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Fotografia: Marco Lafer & Isabela Vdd
Publicado a: 16/08/2022

O impacto fantástico da realidade.

Tim Bernardes: “Sou muito voltado a entender-me por dentro”

Fotografia: Marco Lafer & Isabela Vdd
Publicado a: 16/08/2022

Tim Bernardes deixou-nos mal-habituados com Recomeçar, o seu primeiro lançamento a solo: roubou-nos uma solidão que pensávamos ser só nossa e cuidou dela como se fosse sua, munido somente com arranjos orquestrais que parecem ter sido pedidos de empréstimo à sétima arte e desarma-nos, deixando-nos em mãos a guarda conjunta de um coração partido.

Regressa em 2022 com aromas dessa mesma pop orquestral e harmonias suavemente cantadas, sinos e o corpo-instrumento em Mil Coisas Invisíveis, o seu mais recente álbum a solo. Meditativo e igualmente íntimo, o músico brasileiro fá-lo com a maestria de quem se sabe herdeiro de uma tradição de gigantes seus antecessores (vindos da bossa nova ao indie rock até à Tropicália, ainda tendo espaço para o queimor irrequieto e psicadélico dos Beatles).

O membro do grupo O Terno vem em nova digressão por Portugal este Outono para se mostrar evidência viva de que a MPB está de boa saúde e recomenda-se. Muito.



Colaborações com artistas como Gal Costa, Maria Bethânia a gravar uma música tua, elogios de Caetano Veloso, uma década d’O Terno e digressão com os Fleet Foxes. Quando começaste alguma vez te imaginaste aqui? Quais eram as tuas expectativas?

Boa pergunta. Eu não imaginava que o tipo de música da qual gostava e fazia teria este alcance naquela época. O indie estava distante do mainstream, eram mundos isolados por um grande limbo, pelo menos no Brasil. Pensávamos muito nos próximos passos: em que lugares dos que gostávamos na nossa cidade [e onde] conseguiríamos tocar depois noutras cidades, gravar um disco. O crescimento d’O Terno mistura-se com o crescimento do indie. Desbravou o terreno do midstream. A cena autoral começou a ganhar mais público ao mesmo tempo que íamos compondo. Quando subíamos um degrau já dava pra pensar que poderíamos subir mais, mas o degrau em que estou hoje só consegui ver quando cá cheguei.

Alguma vez tiveste medo de falhar, de não corresponder a alguma expectativa tua ou dos outros durante o processo?

Por um lado sempre, por outro lado nem tanto. Eu não procurava um lugar que já existia. Minhas vontades eram muito de gravar uma música mais bonita que aquelas já compostas antes e tentar lançá-las de um modo legal. Era um caminho muito próprio que não tinha um certo ou errado. Então, nesse sentido, fico livre desse medo. Por outro lado, depois dos últimos discos terem tido mais repercussão, principalmente com este último disco eu pensei, “é isto que esperam de mim?”, “será que vai funcionar?”. Quando esses pensamentos apareciam eu tinha de pensar, “calma, não é para isso que faço música”. Eu faço-o porque há algo interno que quero exteriorizar e não tem de estar ligado a ser feito de um mesmo modo que já tenha funcionado antes. No momento em que estou a criar e gravar, tento ficar muito isolado da expectativa do outro, tentar fazer música da qual eu gosto e se eu gostar haverá sempre alguém que gosta. Isso já é um começo.

Acredito que o Tim que começou n’O Terno e o Tim Bernardes a solo têm muito um do outro. Assim sendo, como surgiu a necessidade de lançar o Recomeçar como primeiro álbum a solo?

É tão misturado que eu nem sei bem como separar tudo. Vejo a minha carreira como uma carreira de compositor que permeia esses dois trabalhos. Ao longo d’O Terno, principalmente nos primeiros discos, não tinha vontade de colocar a minha cara sozinho, mas tinha sim canções que eram íntimas e sentia que não cabiam n’O Terno. Guardava-as sem ter a clareza de que estava pronto para lançá-las. Depois do Melhor do que Parece d’O Terno, já tinha ganho mais experiência com a banda e tínhamos um público carinhoso, receptivo e aí já me sentia mais confortável para lançar algo mais íntimo. O Recomeçar já estava pronto na minha cabeça. Em 2017 existiu um conjunto de situações que me permitiram lançá-lo. Com o tempo apercebi-me de que gostava muito de alternar entre um show com a minha banda, em que somos mais expansivos, e depois fazer um show no teatro, sozinho. Gosto que as duas coisas possam coexistir e existe esse desafio de cada vez mais se parecerem e eu tento criar essa distinção para lá do eu sozinho versus eu com os meus amigos.

Essa maior visibilidade fez com que fosses catapultado para o mundo.

É muito interessante o lançamento do Mil Coisas Invisíveis ter-se sincronizado com o meu lançamento lá fora: a digressão com os Fleet Foxes, a promoção fora do Brasil, é marcante pra mim. Nunca tinha lançado um disco no Brasil (e em Portugal porque já tenho aquela ligação também) ao mesmo tempo que o lançava lá fora.

Receber a atenção de um público que não fala português foi uma surpresa bastante legal, reparar que a música conecta emocionalmente mesmo que o idioma não seja o mesmo. É uma coisa que eu não tinha ousado sonhar até bem recentemente. Sabia que existia um interesse pela sonoridade e musicalidade da música brasileira dos anos 60/70, mas não enxergava como me poderia projectar dessa forma nisso. As conquistas recentes é que me deram a ousadia de actualizar o sonho e imaginar coisas bonitas e pensar sobre onde posso ir.

Já estavas habituado a trabalhar em equipa, mas como foi trabalhar com artistas que serviram de inspiração para o que crias? Que lições tiraste?

Dou muita importância à minha discografia oficial porque fui eu que escolhi o que constaria nela. Poder gravar fora disso dá-me uma leveza interessante. Por exemplo, ter gravado com a Gal Costa era algo que não estava no meu plano de compositor a solo, mas tem o peso diferente de ser algo fora do planeado. Contudo, há um equilíbrio, pois também é leve. Posso fazê-lo duma forma despretensiosa. Sinto que cada disco é um retrato meu musicalmente. Esses retratos levam vários anos entre um e o outro e têm retratinhos no meio que são nada mais nada menos que a proposta do encontro com alguém que eu já admirava muito. É especial e leve ao mesmo tempo. Estás a contribuir para algo e isso tem um impacto em ti. Quando a Maria Bethânia gravou uma música minha, por exemplo, foi emocionante.

Seja pela influência do teu pai, Maurício Pereira, seja por ser algo que sempre te apaixonou, como foi amadurecer dentro do meio musical?

Fundiu-se com o meu desenvolvimento como pessoa e o meu processo de compreensão do que é o mundo e estar nele. Eu sinto-me sortudo por ter a música como fio-condutor onde me posso entender, descobrir, ter as minhas reflexões. A minha música amadureceu comigo e eu com ela – é uma linha sagrada onde eu posso projectar e tentar entender as coisas da vida e do mundo.

Já sabemos sobre algumas influências que tens a nível musical como a música brasileira dos anos 60/70, da bossa nova à Tropicália. Que outras existem que sentes terem moldado o teu trabalho?

Existem muitas referências filosóficas, cinematográficas, literárias, mas sinto que a minha porta de entrada veio pela música. A minha relação com a cultura pop, artes plásticas e moda tem muito a ver com o facto de ter conhecido a cultura musical dos anos 60/70 como, por exemplo, a influência que Beatles e Rolling Stones tiveram na cultura estética de uma época. A filosofia cultural tropicalista como os livros do Caetano – Verdade Tropical. Ler sobre Budismo Zen e psicologia Junguiana. Sou muito voltado a entender-me por dentro.

Perguntei isto porque o videoclip de “Nascer, Viver, Morrer” fez-me lembrar muito Twin Peaks, a série.

Inclusive Twin Peaks foi algo que vi durante a pandemia. Coloca-te numa zona entre o dormir e o acordado que aprecio e que eu acho que o Jodorowsky – alguém que aprecio muito – tem também. É um surrealismo poético que adoptei para mim. No videoclipe de “Recomeçar” o destruir do piano para encerrar um capítulo e, agora, no videoclipe de “Nascer, Viver, Morrer”, o queimar desse mesmo piano para representar a ideia de queimar uma fase – aquilo a que ele chamaria de “psicomagia”.



Descreve-me este novo álbum em três palavras.

Eu podia dizer Mil Coisas Invisíveis, mas também algo como “o impacto fantástico da realidade”. O disco tem a ver com o espanto após alguns véus entre o eu e o mundo caírem e o espanto de me ver dentro dessa realidade.

Sempre nos habituaste a uma certa vulnerabilidade, uma sofrência. E, de repente, vemos algo mais metafísico, cósmico. Porquê esta viragem?

Não foi de propósito. Após o Recomeçar, compus o <atrás/além> que já estava pronto para esse salto para o desconhecido. No limiar entre a consciência e inconsciência. Em 2020, já com o impacto da pandemia, tive de parar e questionar-me, “se já não exerço música, então o que sou eu?. Era só eu fechado comigo mesmo. O que sou antes dos rótulos como nome, idade, nacionalidade? É um disco muito sobre o ser e não sobre o fazer ou ter, é como se fosse a minha terapia.

Como foi ter de separar a pessoa do artista durante a pandemia?

Foi angustiante e um alívio. Angustiante porque me tive de agarrar a algo pra não ficar tanto sem chão sobre um futuro incerto e um alívio porque tinha um cansaço acumulado de uma década a tocar sem descanso. 2019 foi um ano muito intenso, quis tirar uma pausa de dois meses e começou a pandemia. Quando perdi a tentativa de me definir, tive de aceitar que eu sou o que sou. Nas palavras de Marcelo Camelo: “fingindo ser o que eu já sou”.

Sinto que este álbum é uma despedida do Recomeçar, tendo algumas recaídas. Passagens como “a novidade já chegou/ adeus eu já sei quem sou” abandonam o tom melancólico e embarcam numa jornada de autodescoberta.

Sinto isso em relação ao período de juventude, de formação e não só — ao Recomeçar. Esse verso é um bom símbolo porque é um adeus agradecido ao que me formou, sejam os meus pais, amigos, compositores brasileiros ou os Beatles. É uma sensação de colar grau. Vocês têm essa expressão em Portugal? Quando acabamos a faculdade e nos dão o diploma, isso é colar grau.

Tenho de iniciar um novo momento em que faço coisas por conta própria com a bagagem que ganhei, encerro um grande ciclo. E sinto que o público do Brasil se identifica porque cresceram junto com O Terno, aquela coisa meio Harry Potteriana. O próprio disco Os Dias Contados dos Capitão Fausto teve um grande impacto em mim nesse sentido: o fim da juventude e início do período de maturidade.

A primeira faixaNascer, Viver, Morrer” é uma introdução ao existencialismo.

É, nem vejo isso como algo cronológico, é um nascer simbólico quase místico pra realidade. Acordar do mundo mental pro mundo real, como se eu visse através da minha mente e não pela minha mente.É como se eu sentisse a presença do ser, a mente é um iOS que precisa de ser actualizado e está tudo encapsulado nessa canção que inaugura o disco. O meu avô morreu na pandemia e há aquele verso “Morte da ausência/ presença do inexistente” faz a gente entender que não é só sobre a matéria, sentimos mais quando paramos a nossa vida quotidiana e pensamos nisto e falamos “estou aqui” – esta faixa dá o tom ao disco.

E quando respiras e tens tempo para assimilar o que te rodeia surgem faixas como “Meus 26” porque sinto que reflectes sobre um Brasil que te viu crescer e é um velho amigo e traças o vosso percurso em conjunto.

Eu achava que os meus 26 seriam o meu auge e, de certo modo, foram porque lancei o meu disco a solo. Ao compor esta faixa, os estados do Brasil foram refletindo estados emocionais que tive: a Bahia como um sonho, Minas como o afecto, a energia rockeira no Sul. É um Brasil metafórico e é curioso porque esta música tem uma vida própria: foi escrita antes do Bolsonaro ser eleito, num livestream que fiz alguém constatou que 26 é o número de estados do Brasil; no tarot a carta número 26 fala de todo o conhecimento que já foi adquirido e do que estamos dispostos a adquirir. Fi-la antes da pandemia e de estar consciente do que viria depois; é um eco do futuro.

Muitos dos temas sobre os quais te debruças não correspondem a marcas temporais específicas como se a sua actualidade não fosse afetada pela passagem do tempo. Esse carácter atemporal é algo que procuras para a tua música?

Há assuntos que transcendem o ser humano. Para mim, é muito atraente procurar falar ou observar temas não tão contextualizáveis, que não têm a ver com tendências do momento como o contexto político ou social, mas que estão presentes em tudo isso. Cresci e fui impactado por música que saiu há mais de 40 anos. Por exemplo, ouvia Neil Young aos 18 anos e sentia que ele estava ali no meu quarto, comigo. E agora, em 2022, oiço e sinto o mesmo – é isso que quero fazer, essa atemporalidade.

E agora vens a Portugal para uma digressão nacional, o que esperas?

Gosto muito do momento cantor-compositor sozinho no palco. Acho muito forte. Tocar no Coliseu parece muito interessante, o íntimo e o grande misturados – alinha-se com parte da intenção do Mil Coisas Invisíveis. Quero cantar sentimentos sem intermediários e camadas, uma relação directa e emotiva através da música.


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