, eu andava à vontade, sem assédio. Sabia que não era famosa e que a vida era normal. Agora está tudo igual, da mesma forma que sou acarinhada no Brasil, sou acarinhada em Angola. Tem alguns limites e barreiras devido ao preconceito, sim, mas consegui o meu lugar.

Onde é sentes que começaste a ser mais bem recebida? Em Angola primeiro, ou achas que começou a melhorar quando começaste a ficar internacional?

Angola sempre me recebeu bem. Se eu disser que 20% está contra mim, há 80% a meu favor. Preconceito existe, sim, mas Angola sempre me respeitou e eu sempre me posicionei para isso. Sempre conquistei o meu lugar sem bater de frente. Eu sempre fui conquistando e entrando na mente das pessoas, a explicar que não é bem como algumas pessoas pensavam. A mostrar que o meu talento não é a minha vida privada. E graças a Deus que isso sempre tem acontecido. Mas a realidade é que o respeito é de facto maior. Sempre que vou actuar no estrangeiro, sinto que quando volto há mais respeito pela minha arte. E ainda bem, porque eu faço por merecer. Represento bem o meu país, represento bem o kuduro. E acho que deveriam respeitar ainda mais, modéstia à parte.

Sobre a separação entre a tua arte e a tua vida privada, tu falas muito de como as crianças, que ainda sem preconceito, ajudam com isso. São uma parte importante do teu público?

São muito importantes. Através delas é que eu consegui conquistar o meu público. Elas são puras e não mentem. É por isso que tenho muito cuidado com a linguagem que uso nas minhas músicas, por respeito. Isto tem tudo a ver com luz, as crianças são atraídas por pessoas que têm luz. Foi muito através delas que eu conquistei o mundo. Sempre que faço uma música, desde o tempo do “Chão” até agora, as crianças adoram as minhas músicas. Sempre recebi chamadas e vídeos de pessoas a contar como os filhos pequenos que pulam e dançam. É uma energia muito boa e que eu nunca quero perder. Esforço-me sempre para tentar abraçar todas as gerações com a minha música, com duplos sentidos que os mais velhos entendem de uma forma e as crianças de outra. 

Pergunto isto porque vejo que educação é algo que tu levas muito a sério na tua carreira. Tu fazes isso enquanto activista, enquanto embaixadora da UNAIDS em Angola. Isto é uma prioridade para ti?

É muito importante. Nós músicos temos de abraçar as causas sociais, não é só cantar. Enquanto embaixadora, pude dar voz a uma causa e colaborar para educação sobre comportamentos sexuais, de usar camisinha para evitar doenças, evitar gravidez indesejada… É parte do meu papel enquanto artista.

Enquanto rainha do kuduro, tu ouves música do género que é feita em Portugal, ou sons da diáspora africana?

Sim, claro. Adoro a Pongo Love, os Buraka Som Sistema… Fiz uma música com a Pongo agora e foi óptimo. Ela é uma inspiração para mim. E claro, tenciono colaborar com produtores portugueses.

Acho curioso que menciones logo os Buraka, porque enquanto preparava esta entrevista notei que tinhas uma carreira que progrediu de forma parecida com a da Blaya. Começaste enquanto bailarina, depois afirmaste-te enquanto cantora…

Eu não queria dizer, mas vou quebrar: a Blaya é uma das convidadas no meu álbum. Eu sou muito fã dela. Eu identifico-me com ela, porque temos percursos muito parecidos. E a honra de a ter num álbum meu é enorme.

Para fechar, o que é que se pode esperar do teu concerto no Rock in Rio? Vais ter convidados?

Se calhar levo uma surpresa ou outra, mas vai ser um concerto só meu, da Titica, e vai ter muita alegria, muito energia. Vai ter muita dança, muita interação, vou entreter toda a gente, que é o que eu faço melhor: contagiar o público com energia positiva e passar boas mensagens.


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