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Fotografia: Marta Bento
Publicado a: 05/12/2022

As ondulações que o tempo não apaga.

Tiago Sousa no Som de Museu: semeando padrões orgânicos

Fotografia: Marta Bento
Publicado a: 05/12/2022

O festival Som de Museu, nas Caldas da Rainha, apresentou o pianista e compositor Tiago Sousa em concerto a 3 de Dezembro — no dia anterior teve George Silver and Gold e, para finalizar, Thollem McDonas e Álvaro Rosso. Em todas as propostas, o piano foi o elemento radical e agregador.

Na sala oval José Malhoa, do homónimo museu, um piano de cauda confronta as suas teclas com as 61 do teclado Fender Contempo, modelo combo rubro-negro dos anos 60, pleno de vozes e controladores. Muito menos usado por músicos que os lendários Rhodes ou Hammond, tem nas mãos e alma de Sousa uma sonoridade que se escuta na panorâmica “Sunflowers”, tema de abertura do último registo discográfico Ripples On The Surface, editado pela Holuzam.

Sousa está em pleno processo criativo nas multiplicidades deste teclado e a prová-lo são as duas faixas inéditas, e apresentadas coalescidas, com que abre a prestação no museu caldense. Farão parte do próximo volume na senda das Organic Music Tapes, com edição prevista em fita magnética no início do próximo ano pela Sucata Tapes/Discrepant. De duração demorada, ampliam o efeito imersivo na teia circular de padrões orgânicos pretendidos. Sousa explora o espaço disponível com emaranhados circulares, num continuo que perpetua sulcos sonoros; fossem os seus dedos elementos de um arado e o solo o lugar, seriam os subtis desvios do rumo o encanto do padrão final. Esta música quer-se abstracta e evasiva, mas vive dos detalhes que a compõe. Apresenta-a, põe-lhe palavras e explica como: “música orgânica, contrapondo outra mais direccionada, que deixa semente…”.

Sousa está enquadrado no lugar pelas grandes telas de Malhoa, O Último Interrogatório do Marquês de Pombal, 1891, e Alegoria à Música, 1903, obras de grande arrojo e dimensão. Na medida sonora, Sousa faz-lhe jus e ao piano prossegue com “Liberty Song” na senda da música orgânica, urdindo na dimensão o tempo e o cenário, libertando-nos na contemporaneidade. Leva as duas alas do público até onde vai a sua composição. “Red Pine” e “Blossoms” devolvem em calmaria contemplativa, essas paisagens sonoras que os títulos bem expressam, pejadas de uma flora táctil e emotiva. E esse lugar onde nos leva tem ondulações constantes, confrontando-se umas com outras, em idas e voltas, num vaivém que se estende enquanto se escuta “Hills”. Mesmo que esse mar recue (com o final do concerto) ficam-nos impressas as marcas que nem as ripple marks que os sedimentos atestam entre marés.

Fica-se numa certa doçura solitária, como diz o título do álbum em que podemos voltar a ouvir “eyes velázquez-grey”. Esta composição traz a melancolia outonal consigo, e reveste-se de propósito no tempo em que a escutamos. Feita de cromatismos circulares pontuados por fugazes notas agudas que nem centelhas de luz sobre um cinzento doce olhar. Nisto surge “Time Binder” que é a sumula lumínica, peça maior da generosidade sonora do piano de Sousa. Música estonteante que permite encher os pulmões, suster a respiração, sentir a luz zenital da sala, que é a das cordas arpejadas, reflexo maior de mestria condutora.

Como num fim de princípio, “Sunflowers” fecha o concerto. Tema de abertura de Ripples On The Surface e que aproxima Sousa de ambientes densos, tricotados de padrões apertados e cíclicos. São, assim como em disco, uma vintena de minutos avassaladores de cadências vindas do órgão Contempo num mecanismo, repetitivo, minimal, massivo, aparentemente monótono. Porém, atentem-se aos desvios subtis como prenúncios, é para onde quer ir, para alcançar os frutos que hão-de vir desta sementeira.


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