É já no final do mês que o brasileiro Tim Bernardes traz a Portugal o espectáculo com orquestra “Raro Momento Infinito”. Actua a 26 de Novembro no Sagres Campo Pequeno, em Lisboa; e a 29 de Novembro na Super Bock Arena – Pavilhão Rosa Mota, no Porto. Os bilhetes estão disponíveis online, tanto para a capital como para a Invicta, entre os 15€ e os 50€ (no Porto, os ingressos mais caros custam 45€).
Tim Bernardes vai apresentar temas dos seus dois álbuns a solo, Recomeçar (2017) e Mil Coisas Invisíveis (2022), mas também há espaço para algumas das canções d’O Terno, a banda que forma com Guilherme d’Almeida e Gabriel Basile, e que se encontra num hiato por tempo indefinido. Em Portugal, o músico de 34 anos apresenta-se com uma orquestra de 17 instrumentistas portugueses, cabendo a Martim Sousa Tavares o lugar de maestro.
Em entrevista transatlântica ao Rimas e Batidas, o artista paulistano antecipa os espectáculos com orquestra, fala sobre o seu processo de criação e revela que já está, aos poucos, a construir um terceiro disco em nome próprio — deixando a porta aberta para eventuais colaborações, projectos em conjunto ou mesmo para formar uma nova banda.
Apresentaste este espectáculo, “Raro Momento Infinito”, em São Paulo, a tua cidade, e agora é a vez de Lisboa e Porto, com músicos portugueses e o Martim Sousa Tavares enquanto maestro. Imagino que, por uma questão logística e económica, fosse inevitável fazer o espectáculo assim. Mas também te agrada esta ideia, em que o espectáculo é o mesmo, mas se calhar pode ganhar pequenas nuances por serem outros músicos em palco, outra pessoa a fazer a direcção musical?
Sim, gosto dessa ideia. Estou curioso para ver como soam os músicos portugueses. Acho que vai ser legal ver um outro maestro conduzindo a orquestra, com os arranjos que fiz aqui no Brasil, e ver o que soa de diferente com uma outra pessoa regendo os músicos.
A tua música, evidentemente, já tem uma série de arranjos mais orquestrais em diversas canções. Embora também tenhas uma clara preocupação em manter o registo intimista, sentes que, ao vivo, as emoções saem reforçadas com a interpretação de uma orquestra? A tua música ganha outras dimensões, que sobressaem ou se revelam mais, com estes arranjos?
Acho que tenho um compromisso com exactamente isso que você falou, com a intimidade. Então, as minhas canções têm que funcionar apenas com violão e voz, ou piano e voz, directamente com a pessoa. E é o que eu gravo primeiro. Então, quando penso nos arranjos, tento muito não pôr elementos a mais. Para que sejam uma trilha que, por vezes, entra e reforça, mas em muitos momentos deixo o violão e a voz sozinhos de novo. Então, já compus os arranjos assim. E isso é uma coisa que ajuda na hora do show, porque são os arranjos que compus em estúdio. Mas procuro reforçar isso com outros elementos no show, a luz, coisas que possam dar a sensação de que estou sozinho no palco, e quando a orquestra vem, aquilo soma-se e vai e volta. É mais como uma trilha de cinema para o cantor-compositor solitário, do que exactamente um show de grupo.
Mas também te agrada essa companhia, digamos assim, em relação a um concerto a solo?
Sim, acho que vira um pouco uma outra experiência, uma experiência da beleza da música. Quando uma orquestra começa a tocar, você toma um susto, um espanto da beleza que é o som de uma orquestra. Então, o show ganha muito para esse lado. A tentativa é manter a intimidade, mas ganhar também como um show de música, um show de melodia, harmonia, essas coisas. E é uma terceira experiência. Porque me sinto mais num show de banda quando é com O Terno, e num show mais íntimo quando estou sozinho. Então, com a orquestra é uma terceira coisa, um Twilight Zone, um pouco mais mágico. É uma experiência bem peculiar, ainda não sei muito bem definir.
Neste espectáculo, vão interpretar canções tanto do Recomeçar como do Mil Coisas Invisíveis?
Sim, o repertório traz os arranjos completos das coisas que fiz nos dois discos. Talvez até alguma coisa d’O Terno, porque também fiz arranjos em estúdio, que nunca foram tocados com orquestra. Para este show, não só priorizo canções que tenham os arranjos mais marcantes, mas também há canções que às vezes não entravam no meu show a solo, por estarem mais conectadas com o arranjo do meu disco, e que eu estou tocando pela primeira vez ao vivo. Então acho que é realmente um outro espectáculo, outra situação.
As canções do Recomeçar têm quase 10 anos, as do Mil Coisas Invisíveis são mais recentes, mas muitas delas são certamente íntimas, profundas e vulneráveis para ti. Como é esse momento de reviver essas situações? Talvez com o som de uma orquestra ainda ganhem mais esse impacto.
Isso é interessante, porque, realmente, muitas das canções vêm de um lugar bem íntimo, mas o processo até chegar ao show é bem longo também, entre eu compor uma música, às vezes leva alguns anos até eu de facto a gravar, e o período de estúdio também é longo, então muitas vezes estou em momentos diferentes quando vou tocar as canções, e os sentidos delas até mudam por vezes, sabe? Às vezes sinto-me tocado por uma canção que fiz por um motivo, e me toca depois por outro, sabe? Isso acontece em muitos shows, em que alguma canção se apresenta de uma maneira nova para mim. No show com orquestra a minha sensação é mais… os sustos vêm dos arranjos, sabe? Linhas de corda, coisas assim, trazem um clima diferente para a canção. A minha experiência é muito musical mesmo no show com orquestra. Estou numa posição mais de me lembrar como maestro do que como escritor, por vezes, sei lá.
E esse processo mais de escritor, de autor, como descreveste muitas vezes, é longo e se calhar até ganhas algum distanciamento, pelo menos em relação ao sentimento original pelo qual escreveste a canção… Mas olhas muito para esse processo de criação como autoterapêutico, de processares e de ser uma forma de lidar com as coisas, transformando-as na tua arte?
Sim, é uma forma de elaboração, eu acho. Não só de organizar os sentimentos ou os pensamentos, mas também por eles terem que nascer através de uma melodia ou de coisas que têm uma forma. Há uma outra instância que não depende de mim que também se apresenta, então às vezes é um processo que… Ele próprio revela também algumas coisas, parece-me. Não sei bem como colocar isso em palavras, mas sim, vejo-me sempre muito empenhado em investigar a existência por dentro, tentando entender as coisas, os meus sonhos, as coisas que penso, o que eu sinto e tudo mais. A música dá-me um trilho… Só acaba virando canção o que de alguma forma foi uma reflexão que se conseguiu sublimar. E existe uma coisa que é acreditar na canção. Às vezes você faz uma canção, mas ela não está… Tem que ter alguma coisa que é inexplicável, que acendeu a canção por dentro. É como gostar de algo, você sabe se gostou ou não gostou na hora. Então é uma mistura entre a reflexão e esse factor que não está tanto no controle mental.
E é um processo muito interior, como descreveste, mas depois também ganha outras dimensões e outra vida quando tu estás a interpretar, a apresentar a um público que é diferente a cada concerto. E aí as próprias pessoas que estão a ouvir estão a relacionar-se, a identificar-se e a levar aquelas canções para as suas próprias experiências. Como é para ti esse processo de interacção? Porque também deves receber imensas histórias e feedback de pessoas em relação às tuas canções e à maneira como elas se relacionam com as suas próprias vidas.
Muitas. Acho que o momento em que lanço é o momento em que realmente entrego a canção. Ela deixa de ser só minha e vai poder ser usada e vira uma tela para a projecção de outras pessoas. E quando componho essas canções, se eu componho uma canção mais íntima, eu não lançaria uma canção íntima que sinta que é uma coisa exclusiva minha. Elas fazem sentido porque são muito íntimas e todo o mundo tem um espaço de intimidade. É uma experiência de primeira pessoa. Então é uma canção que, por ser especificamente minha, vai ser muito específica para as outras pessoas também, eu acho. Então existe esse lugar em muitas das canções que eu fui reparando, depois de as lançar e tocar, de que uma experiência íntima minha ressoa com a intimidade do outro. A pessoa não está ouvindo e a pensar na minha vida. Ela está encaixando aquilo na sua própria vida. E eu acabo fazendo isso também porque é como eu ouço música. Quando ouço uma canção que me toca, que me emociona, que é uma canção íntima de algum compositor, aquilo está parecendo que é uma trilha para a minha vida, que está falando comigo, e é assim que a gente se relaciona com filmes, livros e canções. Então esse é o meu interesse também, lançar uma canção que vem de um lugar íntimo meu, porque tenho a sensação de que aquilo pode também dar uma forma para coisas abstractas que outras pessoas estão sentindo por dentro.
E essa recepção das pessoas, essas histórias que te fazem chegar, essas mensagens, também te alimentam de alguma forma, em termos criativos? Ou, na verdade, quando estás a criar, estás muito virado para dentro mesmo, muito focado em ti?
Eu não acho que me inspire directamente porque acho que essa busca tem que ser por dentro. E o que é bonito é que as pessoas estão sentindo por dentro também, não é? Estão vivendo com a sua própria experiência. Mas eu me isolo muito para escrever ou para gravar porque tento ser o mais puro e verdadeiro com o que estou sentindo e faço a canção para mim. Se, depois de pronta, ela parece uma coisa que poderia ser interessante para fora, isso é um segundo momento. Mas, antes de tudo, tenho que fazer para eu gostar, mesmo se não existisse público. É uma investigação interna mesmo. Algumas canções, não é? Tem canções que são outro universo. E às vezes estou escrevendo sobre coisas íntimas que reflectem sentimentos ou sensações que tive, mas elas saem em formatos de história não necessariamente literal do que eu vivi também. Elas podem ser literais ao que eu senti. Às vezes você pode criar um outro formato e consegue explicar melhor o que você sentiu. Então elas sempre são fiéis, não necessariamente aos factos, às vezes é mais às sensações, às vezes aos dois.
Claro, faz sentido. E imagino que estejas frequentemente a ter ideias e a escrever e a compor, ou a anotar coisas de que te lembras. Passaram três anos desde o Mil Coisas Invisíveis, O Terno também está num momento de hiato. Estás com vontade de gravar um disco novo, a solo?
Sim, super! Tenho muitas canções que fui compondo e acumulando e desde Maio que diminuí o ritmo dos shows, eu estou muito em estúdio trabalhando nelas. O meu processo é um pouco mais dilatado, então estou gravando coisas, mas ao mesmo tempo também entendendo o todo dessas canções e como é que as quero colocar. Mas, sem dúvida, o meu maior entusiasmo agora é deixar prontas essas canções que escrevi, como que seriam as gravações, como elas se juntam num disco — ou mais de um disco —, enfim, como é que essas canções vão ser encarnadas.
Ainda é cedo e estás no meio do processo, mas sentes que estás a ir por direcções diferentes em relação aos outros dois álbuns? Há aqui muita coisa nova, muita coisa diferente?
Acho que eu não saberia dizer ainda. Talvez seja subtil, mas tem muitas direcções ou facetas minhas que ainda não explorei. Sempre que faço um disco novo gosto de, embora eu sinta que eles tenham uma continuidade de um para o outro, ir expandindo um pouco o espectro. Então sinto um pouco isso. Até então nunca tive uma vontade brusca de mudança estética total. Mas sempre sinto que a coisa se desenvolve, vai chegando a novas fronteiras. Tem coisas que fiz no Mil Coisas Invisíveis que são bem diferentes do que fiz no Recomeçar. E o Recomeçar tem coisas diferentes do que tinha feito n’O Terno. Mas eu também não sinto que são desconectadas do que vem antes. Então tenho mais esse jeito de desenvolver e expandir do que fazer uma mudança radical. Não sou fechado com isso, mas pelo menos por enquanto, tenho a sensação de que é o que vai acontecer.
E também imagino que sintas a própria evolução da tua experiência enquanto músico e enquanto pessoa. Porque, obviamente, escrever música e encarar a vida aos 34 anos não é igual a escrever aos 24.
Sim. Na verdade o resultado não é igual, mas o processo é de uma certa forma o mesmo, que é olhar para dentro e ser fiel ao que estou sentindo e ao que estou vivendo. E o que estou sentindo e vivendo muda.
Exactamente. No ano passado, fizeste uma colaboração com os BadBadNotGood. Também era um caminho que gostavas de explorar, fazer mais esse tipo de pontes com esse tipo de projectos, mais ou menos ligados a este universo musical, mas também mais baseados nos Estados Unidos, no Canadá, no Reino Unido?
Sim, gosto disso, gosto dessa ideia. Acho que justamente me permite explorar outras facetas ou outros lados da minha musicalidade, fora da coerência e da dedicação total que tenho com a coisa a solo. Ainda estou como autor, mas de uma certa forma não tenho o peso de me traduzir na canção. Posso ser um pouco mais um escritor de fora ou um cantor de uma ou outras coisas. Então isso é bem legal. Agora recentemente saiu uma parceria também com a banda Soyuz, que é uma banda da Bielorrússia muito boa. E desde o Mil Coisas Invisíveis, que foi um disco que já lancei fora também, fui para muitos países a que eu nunca tinha ido e me conectei com muitos artistas. Então tenho a vontade de ver o que esses encontros também geram musicalmente.
E outro encontro que tiveste recentemente foi com os Capitão Fausto, que dizes que são a tua banda portuguesa favorita, porque eles estiveram aí no Brasil contigo. Como é que foi esse momento em palco?
Foi óptimo. Eles convidaram-me não só a mim, mas também o Zé Ibarra, dos Bala Desejo. E eles são muito descontraídos em palco e têm muita experiência. Foi o primeiro show deles em São Paulo. Tinha um público deles já bem legal. E para mim foi um prazer também, porque tenho muita vontade de os apresentar ao público brasileiro, porque são uma banda que… são uma banda mesmo. Além da música, eles são personagens individuais e em colectivos são uma personagem também. Têm isso de uma banda que tem um carisma de grupo e são muito divertidos. Além de terem a estética um pouco da nossa geração, que se relaciona um pouco com o indie dos anos 2010, acho que eles têm letras que se destacam muito acima da média das coisas actuais. Reflexões muito interessantes e letras muito fluidas.
E obviamente também é interessante ver esta ponte, em que tu vens tocar regularmente a Portugal — neste caso vens a Lisboa e ao Porto — e os Capitão Fausto ainda não têm esse caminho tão feito, mas foram agora a São Paulo, e já tocaram também noutros sítios do Brasil, penso. E é um caminho que acho que toda a gente quer fazer, não é? Que haja mais esse intercâmbio entre Portugal e Brasil.
Sim, e eu sinto que, após a pandemia, tem havido mais brasileiros dessa cena alternativa indo para Portugal e se interessando por Portugal, acho que pode ser também um novo momento para essas cenas de Portugal terem um público aqui. Porque a gente vê uma certa unilateralidade de Portugal ao ter uma tradição de consumir cultura brasileira. Seja na música popular brasileira, desde os clássicos dos anos 70, até à cultura popular mesmo, das novelas. O português está mais acostumado a ouvir o português brasileiro. Aqui tem muito pouco português, muito pouca cultura portuguesa. Então, acho que é um nicho totalmente a ser explorado. Acho que é um interesse que ainda não foi explorado. Vai-se pavimentando um caminho ainda virgem.
E há pouco falavas do interesse que também pode haver da tua parte em fazer coisas com outros músicos. No sentido de não estares só enquanto autor a solo, não é? Obviamente, isso também tem a ver com dinâmicas colectivas ou eventualmente de projectos com outras pessoas. Vês-te a fazer, nos próximos tempos ou nos próximos anos, projectos com outras pessoas? Por exemplo, um disco de Tim Bernardes com outras pessoas ou mesmo uma nova banda? Ou estás muito focado, mesmo que queiras fazer colaborações pelo caminho, no teu percurso a solo?
Tudo isso poderia ser bem interessante. Sinto-me aberto a isso. Como tem algumas canções que escrevi que combinam com o desenvolvimento da minha coisa a solo, acho que ainda orbitaria em torno do solo. Mas tenho muita vontade de tudo. Teria vontade de, se surgisse um encontro interessante, fazer uma outra banda. Todas essas variações acho que expandem o compositor e o cantor. Para mim, o tempo em que fiz O Terno e a carreira a solo ao mesmo tempo foi totalmente complementar, um expandia o outro. Eu gosto de poder ter um eixo, um trilho principal, mas poder não ficar fixo a ele. Até por ter um trilho, poder sair, passear aqui fora e voltar… Acho que o trilho é importante, mas a vontade das coisas fora é muito presente em mim, sem dúvida.
Outra coisa que também certamente te expande, enquanto compositor e autor, é quando escreves música para outras pessoas. Imagino que também seja algo que, com o passar dos anos, aconteça cada vez mais — haver esses pedidos ou esse interesse em gravar canções escritas por ti. Também é uma coisa que te interessa e que queres continuar a fazer? Escrever para intérpretes, para outros nomes da música brasileira ou não só?
Sim, é uma coisa que eu acho legal de fazer ocasionalmente. Vem muito de cada convite. Um convite de escrever para a Gal Costa ou para a Maria Bethânia, coisas assim que me empolgaram e me instigaram a tentar fazer a coisa… Porque eu, normalmente, se estou compondo para mim ou para O Terno, não forço muito o surgimento de uma canção. Estou sempre aberto e, quando vem a ideia, dou-lhe uma forma. E essa coisa de você escrever para alguém, você tem que escrever uma canção nesse mês, sei lá… E quando é alguém que eu realmente admiro e que me instiga, inspira, é suficiente para eu me colocar a escrever uma canção. Seja uma ideia vindo até mim ou não. Eu vou e começo a pensar e aí surgem coisas diferentes. Então eu gosto bastante. Mas normalmente precisa desse sentido de alguém que me empolgue. A ideia é empolgar-me, por estar a escrever para tal pessoa. Se eu sinto que isso ressoa, me agita, a coisa ocorre.