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Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 26/10/2022

Flutuações filosóficas feitas com poucas ferramentas mas muita profundidade emocional.

Tim Bernardes no Coliseu dos Recreios: o essencial é invisível aos olhos de quem não sente

Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 26/10/2022

Nas·cer |ê| – (latim nascor, nasci) – verbo intransitivo

  1. Começar a manifestar-se.

O que os olhos não vêem, a mente cria. Se vos dissesse que na noite de domingo o Coliseu dos Recreios, em Lisboa, se transformou no meu quarto, muitos julgar-me-iam pouco sã.

E foi invadido pelas primeiras chuvas de um Outono que chegava tímido e trazia consigo um holofote das minhas emoções a quem deram o nome de Tim Bernardes. Sentou-se de frente para mim com a sua guitarra, um piano de cauda e uma luz de presença – tudo isto enquanto se fundia com o verde-esperança do ecrã que lhe cobria as costas. Tal e qual o ritual da nascença, somos colocados na palma das suas mãos de forma encarecida, frágeis e expostos a uma dor que dói, mas que cura também. Dos mais novos aos mais velhos todos queríamos o mesmo: nascer de novo, fosse de que forma tivesse de ser, um refúgio para a vulnerabilidade velada.

Mais do que o visível, intriga-me o que não consigo enxergar com a visão, o que só é palpável no corpo dos sentidos – o “Mistificar” (uma das músicas cantadas no início do concerto) conjunto. Tim contava-nos sobre como o infortúnio da pandemia o fez ficar durante meses com um colchão no chão e que isso lhe possibilitou ver a lua – e confundir-se com as fases dela. Forçados a desacelerar, temos a hipótese de descortinar uma paisagem. Tornar estranho o que é familiar e familiar o que é estranho.

Vi·ver |ê| – (latim vivo, -ere) – verbo intransitivo

  1. Passar toda ou a maior parte da existência em; não poder existir fora de.

Quando o viver e o (sobre)viver se emaranham: há dias em que os nossos ombros não suportam o peso do mundo neles – quase nos fazem sentir como se reencarnássemos o mito de Sísifo e a melancolia fosse a pedra que carregamos monte acima. A música de Tim Bernardes tem a qualidade de nos fazer questionar se vivemos uma vida em comum com desconhecidos que acabamos por tornar em amigos. Facilita o sentido de identificação mesmo que o que nos ligue sejam os descontentamentos existenciais. Tal como se pôde comprovar pelo momento em que anunciou que iria cantar “Última Vez” e, do público, exclamam “já chorei em três” e alguém responde num tom incrédulo “só?!”.

Cantou para uma plateia de crentes: os que crêem em amores-veneno e em Neil Young, no tangível e em Jards Macalé, num Brasil que (ainda) não se cumpriu e no cosmos. No escuro tocava para uma plateia onde estavam sentados os seus ídolos, desde Maria Bethânia a Gal Costa – mesmo que só ele deles desse conta. No branco sobre Recomeçar e no verde indagava sobre Mil Coisas Invisíveis. Um pano de fundo verde remete para o green screen utilizado no cinema. Fechados os olhos e podemos entrar nas memórias de um coração que se destrói e reconstrói na lembrança daquilo que já foi, das “Fases” às “BB (Garupa de Moto Amarela)”, da “Velha Amiga” à “Mesmo Se Você Não Vê”.

Da plateia abanam-se as estruturas das sensações com pés a bater que são palmas também e que celebram uma simbiose na qual não se sabe onde termina O Terno e começa Tim Bernardes, numa viagem de “Volta” que não cabe no dilema do “Profundo/Superficial”. Certos de que esta mistura é “Melhor Do Que Parece”.

Mor·rer |ê| – (latim vulgar morere, do latim morior, mori) – verbo intransitivo

  1. Desaguar.

Com o silêncio que se fazia no Coliseu conseguíamos olhar para dentro de nós e (re)descobrir o mundo que por lá existe. É como se abríssemos uma caixa musical daquelas que têm uma bailarina a girar sobre si mesma enquanto as cordas da guitarra deixam voar os primeiros acordes d’”Ela” e “Não”. O amplificador concede-lhe a ordem de soltura e Tim agarra-a com a fome de quem nos quer mais perto. Projecta a alma na voz e desagua em nós com a solidão que nos tomou de assalto. Fomos menos sozinhos, mas menos do que isso não se esperava, a dor do fim vem para purificar… Recomeçar, recomeçar…


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